No universo poético de Fernando Pessoa, a exploração da identidade, da multiplicidade do eu e das complexidades da consciência humana é uma constante. Em seu poema "Não sei quantas almas tenho", o poeta mergulha na reflexão sobre a natureza fluida e multifacetada do self.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
A cada momento, Pessoa se percebe como uma entidade em constante mutação. Ele se estranha e se questiona, admitindo que nunca se viu completamente nem alcançou um estado final. Essa introspecção contínua resulta em uma profunda inquietude interior, a sensação de que, por ser tantos em um só, sua alma nunca encontra paz. Aqui, a alma não é um refúgio de tranquilidade, mas um oceano inquieto de mudanças e contradições.
O poema continua com uma distinção intrigante entre "ver" e "sentir". Quem apenas "vê" não se conecta com a essência mais profunda da existência, enquanto aquele que "sente" mergulha nas profundezas de sua alma. Pessoa parece argumentar que a verdadeira compreensão de si mesmo não é alcançada apenas pela observação externa, mas pela exploração interior de sentimentos e emoções.
Apoiando-se na ideia de que a autoconsciência é fluida e em constante evolução, Pessoa afirma que ele se torna "eles" e não "eu". Ele é múltiplo, uma miríade de identidades que se sobrepõem e se transformam ao longo do tempo. O poeta observa sua própria existência como quem assiste à passagem de uma paisagem em constante movimento, sem nunca se fixar em um estado estático.
A última estrofe do poema ressalta a ideia de que Pessoa está constantemente se lendo como se lesse as páginas de um livro. Ele reconhece que muitas vezes não compreende plenamente a profundidade de suas próprias emoções e experiências passadas, e que o que acredita ter sentido pode se tornar um enigma para ele mesmo. O poema conclui com uma alusão à divindade, sugerindo que Deus, como o autor de sua própria história, é quem realmente conhece o significado de sua existência multifacetada.
"Não sei quantas almas tenho" é uma profunda reflexão sobre a complexidade da identidade e da consciência, apresentando o eu como uma entidade em constante mudança e questionamento.
Fernando Pessoa nos convida a explorar as camadas ocultas de nossa própria alma e a reconhecer a natureza intrincada de nossa existência. É um poema que nos lembra da busca eterna pelo autoconhecimento e da incerteza que permeia nossa compreensão de quem somos.