Cap. 2- A luta pelo controle

Sob um céu estrelado, um mar vermelho às suas profundezas esconde, não havia ondas ou barulho, nem sequer o vento era presente, diante da escuridão do céu noturno acompanhado daquele silêncio perfurante, Zero, flutuava rente ao espelho d´água.

Brilhando fraco como uma estrela anã, sua silhueta se destacou em meio a escuridão, seu braço e olho direito faziam falta em seu corpo luminoso, uma aura azulada cobria-o como vestes, diante a calmaria, uma voz misteriosa e aterrorizante repentinamente despertou sua consciência.

Quem é você?

Suas pálpebras se abriram lentamente, o olhar de Zero logo foi de encontro com os da coisa, a figura demoníaca que encarava o jovem, se encontrava abaixo do espelho d’água, seus dois olhos grandes olhos julgavam a alma pura, analisando cada detalhe.

Grandes garras ele tinha, e causavam terror, seu grande corpo quase três vezes maior que o garoto, transmitia uma força sobrenatural.

Mesmo que a visão de um demônio para alguns fosse algo horrendo, os olhos do rapaz não se desviavam e nem transmitiam sentimentos covardes, muito pelo contrário, ele admirava o ser como se estivesse olhando para alguém igual a ele.

- Por que não tens medo de mim? Teu olhar não se espanta e teus joelhos não tremem, quem é você?- Perguntou novamente a criatura, agora em tom mais ameaçador.

Confuso, Zero tentou entender o que era tudo aquilo e onde estava, analisando o brilho que saia de si, olhando para as partes de seu corpo que faltavam, seu olhar procurava respostas, mas não encontrava nenhuma em lugar algum, ele voltou o olhar ao demônio e respondeu com sinceridade:

- Eu não sei… Estou a procura de quem eu sou, mas não me acho em lugar nenhum… Me sinto… Incompleto.

Zero rapidamente trouxe sua mão próximo a garganta, e surpreso, admirou-se que era possível falar normalmente nesse lugar, diferente do mundo real, onde até então, não havia conseguido dizer nada, o demônio começou a rir, e respondeu surpreso:

- Não encontro mentiras em suas palavras, nem temor, a verdade caminha contigo, és inocente demais para esse mundo, gostaria de morrer para mim antes que morra para os seus iguais? Digo isto, pois seres puros como tu, costumam ser cassados até a morte, então saiba que pelo menos eu, serei gentil, e te proporcionar eu uma morte indolor, tenho certeza que os anjos terão piedade da sua alma, e você irá para um lugar melhor, enquanto eu usarei seu corpo da maneira correta, seria um vassalo de grande valor para mim! Se quiser podemos fazer uma troca, posso te dar tudo o que os homens desejam! Só necessito do seu corpo como moeda de troca…

O jovem escutou tudo aquilo com atenção, estudando um pouco mais o próprio corpo, mas seu olhar deu de encontro com o céu estrelado, ao qual faltavam constelações e tendo entre as estrelas partes quebradas como vidro, assim como a lua que estava pela metade, sua atenção se perdeu por ali, dando as costas para o demônio e ficando perplexo com a estranha beleza daquele lugar, sua resposta saiu esbanjando seu desejo tão puro:

- Eu quero ficar aqui admirando esse céu mais um pouco, esse é meu único desejo…

- Como ousa dar as costas para mim seu verme!- Resmungou o demônio ofendido com a atitude.

Enraivecido, tentou atacar Zero pelas costas, mas no espelho d’água, um símbolo apareceu, o mesmo símbolo da tatuagem no peito do garoto, as garras e os socos do demônio, não eram capazes de atravessar o espelho d’água, que deixava a água dura como uma parede de concreto.

O garoto virou o olhar com pena para o demônio, ao ver a face do menino, a besta golpeou contra o símbolo mais uma vez, e enfurecido, o demônio gritou:

- NÃO OLHE PARA MIM ASSIM!!! O único digno de pena aqui é você!

Repousando a mão gentilmente sobre a água, indo de encontro com a mão demoníaca, que era 3 vezes maior que a sua, Zero observa sua pequena mão, comparada com a dele, e perguntou gentilmente:

- Qual seu nome?

- Nem sequer me conhece?! Eu sou Seraph, o demônio que enganou os seis grandes príncipes do inferno! Antigo querubim de ômega!- Responde Seraph, irado com o humano.

O olhar de Zero se perdeu no corpo de Seraph, analisando o demônio, e tentando entender o vulto preto ao qual ele era banhado, sua forma não era muito visível, faltavam detalhes em seu corpo, a luz vermelha que emanava ao redor de seu corpo, as pulseiras de ouro em seus braços, em seus pés e em seu pescoço, seus olhos de serpente, sua grande boca e seus 6 chifres ao redor de sua cabeça que pareciam servir de trono para um terceiro olho, idêntico ao olho de dragão que se destacava com brilho vermelho sobre o tapa olho de Zero, essas eram as únicas coisas realmente possíveis de se ver claramente e que naquele momento, conseguiam descrever algo sobre sua identidade, o menino após analisar tudo isso, não conseguiu compreender o motivo da raiva dele, com um tom confuso e sereno, lançou a pergunta para a enorme criatura:

- Como um ser tão grande e forte como você, se abala com palavras tão simples de alguém tão fraco como eu?

Essas palavras fizeram o demônio dar um passo para trás, seu rosto em uma mistura de nojo e espanto, tentavam entender o que estava acontecendo ali, Seraph se perguntava em sua mente:

- Quem esse pó da terra acha que é?! Como ousa falar assim comigo? Ele deveria me temer! Deveria estar de joelhos… Pedindo com tristeza e angústia que eu perdoasse a existência dele!

- Poderia, por favor, parar de resmungar em pensamentos? É que eu estou com dor de cabeça…- reclamou o jovem massageando os cabelos.

Seraph o encarou incrédulo, dando mais um passo para trás, ele se resguardou, e não conseguindo esconder seu temor, perguntando:

- Como você sabe o que eu estou pensando? Isso é impossível, um mero pó da terra, não poderia… como? Será esse selo? Não conheço, argh… Não lembro de ninguém que consiga fazer um selo tão complexo quanto este.

O selo se apagou, o olhar de Zero voltou ao demônio, e sem entender, ele perguntou:

- Por que eu deveria ter medo de você? Acho que você também pode sentir meus sentimentos, assim como eu sinto os seus, eu sinto em você medo, angústia, nojo, tristeza e raiva. Eu já senti isso também, você é como eu, a diferença é que você só é bem mais feio, hahaha…

O demônio desconcertado, tentou retrucar:

- Não… Eu não sou como você, você me lembra muito os nefilins, mas isso é impossível, eles morreram a muito tempo atrás… Argh! Nossas memórias foram tiradas de nós, isso me irrita… Mas isso não vem ao caso agora… Argh, você ainda vai ter medo de mim, pó da terra, até lá, não entre no meu caminho!

O demônio desapareceu imergindo nas águas escuras. Zero observou seu desaparecimento, voltando sua atenção para o céu estrelado. Seu espírito parecia repousar sobre a superfície da água, como uma pena caindo suavemente. De repente, o céu se abriu e as estrelas começaram a cair ao seu redor. Um túnel de luz se formou, descendo dos céus e trazendo-o de volta à realidade.

Ao abrir as pupilas sob a intensa luz do dia, Zero sentiu-se zonzo, mas logo percebeu que estava de volta ao mundo real. Observou seu corpo e, aliviado, notou seu braço direito intacto. Porém, ao examinar o entorno, percebeu algo estranho.

Deitado sobre a terra seca, ele ouviu sussurros desconcertantes ecoando ao seu redor, junto com a luz ofuscante do dia. Ao investigar a origem dos ruídos perturbadores, avistou três índios apontando lanças de madeira em sua direção. Enquanto isso, outros membros da tribo observavam cautelosamente pelas portas e janelas ao longe.

Os três índios mantinham Zero na mira, atentos a cada movimento que ele fazia. No entanto, o que mais chamava a atenção era a presença de homens apenas, além de um menino pequeno com um semblante sério, empunhando um arco e flecha rudimentares feitos de fibras de palmeira. A fina flecha apontava diretamente para o rosto de Zero.

Os homens exibiam cabelos escuros e lisos, cortados em um estilo peculiar. Desenhos negros adornavam seus corpos, enquanto todos usavam cintos de algodão, nos quais pendiam panos com padrões de ondas desenhadas à mão, cobrindo suas partes íntimas. Braçadeiras feitas de algodão tingido com urucum envolviam seus braços.

Sentado sobre a terra, a sujeira manchava a sunga branca de Zero, tornando-a vermelha pelo sangue dos animais ali caçados. O chão fazia parte de uma vasta área cercada pela casa, que se estendia como uma muralha ao redor. Os homens à sua frente exibiam coragem e habilidade, enquanto encaravam Zero com firmeza. O menino, imitando a vestimenta e o corte de cabelo dos homens, cutucou a bochecha de Zero com o arco, mas foi repreendido por um dos homens.

Zero ignorou a provocação e continuou observando. À sua frente, vislumbrava-se uma grande montanha, enquanto atrás da casa estendia-se uma varanda coberta por um teto de folhas secas, sustentado por vigas de madeira. Uma parede ao fundo exibia algumas janelas e portas, através das quais mulheres e crianças espiavam cautelosamente.

Então tentando se comunicar, Zero com um sorriso sem graça, acenou com a mão em sinal de paz alienígena, dizendo:

- Eu vim em paz…

Mas os índios não pareciam confortáveis com a sua presença, Seraph enfurecido com a falta absurda de conhecimento do menino, resmungou enfurecido em sua mente:

- Que porra é essa?!?!?! Eles são índios! Não alienígenas, seu verme imprestável!

Engolindo seco, respirou fundo para tentar uma nova abordagem:

- Foi mal, na minha cabeça fazia sentido…

- Desprezível…- Resmunga Seraph.

De repente, um dos índios sussurrou algo incompreensível - "Nabëbë" - Zero franziu o cenho, sem entender o que ele quis dizer, e acabou interpretando errado:

- Bebê? - Zero repetiu, encarando o índio de cima a baixo com uma expressão perplexa. - Olha, se você me chamasse de estranho ou invasor, eu até entenderia, mas 'bebê'? Haha... Isso fica ainda mais estranho vindo de um cara todo 'neandertal' como você. Mas, cada um com seus gostos, né? A gente respeita...

Os índios trocaram olhares confusos, sem entender absolutamente nada do que Zero acabara de dizer, e voltaram sua atenção para o garoto. Zero começava a ficar preocupado com o que poderiam estar cochichando, quando a voz de Seraph ressoou do fundo de seu ser, bufando com desgosto:

- Eles não te entendem... Prefiro estar no inferno a ter que presenciar tamanha estupidez...

- Seraph, você consegue entendê-los?- Zero perguntou, esperançoso.

- Infelizmente, eu entendo qualquer um de vocês. Línguas diferentes não diferenciam intenções, mas você é burro. Um pedaço vazio de carne. Não vai entender sobre o que estou falando. Resumirei em um benefício que vai ajudar a nós dois: eu posso fazer você entendê-los, mas quero um pouco da sua energia da vida como moeda de troca. - disse Seraph, em um tom malicioso.

Mesmo não gostando do demônio, o jovem tentava analisar sobre o que poderia acontecer se entregasse sua energia a Seraph, mas ao ver os índios olhando com medo para ele, logo cedeu à tentação, e respondeu com seriedade:

Contanto que não me mate… Lembre-se estamos perdidos juntos nessa situação, tente não tirar proveito de mim ou podemos acabar morrendo juntos aqui!

- Hahaha!- Uma risada debochada ecoou em sua mente- Eles não vão matar a gente, estão apenas se defendendo, o que realmente importa é que… Temos um trato feito!

Na área do selo em seu peito, um brilho fraco emanou por um instante, indicando que o acordo estava selado. O selo concluiu a troca equivalente, enquanto Seraph recebia a energia de Zero com um lambo de satisfação, deixando o garoto sentindo um choque percorrer até sua cabeça, ativando sua percepção sobre a língua desconhecida.

Entre todo aquele momento de tensão, um senhorzinho apareceu vindo de dentro da casa, seu olhar temeroso encontrou-se com o de Zero, e por um instante, permitiu que o rapaz observasse cada detalhe de seu corpo. O senhor ostentava uma pintura preta que riscava sua face da testa até a parte esquerda da bochecha. Em sua cintura, um cordão de algodão estava amarrado como um cinto, com um pedaço de pano com ondas pretas preso, cobrindo suas partes íntimas. Laços de algodão tingidos de urucum cruzavam seu peito como bandoleiras.

- Pajé? Esse é o homem branco, que caído próximo ao rio estava. Dentro dele, algo ruim habita.- dizia um dos índios que estavam à frente de Zero, em um tom de cautela e preocupação.- Trouxemos também a cabeça da onça que ele matou, matar o animal para se proteger não há problema, isso não nos espanta, mas dessa vez, assustados ficamos pois a cabeça arremessada foi a quase cem metros de distância do corpo dele, e encontramos fincada perfeitamente no galho de uma árvore…

O pajé encarava amedrontado o jovem, enquanto este continuava a sussurrar com Seraph, buscando alguma forma de comunicação. Parecia que o senhor havia identificado o idioma de Zero, pois cochichou algo para um dos índios ao seu lado, que prontamente saiu pela porta da casa. Enquanto isso, todos os presentes julgavam Zero e sua aparência, como se ele fosse uma aberração, enquanto nada se resolvia.

De repente, sons de passos pesados ecoaram do lado de fora, até que chegaram rapidamente à porta da casa. Um homem negro, careca e usando óculos retangulares adentrou o recinto, vestindo calças militares, um chapéu de fazendeiro pendurado no pescoço e botinas pretas. Sua pele enrugada denunciava sua idade avançada, e ele parecia cansado, como se tivesse corrido bastante.

O pajé dirigiu-se a ele e, em sussurros nervosos, trocaram palavras, tentando entender a situação. Zero inclinou a cabeça para espiar através da fresta entre os índios, mas o garotinho marrento entrou na frente, bloqueando sua visão com uma coragem que não condizia com seu pequeno porte. Seraph, aproveitando a oportunidade, não hesitou em dar sua opinião sobre o que fazer:

- É só bater… Dá para colocar essa prole em seu devido lugar com um só tapa… apesar de que, devora-lo não parece ser uma opção ruim.

- Deixa de ser esquisito, capeta! Por que toda essa sede de sangue?- Perguntou o garoto mentalmente ao demônio.

- Vocês são fracos, mas a energia de suas almas é infinita, depois que morrerem, vou transformá-los em gado, do jeito que fazemos no inferno, só se come uma alma em situação de guerra, fazer isso é um ato desesperado para sobreviver, o certo é comer a energia da vida que a alma de vocês produz, até que seu espírito se ajoelhe, e depois de um dia se renove, então podemos reiniciar o ciclo, até conseguir energia o suficiente para virarmos deuses…- dissertava Seraph em tom maligno dentro do cérebro do garoto.

Depois de encarar as palavras do demônio em silêncio, o jovem fez uma pergunta com seriedade:

- Sua vida deve ser bem triste, né moço?

Seraph parecia querer retrucar com algum argumento, mas o homem negro estava vindo até Zero e cortou sua linha de raciocinio, com um olhar gentil, ele se sentou a frente do garoto, reclamando da dor de suas costas, ajeitando o oculos, e com um sorriso fez sua pergunta:

- Qual o seu nome, minha criança?

Naquele momento, a energia pesada que Seraph havia criado desapareceu, substituída pela calma e gentileza na voz daquele homem, que parecia irradiar paz ao ambiente. Ele olhava para Zero sem demonstrar nenhum medo, ao contrário dos índios ao seu redor.

Um dos índios, com pinturas de folhas caídas desenhadas no rosto e segurando uma lança, alertou sobre o perigo que o homem branco representava, dizendo que ele carregava um espírito maligno. Porém, o senhor negou com um gesto tranquilo:

- Está tudo bem.- respondeu ele.- Abaixem as lanças, vocês estão apenas assustando-o.

Apesar da relutância inicial, o índio finalmente baixou sua lança, e os outros seguiram seu exemplo, sob o olhar aprovador do pajé. O homem negro agradeceu e voltou seu olhar para Zero, demonstrando uma atitude mais amigável.

O senhor se aproximou mais um pouco, respirou fundo e dirigiu-se ao rapaz com um tom de voz tão calmo que poderia acalmar até mesmo um dragão:

- Pode ficar tranquilo, eles não vão te fazer mal. Que tal eu me apresentar primeiro? Meu nome é Clóvis! E o seu?

Zero coçou a cabeça, buscando uma resposta. Fragmentos de memórias quebradas corriam de uma ponta a outra de sua mente, mas nada trazia as respostas necessárias. Foi então que ele se lembrou da cápsula de metal e do nome gravado nela:

Zero, respondeu o menino acuado.

Uma das sobrancelhas de Clóvis se ergueu, indicando sua surpresa diante de um nome tão peculiar. Ele pareceu fazer uma expressão temerosa, mas logo se forçou a voltar com bondade e a restabelecer sua postura. Repetiu, desacreditado:

- Zero? Que nome peculiar... De onde você veio?

- Eu... eu não sei.- murmurou Zero, sua expressão carregada de confusão.- Eu não me lembro. Tem muita coisa que eu não consigo lembrar...

Clóvis pareceu preocupado, enquanto um dos índios pediu para que traduzissem o diálogo para eles também.

- Esperem um instante, por favor.- respondeu Clóvis.

Ele se virou mais uma vez para Zero e continuou a falar:

- Não tem problema, eu tenho uma casa próximo aqui, posso cuidar de você até que você se recupere, lá eu construí uma xapono que uso de igreja para os índios… Você não deve saber mas, essas casas são chamadas de xapono, interessante, não? Para você ficar mais familiarizado com o ambiente esses as minhas costas são, João, Amon e Akun, o pequenino é filho de Akun, o nome dele é Aweti, ele é a criança mais valente daqui.

Seraph se sentiu ameaçado por um momento e resmungou rapidamente na mente de Zero, falando enraivecido:

- Pergunte a ele se ele é um profeta! Agora!

- Por que? O que houve?

- Eu não me sinto bem perto dele... Eu quero sair daqui! Corra e quebre aquelas paredes! Agora!

Zero, sentindo o pânico crescer, perguntou a Clóvis com uma voz trêmula:

Você é um profeta?

Clóvis, surpreso com a pergunta repentina, respondeu com cautela:

- Sim, você conhece algum profeta?

- Não...

Clóvis fixou um olhar confuso em Zero, que se recusava a manter contato visual. A tensão no ar aumentou enquanto Zero lutava para controlar o medo. Preocupado, o senhor logo perguntou, sua voz carregada de apreensão:

- Você está bem?

Zero se afastou um pouco, balançando a cabeça em afirmação, sua ação um tanto forçada refletia a crescente agonia que tomava conta de seu corpo. Clóvis se aproximou, estendendo a mão em direção ao ombro dele. O olhar do garoto seguia a mão se aproximando lentamente, enquanto uma vontade desesperada de evitar qualquer contato crescia dentro dele.

Finalmente, a mão de Clóvis tocou o ombro de Zero, e uma energia percorreu sua espinha, desencadeando um despertar enraivecido.

- NÃO ENCOSTE EM MIM, PÓ DA TERRA!!!.- Berrou Seraph, assumindo o controle do corpo de Zero de forma abrupta.

Clóvis se assustou e caiu para trás, enquanto os índios, assustados, ergueram as lanças novamente e avançaram em direção ao garoto. Amon arremessou sua lança em direção ao abdome de Zero, enquanto João preparava um golpe descendente em direção à sua cabeça, e Akun avançava com a lança em direção ao coração.

Então, algo surpreendente aconteceu. O olho da verdade ascendeu no lugar onde antes havia uma simples faixa, assumindo uma forma que lembrava um olho de dragão. Em um movimento rápido como um raio, o braço direito de Zero segurou a lança arremessada por Amon, posicionando-a acima de sua cabeça para se defender do golpe de João e empurrando a estocada de Akun para o lado.

No meio daquela cena, o tempo parecia ter desacelerado. Zero encarou os três índios com um sorriso demoníaco, e emitiu um rugido poderoso que ecoou pela área, amedrontando todos ao seu redor e os paralisando de medo.

Entretanto, um ataque surpreendeu Seraph, escapando de sua percepção. Aweti, com precisão mortal, disparou uma flecha que encontrou o alvo na coxa de Seraph. O demônio, incrédulo por ter permitido que tal ataque passasse despercebido, abaixou o olhar para a flecha cravada em sua carne, retirando-a com violência. A ferida, mesmo em um piscar de olhos, fechou-se, mas seu olhar irado se voltou em direção à criança paralisada.

Seraph avançou com garras afiadas em direção ao pequeno, pronto para desferir o golpe final. No entanto, antes que sua garra pudesse alcançar a cabeça indefesa da criança, Clóvis se lançou à frente, os braços abertos em um gesto desesperado de proteção. Palavras foram proferidas por Clóvis, embora Seraph não pudesse discerni-las, e, de repente, a batalha tomou um rumo inesperado.

Subitamente, Seraph perdeu sua força e controle sobre o corpo. Suas garras retraíram-se, voltando ao estado normal, assim como os espinhos de sua armadura desapareceram. A última visão registrada pelo olho de dragão de Seraph foi a de Gabriel, postado atrás de Clóvis, encarando-o com seriedade.

Uma sensação estranha percorreu todo o corpo de Seraph, como se fosse purificado por uma corrente de água. Seus músculos relaxaram e sua consciência se esvaiu, levando-o ao desmaio. Zero, milagrosamente, desfaleceu, poupando a todos da iminente morte.

O corpo do jovem, após o embate, tombou inconsciente nos braços de Clóvis, que o recebeu com calma, embora seu coração estivesse acelerado e sua respiração ofegante.

Após o ocorrido, Zero despertou em um ambiente reconfortante e acolhedor. Encontrava-se deitado em uma cama macia, envolto por um cobertor quente que lhe proporcionava conforto. Ao erguer o olhar, percebeu os galhos que sustentavam as palhas secas no teto, criando uma atmosfera rústica e aconchegante ao seu redor. Para sua surpresa, ao lado da cama, estava Clóvis, que havia permanecido ao seu lado, adormecido em uma cadeira de balanço, abraçando um livro com uma cruz adornada em sua capa.

Enquanto assimilava o cenário ao seu redor, Zero refletia sobre a situação que o trouxera até ali. Em conversas posteriores, Clóvis compartilhou a verdade sobre os índios e o demônio que habitava em seu interior. Contudo, em meio aos desafios enfrentados, havia também uma oportunidade de redenção: o pajé, confiando na determinação de Clóvis em ajudá-lo, concederam-lhe uma semana para que Zero aprendesse a controlar aquela entidade. Era um período de recuperação e aprendizado, marcado pela esperança de um novo começo e pela solidariedade encontrada naquele lugar.

Durante essa semana intensa, Zero mergulhou em um turbilhão de aprendizado e descobertas ao lado de Clóvis. À medida que os dias passavam, ele absorvia não apenas conhecimentos sobre o mundo ao seu redor, mas também sobre a própria essência de Clóvis e sua generosidade inigualável.

O terreno que cercava a casa de Clóvis, embora simples, era um verdadeiro refúgio de paz e tranquilidade. Ali, o jovem pôde observar de perto a rotina campestre, onde galinhas ciscavam o chão, porcos se reviravam na lama e uma vaca pastava serenamente nos campos. Tudo aquilo fora um presente dos índios, em agradecimento aos inúmeros atos de bondade e auxílio prestados por Clóvis à comunidade.

A casa de Clóvis, além de ser seu lar, tornou-se também um local de encontro espiritual para os índios, que ali encontravam conforto e esperança em suas preces e ensinamentos. No entanto, a presença de Zero gerava controvérsias entre os habitantes locais, que o viam com desconfiança e temor, apelidando-o de "demônio da onça" e alimentando histórias sobre sua suposta natureza maligna.

Apesar das adversidades, Zero encontrava em Clóvis um verdadeiro mentor e amigo, cuja dedicação e compaixão iluminavam os dias sombrios do jovem.

Entre os dias tranquilos na casa de Clóvis, Zero enfrentava um desafio interno constante. Embora ansiasse por absorver os ensinamentos sobre a Bíblia e Deus, sua jornada era constantemente interrompida pelo tumulto causado por Seraph, que tomava as rédeas de sua mente e distorcia as explicações, tornando-as confusas e superficiais.

Além disso, as noites eram palco de uma batalha silenciosa entre Zero e Seraph. O demônio, ávido por energia, tentava semear o medo na mente de Clóvis, utilizando-se de artimanhas sinistras, como imitar o choro de crianças e produzir ruídos sombrios pela casa. No entanto, Clóvis permanecia imperturbável diante das artimanhas de Seraph, mantendo-se firme em sua fé e sua calma inabalável.

Mesmo quando a casa era revirada e móveis eram quebrados pelo demônio em um desesperado pedido por reação, Clóvis continuava sereno, emanando uma paciência e compaixão que desafiavam qualquer adversidade. Seu coração, impregnado de bondade, servia como um escudo protetor contra as investidas malignas de Seraph, mantendo Zero seguro em meio ao caos interior.

As noites mal dormidas se transformavam em dias cansativos para Zero, que enfrentava não só a exaustão física, mas também o tormento das crianças da aldeia que pareciam se deleitar em atormentá-lo. Aweti e seu irmão, acompanhados ocasionalmente por outro pequeno travesso, eram presenças constantes na casa de Clóvis, onde não perdiam a oportunidade de perturbar Zero com suas brincadeiras cruéis, como arremessar mamonas em sua direção.

Apesar das dificuldades, Zero encontrava refúgio nos livros, especialmente sob a sombra de uma antiga amendoeira próxima à casa. Era ali que ele se entregava aos contos de fantasia, sonhando com um mundo onde pudesse ser um herói e salvar sua princesa. No entanto, os risos das crianças e os olhares de reprovação dos adultos logo o traziam de volta à dura realidade, ferindo sua alma e minando seus sonhos.

À noite, Clóvis tentava realizar exorcismos para libertar Zero do domínio de Seraph, mas todas as tentativas eram em vão. O demônio, irritado com sua prisão, travava uma batalha constante com Zero pelo controle do corpo, tornando cada dia uma luta interna e angustiante.

Apesar de todos os desafios, Zero encontrava momentos de leveza e aprendizado ao lado de Clóvis. O senhor compartilhava histórias de seus dias no exército, ensinava-o a cuidar da casa e dos animais, e até mesmo lhe proporcionava lições de culinária, mesmo que os resultados nem sempre fossem os melhores.

Clóvis se tornara uma figura paterna para Zero, ajudando-o em momentos de desespero e compartilhando amor e carinho, algo que o rapaz havia sentido falta por muito tempo. Em meio a todas as adversidades, esses momentos se tornaram preciosos para Zero, preenchendo seu coração de calor e esperança.

E assim, sem perceber, uma semana se passou, deixando em Zero uma mistura de sentimentos, mas também um profundo agradecimento pelo apoio e cuidado de Clóvis em sua jornada.

Brauns
Enviado por Brauns em 16/05/2024
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