A Eternidade Não É Demais, de FRANÇOIS CHENG
A Eternidade Não É Demais
de François Cheng
Editora Bizâncio, 1ª edição portuguesa em 2002.
“Um lótus nasce no lodo dum tanque, mas não há lama que lhe manche as pétalas puras como jade” - provérbio chinês (pág 140).
“A Eternidade Não É Demais” é um romance de François Cheng, nascido na China em 1929, escritor naturalizado francês e membro da Académie Française.
Em “A Eternidade não é demais”, este Autor desenvolve aquilo a que poderíamos chamar a sua Teoria do Amor, pois pretende demonstrar as diferentes vertentes que o Amor pode revelar.
O herói da história é Dao-sheng, um “homem-das-medicinas”, já de meia-idade, que foragido dos trabalhos forçados a que tinha sido injustamente condenado na juventude, se refugiara num longínquo mosteiro taoista.
Embora tendo encontrado refúgio no longínquo mosteiro, Dao-sheng nunca pôde tornar-se monge, pois era intimamente habitado por uma inquietação inconfessada – reencontrar a jovem por quem se tinha enamorado, certa noite, nos seus longínquos 18 anos. Junto dos monges que o acolheram, ele aprendeu a arte da Medicina, para curar os males do corpo, e a arte da adivinhação para ajudar as pessoas e apaziguar as suas inseguranças. Por isso, ele sabe que os males do corpo estão intimamente ligados com os males da alma...
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Esta obra é, não só, uma reflexão sobre o Amor, como um hino ao Amor. O Amor na base da relação entre o Corpo e a Alma, que deverá ser íntima e harmoniosa, isto é, quando a alma está feliz, o corpo rejuvenesce.
Essa felicidade da alma vem da felicidade do encontro entre um Homem e uma Mulher. Um encontro que deverá ser de respeito e confiança, para que se estabeleça uma perfeita comunicação entre os dois seres. Tudo está ligado, tudo é a relação entre ying e yang (página 53).
Mas há, como sabemos, muitas gradações no sentimento do Amor. Há o desejo violento e animalesco, que faz do homem, sobretudo se for poderoso, um predador impune; é o caso do Segundo Senhor.
Há a relação interesseira, que conduz a concubina à submissão e à intriga.
E há o Amor humano que estabelece a comunhão de duas almas, Dao-sheng e Lan-ying, uma comunhão que vivifica o corpo e a alma.
Há ainda os gestos próprios da alma generosa, incapaz de odiar, porque inebriada dessa força transcendente do Amor Universal. Lan-Ying, quando perdoa aos seus raptores, é uma mensageira do próprio “raio de Buda” (pág 66).
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Esta história é situada na China do séc. XVII, no final da Dinastia Ming, momento de viragem social, política e económica, portanto, uma época agitada. É também a época em que os primeiros missionários cristãos, leia-se católicos, chegaram à China: pretexto para o Autor pôr o herói da sua história a dialogar com um dos frades jesuítas que o acaso fez passar pela terra onde vive. Dao-sheng tem oportunidade para confrontar os seus sentimentos, sublimemente humanos, com o mistério do Amor divino.
E há ainda a relação íntima do Ser com o Amor, que não só se exprime através da Arte, Pintura, Poesia ou Música, como faz da Arte uma expressão sublime do Amor universal.
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O Amor, nas diversas formas que pode assumir, é a verdadeira personagem principal desta obra.
Há dois pares com uma função paralela na história:
O primeiro, um par sublime, porque ambos são dotados de uma cultura requintada: Dao-sheng e Lan-ying, que consumam o seu Amor numa relação sublimada.
O segundo, um par mais terra-a-terra, mas não menos comovente: Lao Sun, o criado, que leva a sua vida a juntar o dinheiro necessário para resgatar a mulher que sempre amou, Shun-zi, a criadinha que o Segundo Senhor usara, e depois vendera, levando-a fatalmente ao único destino que lhe era permitido, a prostituição num albergue de passagem para viajantes.
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François Cheng nasceu na China, em 1929. Mas é cidadão francês, o primeiro escritor francês de origem estrangeira a ter assento na Académie Française.
Na sua juventude, viajou por Itália, tendo-se detido em Assis, onde de tal modo se apaixonou pela figura de São Francisco que passou a assinar a sua obra como François, François Cheng.
François Cheng é também poeta e filósofo. “A Eternidade Não É Demais” é um romance, em prosa, narrado por um Poeta. Há aliás uma passagem em que o Letrado explica como escrever Poesia, interpretando um poema antigo (pág 159). Assim, não admira que muitas páginas sejam verdadeiras ‘páginas de antologia’.
“Tu, mulher de linha pura, dotada de grande doçura, mas educada desde a infância para a submissão, sujeita às leis dos homens, à ideia que eles formularam do ser e das virtudes da mulher, quando a força envolvente está em ti, que seguras duas pontas da vida – claro que precisas de tempo para vencer o medo do olhar e das palavras dos outros.” (pág 205).
Uma outra página de antologia, e que é o clímax desta obra, é o casamento celeste entre as estrelas (capítulo 15, particularmente a página 127). O encontro entre Lao-sheng e Lan-Ying é um encontro mudo, transcendente, paralelo ao encontro entre as estrelas Boieiro e Tecedeira.
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Esta obra faz uma síntese entre o Pensamento oriental e o Pensamento ocidental. Tem sido posta em paralelo com as histórias de Tristão e Isolda, ou de Dante e Beatriz... Não só Dao-Sheng e Lan-Ying, mas também Lao Sun e Shun-zi, formam na verdade dois pares dignos de figurar na galeria dos grandes amorosos da literatura universal.
Myriam
10 de Maio de 2020