O Signo da Ira, de ORLANDO DA COSTA
O SIGNO DA IRA
Edição do Círculo de Leitores, 1961
*
Obra publicada pela primeira vez em 1961.
Prémio Ricardo Malheiros, 1961.
*
*
Em primeiro lugar, nesta obra de Orlando da Costa, a primeira característica que salta aos olhos, logo na primeira página, é a beleza da linguagem:
Pág 11/12:
“Quando chegam as monções de nordeste, diz-se que chegaram os terrais (1). Mal sentem esse cheiro a terra que todos os anos desce dos contrafortes dos Gates e percorre o mesmo caminho dos rios e das pequenas cordilheiras até chegar às planícies mais baixas, os búfalos sabem que novamente a terra os espera.
Soprando as copas verdejantes dos cajueiros e das mangueiras e espanejando docemente as olas no alto dos coqueiros, os terrais vão deixando um rasto de fertilidade até encontrarem o mar. À sua passagem, a cacimba cai lentamente e vai ensopando a superfície das terras lavradas e humedecendo o capim das encostas e dos caminhos.
Ao longo das madrugadas um frémito de frescura vem fundir-se com a seca quietação da terra e agitar levemente a superfície parada das águas represadas. Nas alagoas cavadas pelas mãos dos homens as águas aprisionadas às chuvas como que pressentem que cedo se lhes vai abrir um caminho, enquanto a ténue neblina sobre elas suspensa desfaz-se apressadamente, surpreendida pelo dia que surge.
Logo de manhã, aos primeiros sinais do sol, à frente dos pequenos guardadores seminus, as cabeças de longos cornos negros curvados para o chão, os búfalos caminham com lentidão, enquanto remoem o capim, e do outro lado da estrada vermelha, a perderem-se de vistas, os talos decepados do arroz ficam rebrilhando nas várzeas desertas.
Cedo o sol derrama uma luz tépida sobre as copas mais altas, alonga-se pela face da terra ainda húmida e as minúsculas gotas de água vão desaparecendo aos poucos das ervas rasteiras e do focinho inquieto dos animais. É a hora em que nos povoados alguém principia a cantar a meia voz e os pilões fazem ouvir as suas pancadas secas, compassadas e tristes.
Depois o sol alonga-se mais e mais e de muito alto principia a secar tudo à sua volta.”
Nesta primeira página, para além da beleza da descrição, o Leitor é localizado num cenário natural e humano:
= um clima de monções, que situa a acção algures na costa ocidental da Índia; sendo os “terrais” os ventos que “sopram da terra para o largo” (1)
= o gado característico da região: os búfalos;
= a vegetação: o capim, os coqueiros, os arrozais
= elemento da economia: os arrozais; logo, elemento da alimentação: o arroz
= as personagens: pelo menos, as personagens sobre quem se vai fixar a atenção do narrador: são de pequena estatura, chamando o Autor a nossa atenção para o seu vestuário, pois assinala-se que os condutores de búfalos vão “seminus”.
Sobre O SIGNO DA IRA :
O Leitor sente que se encontra perante um poema narrativo. “Poema” pela sensibilidade estética que se desprende de toda a linguagem, sobretudo nas partes descritivas. Obviamente, será um longo poema, pois trata-se de um romance, por definição “uma narrativa longa”. Uma narrativa que disserta sobre uma tragédia. É também um poema de Amor num sentido muito lato, pois nesta obra fundem-se Eu-Cívico e Eu-Poético, no seu amor ao Próximo – personificado nos seres humanos que vivem abaixo das condições mínimas de sobrevivência.
A par da Poesia, é um texto realista, que poderemos integrar na corrente do Neo-Realismo, muito própria da época em que a obra foi escrita e publicada, em 1961.
Esse Amor encontra talvez a sua melhor expressão no episódio em que o padre Antú absolve, em confissão, a curumbina Quitrú, do roubo de um saco de arroz para que fosse distribuído pelas famílias da povoação (pág 196).
A ACÇÃO:
A obra divide-se em quatro partes.
Toda a acção, ou seja, a narrativa é condicionada pela Primeira e Segunda Partes da obra, que compreende a apresentação do ambiente natural e das personagens que o habitam.
A acção propriamente dita começa a desenrolar-se na Terceira Parte – capítulo seis (pág 131), quando a plantação do arroz está madura para a colheita.
A ÉPOCA
Através da confidência do Batcará ao Padre Antú, trata-se de uma época económica muito difícil, uma época certamente de modificação social, produzida pela Guerra... Diz o Batcará, o proprietário rural:
pág 195: “Desde que começou esta maldita guerra – os comerciantes é que tiraram todo o proveito! – dizia bab Ligôr com amargura – não tenho feito outra coisa senão hipotecar as minhas terras! Uma a uma, mas os meus manducares, tenho-os tido sob a minha protecção até agora...
A PAISAGEM NATURAL (paisagem física):
A acção tem lugar numa plantação de arroz, na colónia portuguesa de Goa, na época da II Guerra Mundial (2), com as tropas da ocupação portuguesa em constantes exercícios de treino militar.
Diz o comandante das tropas portuguesas ao Padre Antú:
pág 157: “A sua terra é estranhamente bela, sabe, mas este clima é imperdoável. É o calor, quando faz calor. É a chuva, quando chove. E esta humidade, este peso que se respira sem cessar, os mosquitos, que parece que vocês nativos não sentem... ou então sabem suportar...
– ...Pela graça de deus. Fomos feitos para ela...e por isso ela não nos molesta...”
As PERSONAGENS
As personagens representam diferentes estratos sociais – temos os camponeses, miseravelmente pobres; o senhor das terras; o padre; e as tropas portuguesas de ocupação.
As personagens principais são os servos da plantação de Bab Ligor, o batcará, ou seja, o proprietário, o latifundiário.
Os trabalhadores rurais, os manducares – colonos rurais –, que trabalham para o Batcará. Dentre eles, os “curumbins”, a casta mais inferior, os trabalhadores dos arrozais, representam a parte mais desfavorecidas da sociedade indiana, presentes na colónia portuguesa de Goa, na época atrás referida. Vivem numa abjecta miséria, em habitações elementarmente precárias.
Há que referir que as personagens femininas estão no último degrau da escala de valores desta sociedade exaustivamente estratificada: elas representam “a última das últimas castas”. Dentre elas, salientam-se Coinção, que se oferece para substituir Natrél e que por fim, rouba um saco de arroz para distribuir pela povoação; Natrél, que embora prometida a Bostião, não deixa que o soldado português seja o bode expiatório de toda a desgraça que se desencadeia no final do romance; e Quitrú que se oferece para guardar o arroz roubado...
As outras personagens são, do lado indiano:
O taberneiro
o Padre Antú
o Batcará
Do lado português:
O comandante e as suas tropas
A polícia
Os Portugueses são os ocupantes. As tropas portuguesas não se misturam com os naturais. Só o batcará tem relacionamento com os ocupantes, ou seja, com a Polícia militar.
Os soldados passam na estrada, quando regressam dos exercícios. E vão à noite à taberna do Rumão, onde se embebedam. Fecham a porta e a taberna fica só para eles, o que representa uma afronta para os naturais. Aí, embriagam-se, cometem desacatos e faltam ao respeito ao taberneiro (capítulo 7), partindo-lhe “várias garrafas e copos” (pág 183/184). O taberneiro aproveita-lhes a bebedeira para lhes retirar algumas moedas dos bolsos. Para encobrir os desacatos dos soldados, o taberneiro é preso – e acusado de estar leproso.
As TRADIÇÕES
A obra regista algumas tradições da região.
Em primeiro lugar, referimos algumas celebrações religiosas, num exemplo do que terá sido a aculturação provocada pelo contacto de alguns séculos entre a religião própria da Índia, e a pregação cristã:
pág 169: a celebração da festa cristã da Páscoa
Qualquer relacionamento entre raparigas e rapazes, enquanto solteiros, é tabú. É também tabú a virgindade das raparigas. Mesmo que noivos, não haverá contacto, nem mesmo a mais serena conversa, entre os jovens. O casamento celebra-se no final da adolescência.
Mas há outras tradições dignas de registo:
Por exemplo: As raparigas que têm que cuidar dos pais em idade avançada, não são procuradas para casar – pois a miséria é tanta que ninguém assume o encargo de tomar conta desses idosos. Por isso Coinção deseja que o Batcará a aceite como serviçal. Pois ele viola as raparigas que vão ao seu serviço, e depois na melhor das hipóteses arranjar-lhes-á um marido... (páginas 190 e 191)
CONCLUSÃO – o significado da obra
Na realidade, esta obra só tem três PERSONAGENS.
Uma delas – a paisagem terrivelmente ingrata. Sendo as pessoas que nela vivem, um produto do seu extremo rigor.
A outra, muito real, concreta – a terrível miséria em que vivem aqueles curumbins.
Finalmente, com o terrível peso do Poder que se quer imutável, as relações que com os camponeses estabelecem os diferentes representantes desse Poder – o Poder local, representado pelo conservador Batcará; o Poder colonial, representado pela tropa portuguesa com quem o Batcará tem o seu próprio entendimento; o Poder da Igreja, aqui muito benévolo e apostólico, na pessoa frágil do delicado, sensível Padre Antú, a quem o profundo sentimento de solidariedade dá forças e energia para ser um “Bom Pastor” dedicado ao seu “rebanho”.
Além disso, o enredo desta obra demonstra a solidariedade do Autor para com os “curumbins”, as populações mais desfavorecidas da sociedade indiana, presentes na colónia portuguesa de Goa, na época atrás referida.
Por outro lado, esta obra representará, como aliás a obra deste Autor, um libelo de acusação ao Poder do ocupante português que nada fez para melhorar as condições de vida destas populações. Da sua posição contestatária lhe adveio a malquerença do regime salazarista, proibindo a circulação da sua obra e interditando-lhe a carreira do Ensino.
A ARTE da PROSA
Comecei por dizer que nesta obra de Orlando da Costa, a primeira característica que salta aos olhos, logo na primeira página, é a beleza da linguagem. Não se trata da chamada “prosa poética”, mas sim de uma linguagem que sendo Prosa, participa da essência da Poesia.
Com efeito, trata-se de um romance escrito por um poeta: atrevo-me a afirmar que talvez a verdadeira pulsão da Poesia se encontre na prosa dos Poetas que escrevem Romance!
Dou mais alguns exemplos:
Pág 141:
“A partir daí os homens vagabundearam pelas estradas e caminhos e de machado ao ombro bateram a todas as portas em busca de trabalho.
Quando se cruzavam nas ruas da cidade, empoeiradas e humildes, os begarins, homens de diversos povoados, entreolhavam-se receosos da miséria mútua. O sol acompanhava-os, aquecendo-lhes o desespero.”
Pág 179:
“Entre Março e Abril começa o longo brasido que durante três longos meses irá secando, nas várzeas e nas encostas, os talos de arroz e o capim. As altas olas dos coqueiros amarelecem e descaem em gestos de quase voluntário abandono. O calor refugia-se nos poros da terra e de tanta secura não deixa que deles brote uma única planta verde. As velhas árvores resistem, como os homens e os bichos, perpetuando esse exasperante convívio que a natureza lhes dita desde o princípio do mundo.
Dos charcos a água desaparece, deixando na terra espalmada manchas circulares que se contraem e dilatam até se fenderem em duras brechas torturadas. As nascentes soluçam, os poços exalam um bafo crestado e o vento que sopra em quentes lufadas mistura a poeira de todos os sítios nos caminhos, nas paredes das casas, no rosto das pessoas.”
Pág 203:
“Três meses contínuos dura o poderio daquele sol sobre a terra. Durante o dia o seu brilho ilumina tudo com uma crueldade de que seriam apenas capazes os deuses sanguinários do princípio do mundo. À sua luz estonteante as plantas secam e parecem parar de crescer, os animais vagabundeiam cobertos de cio e suam e gemem enquanto pela noite fora, hora após hora, se respira o calor espesso que se desprende da terra abrasada.
Nos campos que circundam a cidade, a água some-se nos seus próprios leitos e as pedras polidas vão perdendo o brilho à medida que se cobrem do pó seco e vermelho, o único pólen daquela fecundação mortal. É a longa e torturada seca das várzeas. As árvores para resistirem parecem sugar a própria terra, ao mesmo tempo que os búfalos, outrora mansos, hoje agressivos, percorrendo as planícies inóspitas, à luz do sol ou das estrelas, sem água para se banharem, caem de fadiga com os amplos cornos negros enlaçados uns nos outros. Os milhafres traçam de asas abertas largos círculos sobre a terra espalmada; os homens, sentindo o chão queimado e agonizante, balbuciam orações sem sequer poderem erguer os olhos para o céu, onde o sol, belo e perfeito, brilha em toda a sua plenitude, capaz de cegar as mais longínquas pupilas que se demorem a contemplá-lo.”
Sobre o Autor
Orlando da Costa (Orlando António Fernandes da Costa) nasceu em Moçambique em 1929. Era de ascendência goesa. Seu pai era de ascendência brâmane, e sua mãe era de ascendência mauriciana. Orlando da Costa passou a infância e juventude em Goa. Veio para Lisboa para estudar na Faculdade de Letras, tendo-se licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi militante do MUD Juvenil e chegou a ser preso político. Em 1954 aderiu formalmente ao Partido Comunista.
A sua simpatia política está bem patente na sua obra literária. A PIDE não lhe permitiu que ingressasse na carreira do Ensino, pelo que encontraria na Publicidade o seu percurso profissional – “atividade a que chamava «poesia por encomenda» – tornando-se um dos primeiros copywriters do país. (...) Escrevia os guiões para os anúncios filmados, por exemplo, por José Fonseca e Costa. Foi dele o slogan da TAP «Através do mundo em boa companhia».” (3)
Foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade.
Sobre a publicação de “O Signo da Ira”
“No ano em que nasceu o seu primeiro filho, António Costa, actual primeiro-ministro, Orlando da Costa publicou o seu primeiro romance, O Signo da Ira. Todos os exemplares foram apreendidos pela PIDE, tal como tinha acontecido com os três livros de poesia anteriores: A Estrada e a Voz, Os Olhos sem fronteira e Sete Odes do Canto Comum. O mesmo viria a acontecer a Podem Charmar-me Eurídice. Posteriormente, dedicou-se sobretudo à escrita de poesia e de teatro.
Orlando da Costa consta como o sétimo autor português com mais livros proibidos pela censura do Estado Novo (cinco no total).” (3)
__________
(1)
Definição do dicionário Priberam online dos ventos denominados como “terrais”
(2)
Segundo:
https://www.olx.pt/anuncio/o-signo-da-ira-de-orlando-da-costa-IDEkzW1.html
E também, in:
blogue “Literatura Colonial Portuguesa”:
https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/17627.html
(3)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Orlando_da_Costa
Myriam
Setembro de 2020