Celular

A ideia se baseia na proposta de uma narrativa distópica, estruturada na reiteração do fenômeno tecnologia no âmbito social. Há apetrechos tecnológicos para todos os gostos e necessidades, desde os “indispensáveis” smartphones, passando por outros dispositivos como Tablets, Fones Bluetooth, Relógios Smartwatchs e até aquelas opções menos usuais como os E-readers e Assistentes Virtuais. Por que não imaginar que o mundo digital pode ser levado até as últimas consequências, em um experimento baseado em um secreto e belicoso sinal, expandido por meio de alguns desses essenciais aparelhos? O resultado do procedimento virulento é a morte, mas não literal e sim proporcionando a perda da própria identidade, o desvanecimento das lembranças, em outras palavras, literalmente fritando o HD orgânico de milhões de pessoas. 

O enredo até poderia despontar como uma inventiva mostra de ficção científica, estampando pessoas aficionadas por tecnologia a acabarem se tornando verdadeiros mortos-vivos, atribuindo até um pano de fundo com viés metafórico, abrindo margem para as teorias mais estapafúrdias. No entanto, essa ideia não apenas já brotou em outra freguesia como foi executada há quase dois decênios por ninguém menos que Stephen King.  

Já nessa época, mesmo sem tanta opção de conectividade se equiparada a hoje, não era raro mirar um alto número de pessoas aprisionadas ao aparelho de telefonia móvel, seja efetuando chamadas ou seduzidas pela possibilidade de trocar instantâneas mensagens de texto. Por isso, é fácil presumir que a obra não poderia receber outro título senão “Celular”, livro lançado em 2006 e chegando ao Brasil um ano depois através da Editora Suma.   

A narrativa é bem direta e, sem delongas, desenrola-se sob o ponto de vista de Clay Rydell. Vestido de esperança, o protagonista percorre as movimentadas ruas de Boston empunhando seu portfólio, acreditando que poderia vendê-lo e conseguir, enfim, dar o grande salto na carreira. Acreditando porque todos ao seu redor, subitamente, parecem ter sido tomados por uma ira descomunal, manifestada por pura sede de sangue e violência desmedida. O mundo virou de ponta a cabeça e o evento parece atrelado aos celulares, o aparente elo entre as pessoas afetadas, com todas sucumbindo a um misterioso sinal, o tal “pulso”, emitido para os aparelhos do mundo inteiro.   

A partir do surgimento dos Fonoides (sim, o autor tratou de nominar seus temíveis mortos-vivos), “Celular” passou a servir quase como um manual de sobrevivencialismo, no melhor estilo zumbi em honra aos clássicos assinados pelo icônico George A. Romero. No entanto, os Fonoides passaram por evolução e assim, gradativamente, a história foi se desenvolvendo sob uma perspectiva diferente, tornando-se mais sombria do que um mero jogo de gato e rato. Nessa hora, o livro engata a última marcha e reclama pela atenção constante do leitor.  

Embora alguns fiéis leitores de King, simplesmente, torçam o nariz para “Celular”, a trama se mostra apinhada de elementos característicos do autor estadunidense, como suspense e o terror, utilizando sua precisão textual para mostrar a desconstrução da civilização sem abrir mão de elaborar uma crítica social, descortinando as idiossincrasias diante da desenfreada proliferação tecnológica. Com a caneta (ou os dedos) afiada, King elabora uma série de situações umbráticas para estampar uma realidade enevoada e que se tornou ainda mais aterradora tantos anos depois: o homem se torna cada vez mais refém, sob as garras da dependência tecnológica, a ponto de ser primordial que todos necessitem possuir um celular (20 anos atrás) ou um smartphone, evocando a atualidade.  

Apesar de oferecer um desfecho aberto, para alguns olhos até revelando falta de capricho, “Celular” acerta em outros parâmetros, como em conter traços do sublime A “Dança da Morte”, um dos clássicos do autor, sendo também dotado de boa concisão, com personagens bem delineados e cativantes. Definitivamente, não parece ser o perfil de narrativa a protestar por seu lugar entre as melhores obras assinadas pelo mestre do terror. Em contrapartida, além de servir como um prato cheio para os adeptos de distopias e apocalipse zumbi, a leitura deverá ser valorada por funcionar como aprazível opção de entretenimento.  

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 19/10/2023
Reeditado em 19/10/2023
Código do texto: T7912177
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