Dos Cortiços à Luz e O Rei de Amarelo— Percepções
Recentemente, retomei a leitura de O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, edição de 2014, com uma maravilha de introdução feita por Carlos Orsi. Decidi ler esta obra já que quero retomar leituras sobre insanidade e monstruosidades, após ter sido presenteada com o lindo trauma de ler O horror em Red Hook, no qual o único horror era que Lovecraft conseguiu me fazer tremer de raiva pela sua xenofobia, situação que me fez dar o livro para um amigo meu… e agora me questiono se de fato sou uma boa amiga, pois é… c’est la vie!
Um dia antes de finalizar o conto O reparador de reputações (e agora você já deve ter entendido que quando eu disse que “retomei a leitura”, na verdade, eu não havia terminado o primeiro conto), um amigo me emprestou o livro Dos Cortiços à Luz, de Renato Queiroz, de 2020, com um excelente prefácio cheio de referências de Daniel Neves e ilustrações muito charmosas e cheias de emoção (com destaque para a da página 24) feitas por Davi Oliveira.
Quando meu amigo me entregou o livro, falou muito bem dele, inclusive me entregou um dos ouros da narrativa que no final “era tipo a cena do carrinho de bebê do O Encouraçado Potemkin”. Nesse ponto fiquei muito curiosa e muito puta da vida, já que seria uma grande surpresa, mas como disse para esse querido depois dele se desculpar “agora foda-se”. No entanto, ele me falou mais a respeito e inclusive me alertou, preocupado com minha visão levemente desiludida do mundo, sobre o fundo trágico e social da história e — muito tocada com aquela fofura de pessoa — só pude responder “eu vejo notícias e ando na rua, se essa tragédia é fictícia, fico até feliz”. Mas o resumo da ópera é: ele me convenceu a querer ler por conta própria o livro e isso é muito bom, já que a princípio eu leria porque ele estava muito feliz e queria me emprestar e sou terminantemente incapaz de dizer “não” para minhas amigas e meus amigos. Uma pena não perguntarem se eu gostaria de fazer com eles o que penso, mas não falo.
Comecei a ler. A Parte 1 e metade da 2 foram brutalmente engolidas. No segundo dia, logo pela manhã, retomei minha refeição a partir do belo corpo partido ao meio da Parte 2 e, mesmo com pena, devorei a Parte 3 e mastiguei lentamente o Capítulo XII (que meu amigo já tinha me avisado de que era uma peça de fino preparo) para separar com a língua cada um daqueles cortes. Digeri aquela história ao longo do dia e na janta resolvi requentar o resto do primeiro conto de O Rei de Amarelo e finalizei aquele prato.
Para minha alegria, aqueles nutrientes absorvidos pelo meu estômago geraram a seguinte cena: uma lâmpada se acendeu na escuridão de minha mente e logo estourou quando viu o que revelou. Porém, aquele clarão serviu para eu ter uma Percepção sobre a obra de Renato Queiroz que girava em torno da personagem Dona Ictéria, uma senhora que é, nas palavras do narrador:
Uma velha amarelada, num vestido também amarelo.
Espero que já esteja imaginando aonde quero chegar…
Carlos Orsi, em sua literal e histórica introdução da obra de Chambers, descreve que o amarelo era, no final do século XIX, “o matiz do pecado, da podridão, da decadência, da loucura”. Orsi também diz que os livros do decadentismo francês chegavam nas terras bárbaras, exóticas e colonialistas da Inglaterra encadernados em amarelo e que até mesmo uma crítica sobre a primeira edição de O Retrato de Dorian Gray diz ser “um livro gerado pela literatura leprosa dos decadentes franceses — um livro venenoso, cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual” e, uau, eu apertaria a mão de Wilde 1000 vezes por isso! Inclusive, foi essa crítica que me fez parar O Rei de Amarelo e ir correndo consumir cada página de Dorian Gray.
Não quero ser injusta, por isso devo dizer: Dona Ictéria em nada se mostra, enquanto personagem, como esse ser de adjetivos tão edificantes. Porém, a senhora em questão é descrita quase inteiramente como alguém amarelo, é quase como se ela fosse a cor amarela personificada e, por favor, guarde esta colocação.
Na obra de Queiroz, vemos da infância até a morte de Paco, tudo na segunda metade do século XX. Aos 15, Paco sai de casa por se desentender com o pai e vai para a região da Luz, na capital de São Paulo, para viver um sonho artístico e onde passará o resto da vida vivendo de música e assaltos, mas uma das primeiras coisas que ocorrem é a entrada de Paco na pensão da mulher supracitada.
Note o quão interessante é interpretar a dona da pensão como a cor amarela. Paco é recebido pelo amarelo para morar em sua pensão e, após isso, passa a ter uma vida de “moral decadente”, numa visão moralista de uma sociedade conservadora doentia, uma vida de “atos degenerados”, colocada aqui como a parte de seus furtos e assaltos — situações para as quais ele foi empurrado por essa mesma sociedade podre — e numa vida “decadente na saúde”, e aqui entram a cocaína e o crack que ele passou a consumir, mas que por mais que a sociedade do amarelo não o tenha ajudado, vamos lá né Paco, caiu na famosa “pilha errada” da personagem Elias, só dou um desconto porque ele não sabia do mal que fazia já que estava no começo do “bum” da cocaína.
Lógico, Dona Ictéria não era quem influenciava Paco, mas pode ser vista como o símbolo do ponto de virada na vida de Paco, em que ele passa a viver essa vida marginal aos conceitos de “correto” impostos pela sociedade (e, de forma anacrônica, dos conceitos de correto da OMS, mas nesse caso devemos ouvir a OMS com respeito a algumas drogas).
Além disso, Paco é mostrado como alguém que ruminou a vida toda a ideia do seu desafeto de infância, Miro, e a sua paixão de infância, Marieta. Inclusive, Paco, perto de seu fim, resolve que quer casar com Marieta, mas completamente cego a sua condição crescente de dependência química, sem mesmo perguntar a si mesmo quais sofrimentos causaria para a sua amada.
Todos esses elementos, ao longo do livro e ao final, mostram alguém que, para um bárbaro, agressivo e exótico crítico literário inglês do século XIX, poderia estar tomado por uma “loucura”, ou melhor, uma “loucura amarela” (se bem que nos séculos XIX e XX não era difícil ser classificado como “louco”, eu mesma com certeza teria sido trancada num sanatório… daquela época só quero ler a respeito e me espantar com o fato de haver parlamentares em nosso país com pensamentos do período… e as roupas, é claro, havia vestidos maravilhosos, mesmo os mais simples). Esse “crescimento da loucura” de Paco pode ser simbolizado pela morte da dona da pensão e pelo prédio ter sido pintado de amarelo. Ou seja, a “corrupção” não estava mais abraçando Paco (recebendo o aluguel) e ofertando um mundo para ele viver (um lugar para dormir), agora a “corrupção” era o seu mundo (onde residia).
É importante dizer que, tal qual a icterícia é algo que aflige o ser humano, sendo a Dona Ictéria uma vítima dessa doença, esse Amarelo simbólico que abraça e se torna a vida de Paco nem sempre existiu, teve uma causa. As convenções sociais binárias sobre certo e errado, moral e imoral, as convenções sobre posse, como posse do filho, posse das vontades, posse da vida do cidadão, a constante necessidade do “normal” convencional de colonizar as vidas alheias, criam essa entidade do horror literário: o Amarelo.
A sociedade violenta, possessiva e intolerante que marginalizava o Sr. Wilde e enlouqueceu Hildred Castaigne, através de uma medicina psiquiátrica restritiva, em O reparador de reputações, é a mesma sociedade bestial e visceralmente infernal que, em Dos Cortiços à Luz, destruiu a vida de Paco e fez Antonia ser agredida e exposta pela sua primeira paixão e que depois a forçou, através de sua exclusão, a buscar sobreviver, em meio à violência, através da prostituição e da droga, e no fim, a deixou à própria sorte e doente. E, em momento algum da vida de todas essas 4 personagens, a sociedade “correta” deixou de ser um parasita de seus corpos e mentes.
A minha percepção da presença do Amarelo na obra de Queiroz e Chambers me faz lembrar do pernilongo, que injeta um veneno naquele de quem vai sugar o sangue. Nessas duas obras o pernilongo é a sociedade. Essa sociedade é um parasita que usa do Veneno Amarelo para imobilizar sua presa numa condição de degenerada, segundo seus critérios, e à força a uma vida destrutiva para se alimentar dela até o último suspiro.
O que me entristece é que, tal qual uma superbactéria que foi artificialmente selecionada através de antibióticos, observo uma sociedade que vem sendo combatida pelas lutas por justiça social, mas que agora dissimula seu Veneno Amarelo, pois aprendeu que assim pode continuar marginalizando suas presas e se aproveitando mais ainda delas. Seja num serviço de streaming que faz séries com a população LGBTQIAPN+, só para manter seus assinantes, e depois as cancela alegando que não davam lucro. Sejam governos, de todos os tipos, que nunca cansam de enxugar o grande gelo da solução paliativa para a dependência química.
Há esperança de uma mudança? Não importa, o que importa é fazer a mudança, seja num “bom-dia” para alguém na rua, seja atuar em um projeto social, seja votar em quem realmente propõe mudanças estruturais, seja protestando nas ruas, seja apoiando quem luta, seja desmistificando os conceitos dos intolerantes e plantando a sementinha de dúvida em suas mentes, ou seja, você buscar a própria mudança dentro de si.
A leitura da obra de Renato Queiroz é certamente uma ótima pedida para se divertir e se revoltar. Com este último ponto me identifico muito dentro da minha montanha-russa emocional da vida em que, enquanto corro rumo a uma cova, busco nivelar os trilhos a minha frente para buscar algum grau de equilíbrio e sanidade… parece que vou ter que pausar a leitura de O Rei de Amarelo novamente… A Máscara, te vejo daqui a alguns meses, talvez.
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Muito obrigada pela leitura. Eis o meu primeiro experimento nesse tipo de escrita e estou satisfeita, o que é raro, com o resultado. Diria que espero que gostem, mas com 8 bilhões de pessoas no planeta, devo dizer que tenho certeza que ao menos 1 pessoa vai amar e ao menos 1 vai odiar, então não tenho o direito de me permitir esperar algo diferente de uma gradação infinita de tons de cinza (como tudo na vida) que seriam as opiniões sobre este texto. Se puderem, leiam todas as obras aqui mencionadas.
Beijos de escuridão!
Texto: Lenora Morgue;
Revisão: Ricardo Klausiaitiz;
Edição: Antonio Core.