Análise comparativa da imagem feminina de uma cantiga de amor trovadoresca e “Garota de Ipanema”
Marcela Borges SANT’ANNA
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo expor uma comparação entre uma das cantigas de amor trovadoresca de D. Dinis, “Quero em maneira de Provença” e uma música pertencente à modernidade, composta por Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, “Garota de Ipanema”. Na cantiga de amor medieval percebe-se a admiração, o respeito, o amor que o trovador tem pela sua dona exaltando suas boas qualidades, seu bom senso, seu grande valor, sua lealdade, sua beleza e de como é formosa. Assim como em tal cantiga a mulher é exaltada pelo cantor, na música, porém, não sendo sua dona, mas uma bela moça que passa, tem-se uma visão positiva e agradável da beleza feminina causando admiração, mesmo sem conhecê-la e nem saber de suas qualidades. Neste trabalho intertextualizarei demonstrando que, apesar de tempos distintos, o eu-lírico continua presente na modernidade. Pretendo, assim, buscar na idade medieval a imagem da mulher equiparando com a mesma imagem, porém contemporânea, distinguindo-as.
Palavras-chave: Trovadorismo. Cantiga. Música. Mulher.
A pesquisa tem por proposta, principalmente, comparar a imagem feminina em duas épocas distintas, a imagem da mulher no período medieval e a imagem da mesma no período contemporâneo, através de duas canções que correspondem, respectivamente, uma cantiga de amor trovadoresca e uma música contemporânea.
Descreverei brevemente sobre vários pontos de vista em todo o período medieval de como a mulher era vista nesta sociedade. Ademais, analisarei estes dois textos, comparando-os.
Inicialmente, comentarei sobre o período trovadoresco, logo depois sobre a cantiga de amor medieval e a música contemporânea, também, a comparação da imagem feminina em duas fases distintas.
O Trovadorismo é uma corrente literária iniciada no século XI, na Provença, e difundida pela Península Ibérica entre os séculos XII e XIV. De acordo com Massaud Moisés (2004, p. 454) a palavra trovador provém do francês trouver e significa achar, ou seja, achar as palavras certas. A lírica trovadoresca está vinculada aos costumes dos senhores feudais recolhidos nos seus castelos que, através do ócio, usufruíam de sua propriedade e paz que lhe convinham. Estes senhores apreciavam a poesia, a pintura, a música e as artes manuais. Os trovadores acompanhados de um jogral e instrumento musical (a viola, o alaúde, o saltério, a exabeba etc.) alegravam as festas nos saraus com suas cantigas exaltando o amor. Cantigas estas que espiritualizava a mulher até o sentido carnal. O trovador obedecia as normas de cortesia – “o amor cortês”, demonstrando vassalagem à dama prometendo servi-la e respeitá-la fielmente, ser discreto, mas ciumento, empalidecer na sua presença, perturbar-se na possibilidade de não ser correspondido, nada recusar à dama, ter sua imagem sempre na memória, ser paciente, polido, sofrer calado etc.
Várias eram as cantigas que os trovadores cantavam, são elas: cantigas de amigo, que exprimia o sofrimento (coita) amoroso da moça do povo; cantigas de escárnio, quando o ataque se processava de modo indiretamente por intermédio da ironia; cantigas de maldizer, quando a sátira era atirada de modo direto e agressivo; e as cantigas de amor, quando o trovador confessava os transes aflitivos da sua paixão incorrespondida, que era destinada a uma senhora da aristocracia.
O principal autor destas cantigas, primeiramente, foi D. Afonso X rei de Leão e Castela, considerado sábio, compôs a grande maioria delas cujo talento artístico chegou a cruzar as fronteiras da Península Ibérica e, posteriormente, na corte portuguesa de D. Afonso III e na de seu neto D. Dinis. Segue a cantiga:
Quero em maneira de Provença
fazer agora um cantar de amor,
e quero muito louvar minha senhora
a quem não falta boas qualidades nem formosura,
nem bondade; e mais vos direis minha senhora:
tanto a fez Deus repleta de boas qualidades
que vale mais que todas as mulheres do mundo.
Pois minha senhora quis Deus faz assim,
quando a fez, que a fez dotada
de todas boas qualidades e de muito grande valor,
e apesar disso é sem vaidade
ali onde vê sê-lo; além disso deu-lhe bom senso,
e depois não lhe fez pouco de boas qualidades,
quando não quis que outras lhe fossem iguais.
Pois em minha senhora Deus nunca pôs mal,
mas pôs boas qualidades e beleza e louvor
e fala muito bem, e ri melhor
que outra mulher; além disso, é muito leal
e por isso não sei hoje eu quem
possa completamente nas suas boas qualidades
falar, pois não há nela exceto boas qualidades.
De acordo com Yara Frateschi Vieira (1987, p. 12), esta cantiga faz parte do Cancioneiro da Biblioteca do Vaticano. É o mais antigo e o mais completo dos cancioneiros. Os demais são o Cancioneiro da Ajuda que contém apenas cantigas de amor e o Cancioneiro da Vaticana, este é bem mais completo que o Cancioneiro da Ajuda, incluindo cantigas de amor, de amigo, de escárnio e maldizer, inclusive as de autoria de D. Afonso X e D. Dinis. O emissor desta cantiga é o eu-lírico masculino, sendo, portanto, o destinatário “mia senhor”, “mia dona”. As características da cantiga de amor têm como tema a coita amorosa, coita nesse sentido significa sofrimento. Os trovadores sofriam de amor considerado amor platônico, sendo, portanto, um amor distanciado por ser a mulher de nível social e moralmente elevado ao do homem. Nesta conotação a mulher está num plano sublime e o homem, por sua vez, na posição de vassalo ou servo e, este, mostra um sentimento mais comedido e não poderia revelar o nome da mulher amada.
A cantiga aqui analisada mostra que a mulher, sua dona, é via de acesso para sua elevação moral. O eu-lírico descreve, exalta e louva suas mais nobres qualidades como pode ser percebido em vários versos da cantiga: “a que não lhe falta boas qualidades nem formosura”, “que vale mais que todas as mulheres do mundo” e, outros mais, que esta é dotada, que é de muito grande valor, não tem vaidade, senhora de bom senso, que denota beleza, fala muito bem, ri melhor, além disso, é muito leal. Portanto, ele tem uma aproximação direta com sua dona.
Uma importante consideração nesta cantiga de amor é a presença da imagem da mulher perfeita e dotada de moralidade, porém, a ausência do seu corpo estimula uma transferência imaginária dos desejos carnais para os desejos do coração.
Durante todo e longo período medieval demonstra vários pontos de vista da imagem feminina: do ponto de vista filosófico, do ponto de vista religioso e do ponto de vista moralista. De acordo com Márcia Maria em seu artigo intitulado “A voz feminina na Idade Média”: “do ponto de vista filosófico, Platão já dizia, pois, foi melhor ter nascido homem”; do ponto de vista religioso, Eva foi considerada má, enquanto Maria, considerada boa e, da vista moralista, fez uma construção da postura misógina. É inviável afirmar que a mulher apresenta somente uma única imagem neste período todo.
Pois muitas se levantaram como mulheres independentes e corajosas. Mas, ainda assim, sua voz era silenciada na voz dos trovadores dando ideia de fingimento poético. Ora, a aristocracia era dominante neste período regido pela elite masculina.
Comparo, aqui, a mulher e sua imagem nesta cantiga de amor trovadoresca com a mulher da canção contemporânea e o seguinte contexto histórico que esta está inserida, a saber: “Garota de Ipanema” de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim composta em 1962 e gravada no ano seguinte. Segue a música:
Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça
É ela menina que vem e que passa
Num doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já passar
Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor
Nesta música, o cantor dá importância ao olhar, vinculado apenas a admiração e a estética sem saber de suas qualidades e se ela é leal ou mesmo se apresenta valores. A música nos remete ao ambiente praiano, das mulheres vestidas sensualmente banhando-se ao sol, também sugere a ideia de liberdade, a beleza da mulher seminua e de tropicalidade. Diferentemente da cantiga de amor, pois apresenta um ambiente palaciano e cortês e ainda de submissão feminina mesmo exaltando suas boas qualidades e não explicitando o corpo. Na música, não somente o cantor a vê passar enchendo-se de graça, mas outros admiram sua beleza caminhando para o mar.
Concluo descrevendo que a imagem feminina neste dado século XXI, mais precisamente, na década de 1962, ano que Vinícius de Morais e Tom Jobim escreveram esta canção, tal imagem feminina era de liberdade, de conquistas, de reivindicações de direitos da mulher e, também, independência financeira até então e, atualmente, muito mais conquistado. Visto que, na Idade Média, a mulher era bastante submissa diante da postura masculina, costumes e tradições da época.
Nota-se, portanto, a expressão de suas vontades, gostos e imaginações através da música, na literatura, na moda, na arte em geral e, conseguintemente, expressando sua sensualidade livremente em sua área de atuação na sociedade, do mesmo modo, com uma conotação sexual bastante admirada e proveitosa no setor midiático. Confirmando, assim, sua força neste século.
Referências
FRATESCHI VIEIRA, Yara. Poesia Medieval. São Paula: Global, 1987.
MARIA, Márcia e FONSECA, Pedro. A Voz Feminina na Idade Média. Faculdade de Letras/UFG, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.sbpcnet.org.br/livro/63/ra/conpeex/doutorado/trabalhos-doutorado/doutorado-marcia-maria. pdf.> Acesso em: 18 abril 2012.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.