Com Sangue
Quando se fala em “Com Sangue”, coletânea de contos lançada por Stephen King em 2020, todos logo se remetem a pensar na, considerando a ordem de distribuição, terceira das quatro histórias dispostas no livro. Isso se deve, um tanto, por esse conto nominar a antologia e, principalmente, representar o retorno da dileta Holly Gibney. A personagem, amada por muitos leitores fiéis, despertando empatia depois de ostentar aparições bastante expressivas na trilogia “Bill Hodges” - composta pelos livros “Mr. Mercedes”, “Achados e Perdidos” e “Último Turno” – e em “Outsider”, enfim conquistou, após árdua espera, sua primeira narrativa atuando como protagonista.
Assistir Holly entrar em ação novamente, por si só, configura uma experiência inegavelmente aprazível, embora essa insólita trama passe ao largo de despontar como a única carta da manga oferecida por uma coletânea repleta de singularidades. As outras três histórias – “O telefone do Sr. Harrigan”, “A vida de Chuck” e “Rato” – mostram-se inventivas e esbanjam capacidade de evocar momentos aterradores. O resultado não abre precedentes em relação ao mestre do terror, jamais colocando em cheque se o autor estadunidense permanece afiado diante do desafio de compor narrativas mais breves, singrando novamente por um formato que antes lhe permitiu assinar antologias notáveis como “Sombras da Noite”, “Tudo é Eventual”, “Quatro Estações”, entre outras. Os contos e novelas renderam expressivas adaptações, sucessos de público e crítica, a exemplo de “Conta Comigo”, “Um Sonho de Liberdade”, “O Nevoeiro”, “1408”, “Colheita Maldita” e “1922”.
“O telefone do Sr. Harringan”, o conto inaugural da coletânea, possui enredo com começo despretensioso, construindo uma inesperada e peculiar amizade, firmada entre uma criança, o bom Craig, e o idoso Sr. Harringan, um milionário deveras anacrônico que se estabeleceu em uma pequena cidade, vivendo sozinho em sua opulenta morada. A mostra de afeição passou a ser gestada após o aposentado, um inveterado apaixonado por livros, contratar o garoto como seu ledor, possibilitando assim manter-se desbravando narrativas mesmo diante dos limites impostos pela perda de visão, decorrente da avançada idade.
A construção narrativa em primeira pessoa acabou sendo assertiva, conferindo um caráter intimista à trama, muito introspectiva e com reviravoltas inesperadas. Em suma, pode ser caracterizada como uma história sobre amizade, abrindo espaço para o sobrenatural, e com essa inserção gradativamente começa a irromper um tom mais soturno. “O telefone do Sr. Harringan", recentemente, foi adaptado pela Netflix tendo como protagonistas o ótimo Jaeden Martell que atua ao lado do icônico Donald Sutherland.
A “Vida de Chuck”, o conto sequencial, se equiparado aos demais pode ser concebido como a história de maior complexidade da coletânea. Fragmentado em três atos distintos, os eventos são esmiuçados em ordem decrescente e se desenrolando com entrelaçamento, tendo Charles Krantz, o Chuck, como fio condutor. A narrativa, em algumas passagens, pode parecer um tanto desconexa, mas próximo de alcançar seu desfecho, as lacunas vão sendo preenchidas, alvejando o leitor com uma rajada de vivências, atingindo seu âmago, sendo quase impossível permanecer incólume diante da sucessão de acontecimentos.
Nas primeiras linhas, vem à tona um ataque a uma escola infantil, com a forte explosão causando a morte de várias crianças, além de deixar um elevado número de feridos. Assim inicia “Com Sangue”, em ritmo elevado e algumas situações, sem aparente explicação, desafiam Holly Gibney a embarcar em uma perigosa investigação, sem chances de voltar atrás, sendo capaz até de ocasionar consequências graves não apenas para a protagonista, como a todos que estão à sua volta.
Além de ser o texto mais extenso do livro, “Com Sangue” também parece ser a história mais bem ideada, construída com esmero, podendo até despertar certa inquietude pela alta precisão com que retrata um pouco da crueza humana. Sem a mesma pompa, “Com Sangue” também marca o retorne de outro personagem querido, o carismático Jerome.
O fim da orfandade está cada dia mais próximo. A afamada investigadora da agência Achados e Pedidos retornará em grande estilo no romance Holly, com lançamento previsto para setembro deste ano.
“Rato”, conto que fecha a coletânea, apresenta o leitor a Drew, um quase fracassado escritor, que tem sua trajetória literária resumida a publicação de um conto em uma badalada revista. A súbita inspiração para compor uma nova narrativa, é a chance do autor de romper um pouco com sua condição imberbe na amplidão literária.
Disposto a não deixar a chance escapar, Drew decide temporariamente se afastar da família e se isola em uma cabana, levando consigo mantimentos, um laptop, muito papel e uma antiga máquina de escrever. Confinado no local por conta da condição climática, estranhos acontecimentos acometem o pretenso literato, incapaz de traçar se vem sendo vítima do sobrenatural ou alvo de uma “confusão” ideada por sua mente infame.
A curta narrativa, com ares metafóricos, retrata de alguma forma os temores que acometem a jornada, seja dos grandes escritores como também de seus postulantes. Algumas questões, definitivamente, não estão meramente atreladas ao talento ou prestígio conquistado, sendo muito característico da atividade, havendo assim elementos para compor um tétrico conto de fadas.
A despeito de se tratarem de quatro contos com perspectivas dessemelhantes, juntos também carregam um conjunto de similitudes, compondo assim uma antologia matizada. A possibilidade de se identificar mais com essa ou aquela acaba sendo pessoal, diante de um quarteto de histórias viscerais, referendadas por personagens bem delineados e de desmedida complexidade, elementos decorrentes de uma trajetória de transformações ingentes. Além disso, as tramas são alicerçadas pelos característicos traços do autor, evocando a constante reflexão.