O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna
por Márcio Adriano Moraes
Uma comédia dividida em três atos, O Santo e a Porca é uma peça teatral escrita por Ariano Suassuna em 1957, na qual o autor utiliza personagens e situações caricatas para explorar questões morais e éticas, ao mesmo tempo em que faz críticas à hipocrisia e à ganância. Marcada por um forte simbolismo, as personagens representam diferentes aspectos da sociedade e da natureza humana. Sua composição se aproxima da literatura de cordel e dos folguedos populares típicos do Nordeste, com uma trama repleta de humor e ironia.
A história se desenrola na casa de Euricão Árabe, um homem avarento e mesquinho que idolatra uma porca de madeira, herdada de seu avô, cheia de dinheiro. A porca, portanto, representa o bem material que contrasta com Santo Antônio, de quem Euricão é devoto. Essas duas personagens são consideravelmente representativas e trazem uma leitura antitética da condição humana que vive entre o profano/o dinheiro (porca) e o sagrado/o espiritual (santo).
Dessa forma, Suassuna, a partir de uma trama simples, explora um tema mais profundo: a relação humana entre o mundo material e o espiritual. Assim, o texto não se apoia apenas no humor, mas principalmente em uma perspectiva crítica. É importante que o leitor perceba que o comportamento de Euricão evoca os conflitos religiosos característicos do período barroco. No entanto, esse conflito, tão presente na natureza humana, se destaca pelo fato de o personagem não conseguir desfrutar de sua própria riqueza.
O cerne do enredo gira em torno das ações de Euricão, o qual simboliza a avareza – um dos pecados capitais. Seu objetivo é obter ganhos materiais através da porca, o que acaba por envolver outras personagens na trama. Benona, Margarida e Caroba, ou seja, as personagens femininas, têm ligações diretas com o protagonista, as quais estabelecem uma relação de dependência emocional e financeira: Margarida é a filha, Benona é a irmã, e Caroba é a criada. As personagens masculinas são inseridas na história por meio dessas mulheres, as quais estão ligadas ao protagonista, gerando conflitos que visam a realização de casamentos como objetivo principal.
As personagens-tipo são usadas para ressaltar características alegóricas, criando um ambiente cômico, sem perder de vista o aspecto reflexivo-filosófico proposto pelo autor. Dodó (redução do nome Eudoro, o que pode indicar submissão ao pai) é típico apaixonado, o qual deixa os estudos para viver devoto ao amor que nutre por Margarida. Esta, por sua vez, também encarna a típica moça romântica, cujo nome “Margarida” está associado à “pérola”, por isso a metáfora do “tesouro” de Euricão. A flor “Margarida” é considerada a flor das donzelas, da juventude e do amor inocente. Benona, tia de Margarida, também traz o romantismo da eterna apaixonada, devota ao seu amor do passado, no caso Eudoro. Ele já incorpora o velhaco que busca no casamento uma fuga da solidão, por sua boa condição financeira também representa a burguesia. Pinhão, criado de Eudoro, é o moço dos ditados populares, a voz do povo dentro da peça, bem astuto. Ele só não é mais esperto que Caroba, sua amada, criada sagaz que articula as ações a seu favor, contribuindo para que todos consigam seus objetivos. Bem, quase todos, pois Euricão cairá na angústia ao saber que o dinheiro dentro de sua porca já não valia mais nada.
Como praticamente toda obra de Ariano Suassuna, O santo e a porca é repleto de intertextos. O mais significativo e explícito é a associação com a obra do autor latino Plauto Titus Maccus (c. 250-184 a.C), Aululária. Nessa peça, o protagonista, o velho Euclião, encontra na lareira de sua casa uma panela cheia de moedas de ouro deixada pelo avô. O casamento de sua filha com um velho rico é o motivo que dá origem a todas as ações da obra, a qual traz diálogos cheio de ambiguidades, gerando os conflitos da comédia. Assim como na peça de Ariano Suassuna, o personagem Euclião também tem suas devoções: aos deuses Hércules e Júpiter. Há ainda outras associações entre essas duas obras, como a casa de Euricão/Templo de Santo Antônio com o Templo de Bona Fides; a Festa de São João com a Festa de Ceres; o Cemitério como Bosque de Silvano; o Hotel de Dadá com o Mercado (Fórum). Eis por que o próprio Ariano Suassuna chamou a sua peça de “imitação nordestina de Plauto”.
Em suma, O Santo e a Porca é uma peça teatral que vai além da comédia superficial ao oferecer uma análise aguda das fraquezas humanas e das distorções morais da sociedade. Através de personagens caricatos e situações absurdas, Suassuna revela a ganância desenfreada e a hipocrisia que permeiam as relações humanas. A idolatria de Euricão pela porca simboliza a obsessão pelo dinheiro, enquanto os conflitos gerados em torno dos casamentos de Benona e Eudoro, Margarida e Dodó, e Caroba e Pinhão representam as tensões entre interesses materiais e valores autênticos. A peça é um convite para refletir sobre os limites éticos e espirituais da busca pela riqueza, ao mesmo tempo em que diverte com diálogos sagazes e um enredo cheio de reviravoltas. O Santo e a Porca é, pois, obra atemporal que continua a despertar reflexões sobre a natureza humana e suas contradições.