O PARADOXO DA PEDRA NO RIO DE HERÁCLITO (interpretando mais um aforismo de Nietzsche)

“Não precisais temer o fluxo das coisas: esse rio flui de volta para dentro de si: ele não foge de si apenas duas vezes.

Todo ‘era’ há de ser novamente um ‘é’. Todo vindouro morde o pretérito no rabo.”

ANÁLISE

Ambigüidade na tradução: em duas ocasiões o rio cessa de fugir de si mesmo ou ele foge bem mais vezes (e por que dizer duas vezes neste caso?)? A fluência do rio é a angústia humana (encarado como aspecto negativo do Ser: ‘temer’). Fluir de volta para dentro de si é harmonizar-se, ainda que temporariamente no tempo (linguajar voluntariamente heideggeriano). É atingir a essência (o Ser) no próprio devir. Ora, que o rio sempre está a fugir é um lugar-comum. Ele foge infinitamente de si mesmo. O que Nietzsche é celebrado por haver ensinado pela primeira vez na modernidade (canção já antiga)? Que o rio retorna. O rio deságua todo em seu próprio olho d’água ou manancial depois de as águas terem submergido por um tempo no subterrâneo, até voltar ao transcurso habitual do leito (metáfora para vida, pois é na cama, lugar de repouso e paz, também do sono, vizinho da morte, que a vida é gerada). E retorna infinitas vezes; é só modo de dizer, é verdade. Mas para o indivíduo, para o filósofo, para o ser vivo: quantas vezes? Minha opção é pela primeira semântica da tradução. Se o rio pára de fluir e se reencontra Uno consigo duas vezes, só pode ser em dois momentos: no nascimento e na morte. Porém para nós não faz diferença: é uma vez, na interseção dos dois. Há angústia pelo fluir do rio, não pela morte (um rio não morre, o rio da eternidade nunca seca, a existência nunca deixa de existir, este é seu modo, o da insistência do ser). Tanto quanto não pode haver angústia por haver nascido (a não ser para psicanalistas, que deviam todos estar em manicômios), se esse é o total do ser, e ele nunca foi (um não-ser), por exemplo, pedra. E, supondo que tivesse sido, (não pode) ainda carregar a sabedoria de ser pedra (novo absurdo, meramente expressável porém inconcebível) dentro de si. Nem a pedra no leito do rio nem o homem, o rio, com efeito, têm por que angustiar-se, jamais. Ainda assim, o homem se angustia. É só uma constatação. A pedra mais desesperada do universo não sentiria o menor átimo de ansiedade. O homem no mais remoto dos Shangri-Las e nirvanas ainda sofreria, se angustiaria, bastante. É nosso modo de existir. Por que se angustiar “ao quadrado” com o fato de que a angústia é inevitável? Ainda poder-se-ia dizer que este é o modo de existir do homem, ou ao menos do filósofo! Mesmo que existisse a cura, não obstante, o homem a preteriria, pois preferiria continuar sendo homem.

Rafael Cila Aguiar e Friedrich Nietzsche
Enviado por Rafael Cila Aguiar em 26/06/2023
Código do texto: T7822919
Classificação de conteúdo: seguro