Cap. 3- Perdoar não é uma tarefa fácil

Na penumbra da manhã de sábado, um vulto sorrateiro se deslocava pela casa, enquanto Clóvis, alheio à ameaça que se aproximava, tomava tranquilamente sua xícara de café na mesa da cozinha. Um sorriso sinistro se insinuava pelas sombras, acompanhado por um brilho malévolo nos olhos do intruso, que avançava lentamente.

Sem quebrar o silêncio que pairava no ar, o invasor se aproximava sorrateiramente pelas costas de Clóvis, aumentando a tensão a cada passo. Uma atmosfera carregada de perigo se instaurava na casa, enquanto o senhor desfrutava de sua bebida matinal. Num instante, num movimento rápido e furtivo, o intruso atacou, emitindo um rugido ameaçador que ecoou pelos corredores, rasgando o ar com sua presença ameaçadora.

Puxando o ombro do velho com firmeza, o demônio encarava Clóvis nos olhos, suas garras afiadas prontas para o ataque iminente. Mas o senhor permanecia sereno, como se nada estivesse acontecendo, saboreando seu café calmamente, mesmo com o demônio à sua frente, tão próximo que poderia sentir o hálito fétido que escapava de sua boca.

Por que ninguém nessa merda tem medo de mim? - bradou o demônio, lançando a cadeira para frente com violência, enquanto lutava para manter o controle sobre Zero.

O pobre senhor, empurrado pela cadeira, caiu com um baque surdo no chão, mas sua preocupação principal era evitar que o café fosse derramado. Verificando rapidamente o chão, notou aliviado que tudo estava limpo, e voltou a sentar-se, retomando sua xícara de café com serenidade, como se nada tivesse acontecido.

O semblante de Zero suavizou, as feições tensas dando lugar à sua inocência natural. Seus cabelos caíram sobre os olhos, ocultando os chifres que ameaçavam surgir. Olhando para Clóvis com um sorriso sem jeito, ele murmurou:

- Desculpe por isso. Eu não sei como você consegue manter a calma nessas situações...

- Hohoho, sem problemas a culpa não é sua, eu fico tranquilo pois não tenho nada a temer, esse demônio sabe a quem eu sirvo e sabe o que pode acontecer com ele caso toque um dedo sequer em mim, não ligue para isso, basta não cairmos nos joguinhos dele, mas sente-se e coma um pouco, ontem um dos meus amigos na tribo me deu um pouco de mandioca da plantação dele, eu cozinhei e fritei para a gente, tá uma delícia com esse cafézinho, hohoho.

Zero saltou por cima da mesa, girando uma cadeira antes de se acomodar nela com um sorriso sereno. Delicadamente, ele serviu café em uma xícara de porcelana, adicionando um toque de doçura ao ambiente. Com um gesto leve, pegou um pedaço de mandioca frita e o levou à boca, soltando pequenos murmúrios de prazer ao sentir o sabor familiar.

- Uh! Uh! Uh! - exclamou o jovem entre respirações rápidas, tentando amenizar a sensação de queimação em sua boca.

Clóvis sorriu, observando a cena com ternura:

- Acabei de fritar...- disse suavemente, desfrutando do momento tranquilo ao lado de Zero.

Pela janela da acolhedora cozinha, dois pequenos curiosos espiavam a cena com olhos travessos. Eram Aweti e seu irmão, cujas travessuras podiam ser facilmente detectadas pelas penas adornando suas orelhas. Sem perder tempo, Aweti lançou uma mamona na direção de Zero, como se estivessem brincando de esconde-esconde, ignorando completamente sua presença à distância.

Revirando os olhos com um suspiro de aborrecimento, Zero voltou-se para a janela e repreendeu:

Que saco! Por que você não vai brincar de trocar espelho por mão de obra, hein!- Mas antes que pudesse terminar, outra mamona atingiu sua cabeça, fazendo-o franzir o cenho em irritação. Encarando as penas balançantes, Zero cerrou os punhos com determinação.

- Eu não te contei? Aweti aprendeu um pouco português comigo… então cuidado com o que vá dizer, porque ele te entende, hohoho.

As crianças caiam na gargalhada ao ouvir seus grunhidos de reclamação, Clóvis, entendia que aquilo era só uma brincadeira, mas também via o lado de Zero, então, o senhor se levantou colocando dois pedaços de mandioca frita no prato, e o empurrou suavemente em direção a seu discípulo pela mesa, em um sussurro reconfortante ele disse:

- Tente entregar a eles…

Olhando para o prato com um sorriso no rosto, encarou as penas que denunciavam a posição das crianças, caminhou em silêncio até conseguir colocar o prato sobre a travessa inferior da janela, o som da porcelana encostando na madeira chamou a atenção dos indiozinhos.

As pequenas mãozinhas tateavam o peitoril até darem de encontro com o prato, que logo foi puxado, Clóvis colocava a mão frente a boca para tapar as risadinhas que escapavam entre os cantos dos lábios.

As crianças se levantaram e quando iam agradecer pela comida, deram de encontro com Zero, debruçado sobre a janela, admirando os com um sorriso inocente, vendo a velocidade em que eles comeram, o rapaz perguntou:

- É bom, né? Essa é minha comida preferida…- Sua fala foi cortada por gritos desesperados.

- AHHH! - berraram os irmãos que saiam correndo em direção a floresta, procurando abrigo no primeiro arbusto que acharam.

O sorriso que se quebrava junto do prato ao cair no chão, a mão esticada que caia sem esperança sobre a janela, em uma tentativa falha de se entrosar, sua má reputação parecia já ter cavado sua cova.

Clóvis, parecia sentir a dor do rapaz, então em silêncio, Zero catou os cacos, voltou caminhando cabisbaixo em direção a mesa da cozinha, devolveu os cacos do prato na superfície de madeira, e deu as costas para o senhor, que logo tentou confortar o rapaz, dizendo:

- Ei, tá tudo bem… São apenas crianças, da próxima vez você consegue… Por enquanto, apenas tome seu café e…

- Desculpa… Eu perdi o apetite…- Interrompendo com essas palavras num tom seco, Zero, saiu da cozinha cabisbaixo com uma tentativa falha de esconder suas emoções.

Deitado sobre as sombras das folhas de uma amendoeira, Zero se banhava na solidão e tentava largar suas mágoas no ar, na esperança que o vento as levasse para longe junto com o canto dos pássaros que ecoavam pelo local.

Clóvis que vinha em sua direção banhado pela luz do sol que iluminava o campo, se sentou ao lado do rapaz, entregando-lhe um livro, dessa vez era um livro que até então o jovem não tinha visto na prateleira junto dos outros, o senhor então, perguntou:

- Quantas horas demoraria para você conseguir ler esse livro?

Zero analisou o livro, capa dura, pintado de azul com um garotinho segurando uma coroa e uma rosa, escrito: Pequeno, médio e grande príncipe. O livro parecia ter entre cento e vinte páginas, no entanto, no final do livro haviam folhas rasgadas, pareciam ter sido arrancadas bruscamente, o rapaz se virou para Clóvis e calmamente, perguntou:

- Estão faltando folhas aqui no final, o que houve?

- Ah… Isso é coisa da minha neta, ela não gostou do final, lembro até que ela ficou chorando, hohoho…

- Entendo, acho que eu demoraria uns dez minutos para ler tudo isso…

- Hohoho!- gargalhou o senhor- Você é incrível! Como consegue ler tão rápido e entender ao mesmo tempo?

- Eu não sei… - resmungou Zero- Parece até que eu fui treinado para isso! Haha…

Algo vinha assolar a cabeça do jovem, fazendo dar uma boa puxada de ar aos pulmões e olhar para os céus, perguntando um tanto quanto dramático:

- Por que o senhor é tão gentil comigo? Você tem pena de mim? Me vê como um filho? Ou apenas faz isso por obrigação?

Clóvis abriu um sorriso, ajeitou os óculos sobre o nariz e admirando o céu, assim como o rapaz, com o olhar perdido entre as nuvens, respondeu a ele em tom dramático, mas carregado de experiências da vida:

- O mundo não foi tão gentil comigo, eu sofri, tive que batalhar e lutar para conseguir conquistar o que eu tenho hoje… O mundo não foi gentil comigo porque é dominado por pecadores, não que eu não seja um, afinal todos somos, o que muda é que eu não deixo que meus pecados ou tudo aquilo que me fez mal, recaia sobre você ou sobre os outros, no entanto muitos já deixaram pecados deles caírem sobre mim.

Ganhando a atenção do rapaz, que agora escutava atentamente cada frase que saia de sua boca, o senhor continuou, dizendo:

- Você tem algo considerado pelos índios como uma coisa ruim, assim como minha cor de pele era considerada por muitos algo ruim, mas não importa o que você tenha, nem o que as pessoas acham disso, o que importa é, quem você é! Eu sei que você vai conseguir aprender a controlar isso melhor. Quem faz o mundo, somos nós, então comece o mudando por você!

O olhar cintilante que ganhava vida, enquanto ouvia a tudo aquilo, aguçava os ouvidos, que continuavam escutando com atenção:

- Na bíblia, amar é um mandamento, ajudar você é uma forma de amor, Eu não me importo se você carrega um demônio, você não merece morrer por causa disso… Você já provou para mim que é um bom garoto, agora só precisa mostrar isso a eles!

O olhar de Zero vacilou por um instante e de sua boca, saiu:

- E se eu não for um bom garoto?

- Como assim?- Perguntou Clóvis.

- Nesses últimos dias, eu tenho tido sonhos… Sonhos muito ruins…

- O que tinha nesses sonhos?

Uma lágrima começou a escorrer do rosto do menino, sua voz começando a falhar, dizia:

- Eu tinha uma mãe, um pai e um irmão… Eu segurava a mão deles feliz, até que eu e meu irmão fomos puxados por alguém, enquanto eles tentavam segurar nossas mãos de novo. Todo dia machucavam eu e meu irmão… Até nosso cabelo ficar vermelho, perdemos nossa liberdade e ganhamos força… Foi muito cortado, cada momento passava muito rápido no meu sonho… Eu entendi poucas coisas dele.

Clóvis deveras preocupado, sentia a verdade e o pesar nas palavras sofridas do menino, e apreensivo, perguntou:

- Tinha mais alguma coisa no seu sonho? pode me contar, não fique com vergonha…

Com dificuldade, Zero continuou, dizendo:

- Eu ganhei um número no pulso direito, o número zero, e meu irmão também, mas eu não lembro qual era o dele… Nós éramos encaminhados para missões e… e…

Seraph assumiu o controle e com um grande sorriso demoníaco, encarou Clóvis com um olhar assustador enquanto acendia seu olho de dragão, proclamando em tom ameaçador:

- Ele matou muitas pessoas! Em nome da Arca! E agora bom pastor? Tem coragem de tratá-lo como um igual? Tem coragem de tratá-lo com… AMOR?

Pela primeira vez, Clóvis estava com medo, e repetiu incrédulo uma de suas palavras:

- A..Arca? Esse jovem… Pertence a corporação Arca? A mesma que cometeu o atentado no Amapá?

O sorriso do demônio crescia ainda mais, o olho brilhante, encarava a alma de Clóvis com malícia, enquanto o demônio resmungava:

- O que é isso? Esse ódio dentro de você? O que tem dentro desse seu coração frágil?

O olhar de Clóvis perdeu o brilho, suas mãos cerraram, sua face começou a sair da bondade para a raiva e sem perceber sua boca obedeceu a pergunta do demônio, respondendo:

- Minha esposa morreu no ataque da arca no Macapá, capital do Amapá, em uma festa que o prefeito fez na cidade, minha esposa foi para lá visitar a mãe dela que estava com problemas de saúde enquanto eu tomava conta da fazenda, ela havia me ligado dizendo que a mãe dela havia melhorado um pouco e que iriam sair para ver o festival, elas foram mortas durante o ataque junto com o prefeito e outras pessoas, tendo um total de trezentos e cinquenta e oito mortos.

O demônio gargalhava, chegando mais perto do senhor, ele pegou uma faca que estava em um dos bolsos da calça do velhinho, colocou-a na mão de Clóvis, e trouxe a mão dele próximo ao pescoço de Zero, em uma gargalhada doentia, Seraph começou a atentar o senhor:

- Ele matou várias pessoas, uma delas pode ter sido a sua mulher, então mate o, corte a garganta dele, só assim poderá se vingar!

A energia vermelha exalada por Seraph envolveu o ambiente, afetando o discernimento do velho Clóvis. Seus olhos transbordaram de raiva, sua mão, que segurava a faca próxima ao pescoço de Zero, tremia visivelmente. O suor frio escorria por seu rosto, sua respiração se tornava irregular, e seu coração batia descompassado. Embora Clóvis tentasse manter-se firme, seu corpo parecia agir por conta própria, cedendo às emoções que o dominavam.

- E agora, pó da terra? Onde está o amor que tanto prega? - zombou Seraph, desafiando-o com suas palavras. Em seus olhos, eu sei que não está! HAHAHA! O amor é bom... Mas a vingança é muito melhor...

A ponta afiada da faca pressionava o pescoço do menino, deixando um corte leve que começava a exibir vestígios de sangue. O sorriso sinistro de Seraph persistia em seu rosto, enquanto a faca fazia sua marca na carne de Zero. Sentindo a lâmina penetrar sua pele, o demônio começou a revirar os olhos e a abrir a boca, como se saboreasse cada momento da agonia do garoto. As bochechas de Zero se esticavam perigosamente, à beira de se romperem, enquanto Seraph, em meio a suspiros satisfeitos, sussurrava:

- Eu sabia que você não iria resistir... Falta pouco... Um pouco mais de força e tudo estará acabado... Ninguém pode salvar essa criança, o destino dele já está traçado. O inferno será o novo lar dele, e quando tudo estiver acabado, será o seu também. HAHAHA!"

Misteriosamente, sem aviso prévio ou possibilidade de prever tamanho acontecimento, ambos tiveram uma grande surpresa ao presenciar o espírito de Deus que desceu naquele lugar. Não era possível ver seu rosto, somente seu brilho e calor. Neste mesmo instante, o controle do corpo foi devolvido a Zero. Uma mão estava no ombro do garoto, outra estava na mão de Clóvis, que incrédulo baixou a faca.

Clóvis largou a faca no chão, e seu olhar arrependido deu de encontro com o de Zero, que não conseguia controlar o choro. Um calor repentino encheu os pulmões de ambos, o calor que aumentava em seus corações, corria por todo o corpo, purificando seus espíritos e enchendo suas almas com amor. Tamanho conforto e segurança recaídos próximo de um pai, fazia seus olhos transbordarem e suas gargantas fecharem.

Parecendo já ter concluído o trabalho, o espírito sumiu e Clóvis, sem perder tempo, abraçou o garoto. Os dois choravam como crianças tiradas do peito da mãe. Zero não compreendia ao certo o porquê daquilo ter acontecido ali, mas tinha uma estranha certeza em seu coração de que conhecia aquela coisa.

(A) Entretanto, Clóvis sabia muito bem o que aquilo significava, e foi graças a aquele ocorrido de que teve certeza que fez a escolha certa, e que aquele menino, era o motivo dele ainda estar vivo nesta terra.

- Desculpa! - Gritava o menino com as lágrimas escorrendo pelo rosto.

- Não, eu que te devo desculpas… - Diz Clóvis - Deus tem um propósito para a sua vida, confie nele e ele te guiará! Te matar não vai trazer minha mulher de volta. Um dia antes de você aparecer na tribo dos Yanomamis, Deus me revelou em um sonho que eu ajudaria uma criança. Essa criança andava acompanhada de um cão em uma grande carruagem, e carregava consigo uma espada, um escudo, uma coroa, um cajado, uma máscara e uma borboleta… Essa criança levantava por seu caminho outros instrumentos como este… Eu não sei quem você foi, mas eu vejo que mudou. Não somente eu, pelo visto… Confio em você. Não importa quem você foi no passado, isso não interessa mais. Continue assim! Você tem uma oportunidade que muitos queriam ter e não podem. Você teve uma segunda chance! Um membro da arca se voltar contra ela mesma pode ser a chave para bater de frente com aqueles assassinos… O mundo vai precisar de você! E é uma honra servir a Deus e te guiar no propósito que os céus têm para a sua vida… - Se afastando um pouco e olhando para os céus, Clóvis disse - Deus… Então eu ainda sou útil para alguma coisa?

Infelizmente, aquele momento de comunhão e comoção, foi interrompido por um forte ronco de motor, que chegava à porta do “mini sitio”.

- Se esconda!- Dizia Clóvis secando as lágrimas- Devem ser os garimpeiros, não tente falar com eles, me entendeu!?

O jovem esgueirou-se pela mata rápida e silenciosamente, a sua visão do carro ficou em uma distância favorável, escondendo-se atrás de um agrupamento de Alpínias, que havia próximo às árvores, e como um espião, ficou a espiar o que iria acontecer ali, Clóvis corria para atender os homens que saiam do carro.

Todavia, os dois homens que saíram do carro, caminharam junto de Clóvis, em direção a varanda da casa, e acabaram saindo da visão de Zero, que angustiado, continuou sorrateiro pela mata, como se já estivesse habituado a fazer isso como um soldado.

Circulando a área foi até a caminhonete 4x4, e aproveitou-se da janela aberta para fuxicar os pertences do homens que Clóvis havia pronunciado com tanto temor, silenciosamente entrou e analisou os itens ali, havia alguns papéis e possíveis documentos, escrito: 50 quilos de ouro 16,500,000 R$, já vendido.

Havia outros papéis mas ele ignorou, abrindo o porta malas, se deparou com um bilhete escrito: Eai seus Zé ruelas, apareceu uma nova proposta de um fazendeiro para a gente fazer um desmatamento rápido, mas antes tratem de ir cobrar aquele pastorzinho, lá, dos índios, dessa vez foi mais difícil driblar os índios e a guarda ambiental, se eu tiver que matar muitos deles de uma só vez pode ser que a mídia se alarme demais, apesar de eu já estar tentando comprar alguns jornalistas para mim. 313.

Ao ler a numeração no final Zero se sentiu confuso por um momento, talvez se perguntando o por quê de uma numeração tão aleatória estar escrita no final da carta, mas de repente a atmosfera pareceu cair em seu ombros, sua mão tremia e pelo vidro escuro observava a maldade no olhar dos homens para Clóvis, alguma coisa parecia se encaixar, uma forte dor de cabeça assolou o menino, que gemendo de dor, enquanto levava as mãos próximas à cabeça, recebia um choque de pequenas memórias, até que sem perceber, disse:

- O autoritário do véu rubro… - Escapou de sua boca- A Arca… Tá envolvida nisso…

O coração de Zero disparou ao ler o bilhete, sentindo um misto de choque e indignação ao compreender o teor da mensagem. Aquelas palavras revelavam uma trama sombria, onde vidas humanas eram tratadas como peças descartáveis em um jogo de ganância e destruição.

Zero pressentia algo ruim, que poderia acontecer a qualquer momento, sem perder tempo, saiu do carro pela mesma janela que entrou, pelos pontos cegos entre a mata circulou, até chegar próximo a casa, se escondendo em um ponto favorável onde podia ficar.

- Em uma semana, Clóvis nunca recebeu nenhuma visita…- Resmungou Zero mentalmente.

Os dois homens tinham vestes do cotidiano, ambos usavam jeans, um deles exibia uma pistola na cintura, por dentro da calça, apertada por um cinto de couro legitimo, um de regata, outro de blusa xadrez, um careca enquanto o outro com tanto cabelo que fazia um rabo de cavalo, o de rabo de cavalo tinha pele branca, o outro era pardo, mas a malícia era visível no olhar de ambos.

- Tá querendo faltar hoje “seu Clóvis”?- Diz o careca com o nariz empinado.

- Não!- respondeu Clóvis, rapidamente- Eu só tive um pequeno atraso…

- Um pequeno atraso, né?- Resmungou o careca mexendo na arma em sua cintura.- E se eu desse um pequeno atraso na chegada de remédios para a tribo dos índios?

- Não por favor! Eu juro que foi um acidente, não vai acontecer de novo…

A mão de Zero fechava com raiva, o de rabo de cavalo deu um passo à frente e disse:

- Nós temos um acordo, se lembra? Os índios confiam em você… Então você engana eles jogando a vigia deles para um canto qualquer do mapa ao mesmo tempo que quando o exército ou a guarda florestal ao qual o senhor já trabalhou chegar para tentar ajudar e pedir a sua opinião, você os engane, assim todos se perdem, enquanto a gente cata o ouro de outro lugar… Como a gente vai pegar o ouro sem alguém para apontar uma direção falsa?

O careca apontou a arma para o queixo do senhor e o ameaçou dizendo:

- Se um acidente desse acontecer de novo, os índios que você tanto ama, vão sofrer um acidente de novo, hahaha! Seria uma pena se alguém botasse fogo na floresta de novo, né? Hahaha!

- Não, por favor, não!- diz Clóvis.

Um barulho de celular tocando, parou as ameaças, o de rabo de cavalo atendeu o celular, depois de alguns murmúrios, um sorriso malicioso surgiu no rosto dele, desligando o celular ele olhou para Clóvis, e debochando, disse:

- Falando em queimada, acabamos de fechar com mais um fazendeiro, diz ele, que se a gente botar fogo numa área por aí, ele vai mimar bem a gente…

- Não! Vocês prometeram! Vocês prometeram que não iam queimar mais nada por aqui de novo! ARGH!- Clóvis recebeu um forte soco na barriga, que o fez cair no chão.

- Foi mal velhinho, dinheiro compra qualquer coisa nesse mundo, até mesmo a vida de uns índios que ninguém se importa. Se vale menos do que ouro, então não me interessa, hahaha! A melhor coisa que o chefe fez foi tirar as armas desse otário…

O olho de dragão se acendeu em seu rosto transbordando ódio, e com ele, notou uma pena familiar que rapidamente cortou ponta a ponta do cenário com suas cores verde e amarela, era Aweti, posando com seu arco apontado em direção ao de rabo de cavalo, seus escuros olhos esbanjaram ira, tristeza e lágrimas concentradas em suas pálpebras, mas com determinação, ele vencia o medo dos homens, que assustados, viraram para o menino.

Seu irmão menor se jogava, abraçando a cintura de Aweti, numa tentativa falha de impedi-lo, a destreza e coragem no olhar daquele menino, espantou os homens e preocupou Clóvis e Zero, que ficaram pasmos diante daquela atitude repentina.

A ponta da flecha brilhava com uma espécie de gosma que tinha ali, e sem exitar, olho no olho, Aweti disparou.

De seu pequeno arco, a flecha saiu como um raio, assobiando no vento, indo de encontro com o abdômen do meliante com rabo de cavalo.

- Aaaaah! - gritou desesperado o alvo humano.- Filha da puta! Minha barriga!

O meliante desceu os joelhos até tocar no chão, enquanto se retraía e colocava as mãos sobre a flecha e o sangramento não demorou muito para começar a manchar sua roupa.

Clóvis não sabia como reagir, Zero admirou a coragem do menino, enquanto via o homem cair de joelhos mas, ambos não notaram a pistola, que desapareceu do cinto do careca, e que agora, atirou contra as crianças.

- Não!!!!!!!

A tensão atingiu seu ápice quando os disparos ecoaram pela clareira, perfurando o ar com sua ameaça mortal. O desespero tomou conta de Clóvis, que gritou em vão enquanto os tiros cortavam o ar em direção a Aweti e seu irmão. O estampido dos tiros foi seguido pelos gritos agudos das crianças e pelo som do impacto das balas contra o corpo do valente Aweti, perfurando suas costelas e outra pegando no seu braço esquerdo.

Sem hesitar, Zero se colocou entre as crianças e o perigo iminente, agindo como um escudo humano diante da violência desmedida. Sua destreza sobrenatural permitiu que ele desviasse os tiros com movimentos ágeis, como se estivesse dançando em um campo de batalha mortal.

O olhar furioso de Zero perfurou a alma do agressor, deixando claro que não toleraria mais nenhum ato de covardia. Sua determinação era palpável, uma aura de proteção envolvendo aqueles que estavam ao seu redor.

O agressor, surpreso com a resistência inesperada de Zero, recuou vacilante, suas mãos trêmulas segurando uma arma agora sem munição. A incredulidade estampada em seu rosto revelava o medo de enfrentar um adversário que parecia mais do que humano.

- Que porra é essa?!?!?- Gritou o covarde

- TSC! Finalmente achei um humano que sente medo nesse fim de mundo!!! Eu vou adorar saborear suas inseguranças enquanto mastigo o seu tutano!!- A resposta de Seraph, ao assumir o controle temporário, foi um eco do perigo que habitava dentro de Zero, um aviso sombrio da força que podia ser desencadeada a qualquer momento. Mas mesmo com sua presença sinistra, a determinação de Zero em proteger os inocentes permaneceu inabalável.

Zero retomou a posse do corpo e avançou dando um chute circular na arma, arremessando ela longe, em seguida, seu pé mal tocou no chão e já voltou de sola no meio do peito do meliante, a força exorbitante arremessou o homem até a porta do carro que estava distante, que se amassou com a pancada.

O rosto de Zero se contorceu em uma expressão de fúria descontrolada, seus olhos brilhavam com uma intensidade assustadora, e sua figura parecia se transformar diante dos olhos atônitos dos espectadores. Os traços de Seraph começavam a se manifestar de maneira avassaladora, os espinhos e garras emergindo de sua pele, aumentando ainda mais o ar de terror que emanava dele.

O agressor, agora sem fôlego e desorientado, tentou desesperadamente se levantar e fugir, buscando refúgio do outro lado do carro. Mas a presença avassaladora de Zero, imbuida pelo ódio indomável de Seraph, era como uma tempestade iminente, envolvendo tudo ao seu redor em uma aura de perigo iminente.

O medo se espalhava rapidamente entre os presentes, enquanto a energia sombria que envolvia Zero parecia crescer a cada instante, consumindo tudo em seu caminho. O ódio ardente, tão intenso quanto as chamas de um dragão, dominava sua mente, anulando qualquer vestígio de compaixão ou razão. Era como se uma besta primordial tivesse despertado dentro dele, sedenta por destruição e vingança.

Mas tudo isso se desfez, com um toque no ombro dado por Clóvis, como se um balde de água fosse jogado em sua cabeça, todo aquele sentimento desapareceu, e Zero pode ouvir o grito de Clóvis:

- Meu filho!!! A criança!!!!

Com a visão turva pelo calor da batalha e a adrenalina ainda pulsando em suas veias, Zero viu Aweti caído, ferido pelo ataque impiedoso. Seu coração se apertou ao ver o sangue escorrendo do corpo do jovem indígena, enquanto seu irmão, desesperado, chorava abraçado a ele.

Mas o perigo ainda não havia passado. O careca, indiferente ao destino de seu companheiro caído, já se encontrava dentro do carro, tentando desesperadamente dar partida e fugir da cena do crime. Zero cerrou os punhos com determinação, sabendo que primeiro precisava ajudar as crianças.

Ignorando o criminoso que escapava, Zero se aproximou rapidamente de Aweti e seu irmão, pegando-os nos braços com cuidado. O pequeno Yanomami, assustado e confuso, resistiu a princípio, mas logo entendeu as intenções de Zero ao ouvir suas palavras reconfortantes na língua nativa.

- Calma- Diz Zero na língua Yanomami- Eu preciso levar ele até sua tribo para seu irmão salvar, por favor, ajudar vocês eu quero! O caminho você precisa me apontar!

Com Aweti e seu irmão em seus braços, Zero olhou para o garoto Yanomami e pediu sua ajuda para encontrar o caminho até a tribo. Seu desejo sincero de ajudar era evidente em suas palavras e em seus olhos, enquanto se preparava para embarcar em uma jornada em direção à salvação, carregando consigo a esperança de um novo começo para aquelas crianças e para si mesmo.

O indiozinho secou as lágrimas e rapidamente apontou uma direção.

- Certo! Vamos lá!- Diz Zero disparando a toda velocidade.

- Você vai conseguir!!- Gritou Clóvis.

O sangue agora, manchava sua calça larga verde, e seu tênis preto, ele se preocupava até mesmo em como manter Aweti em seus braços com medo de fazer movimentos que o prejudicasse muito, então optou por dar tudo de si em sua disparada.

O pequeno índio, ficou surpreso com a velocidade que rapaz corria, seus cabelos lisos ao vento, que passava zunindo por suas orelhas o encantavam, enquanto o Aweti em seu braço acordava lentamente e começava a rir, Zero confuso, perguntou ao menino:

- Deve ser uma piada muito boa para te fazer rir numa hora dessas…

- A flecha estava envenenada, veneno de sapo eu botei, haha… ai!- Diz Aweti, com a voz fraca e o olhar perdido.

- Essa criança é mais homem que você! seu imprestável! Aprenda com a coragem e força dele- Resmungou Seraph, em sua mente.

Zero deu um sorriso balançando a cabeça em negação, mas sem perder o foco continuou correndo, e respondeu dizendo:

- Tinha me esquecido que você sabe português, você ficou chateado com o que os homens disseram, não é mesmo? Mas nunca mais faça isso de novo, Aweti! Você poderia ter morrido! Tem sorte de não terem acertado seus pontos vitais.

O garoto já quase desmaiando, sussurrou:

- Yanomamis morrem por doenças que esses homens trazem a nós, eu morrer lutando para que isso acabe, sou forte, sou guerreiro…

Aquelas palavras pesaram em seu coração, o silêncio que se fez naquele momento, agonizava tanto quanto ver aquelas crianças feridas, Zero vendo o menino desmaiar em seus braços, não poupou esforços para apertar o passo, a fim de tentar chegar o mais rápido possível na tribo deles e conseguir ajudar.

(SEGREDO)

(A muito tempo atrás, os homens perderam a capacidade de falar a mesma língua, esse fenômeno foi chamado de: A primeira chave mental. Chave mental se refere a um bloqueio no cérebro humano, referente a algo que deva ser bloqueado e retirado da percepção humana, colocado lá por algo ou alguém, como por exemplo, a primeira chave mental foi posta por Deus, e ela existe dentro de todos os seres humanos até os dias de hoje.).

Brauns
Enviado por Brauns em 17/05/2024
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