"Bakhita", de VÉRONIQUE OLMI - um libelo contra a Escravatura

"Bakhita" – "Santa Bakhita" na tradução portuguesa – é um romance extraordinário, da autoria de uma grande escritora. A obra baseia-se na narrativa que Bakhita, uma mulher extraordinária, fez da sua vida.

Bakhita, protagonista de um extraordinário percurso de vida

Trata-se, neste romance, da história de uma menina Sudanesa, nascida cerca de 1869, raptada por negreiros cerca dos seus sete anos, após uma razia perpetrada contra a aldeia onde nasceu. A autora, a francesa VÉRONIQUE OLMI, recria de forma extraordinária, a história dessa menina.

Pela escrita de Véronique Olmi, nós ficamos próximos do sentir desta menina à medida que cresce no meio do horror da barbárie que é a Escravatura.

O trauma do rapto e da mudança que se opera na sua vida é tal que a Menina esquece o seu próprio nome. Bakhita é o nome que lhe é dado pelos negreiros; significa "a afortunada", em árabe, ou "aquela que chora", em hebraico.

Por volta dos seus catorze anos, pertencendo ao cônsul italiano, que é "um homem bom", ela implora-lhe que a leve para Itália. Mas aí também a sua vida não será mais suave, pois na Itália, é objecto de racismo. Sendo também tratada como objecto de apostolado, pela congregação religiosa onde finalmente se acolhe.

O que nos toca, enquanto leitores, é a força, a vontade de viver demonstradas por Bakhita ao longo da sua vida. Uma força que a leva a compreender que a Vida é um dom e que é preciso agarrá-la, custe o que custar. Mantendo-se sempre, porém, cheia de humanidade para quem lhe está próximo, geralmente as meninas que partilham a mesma desdita, durante o seu tempo de cativeiro na sua terra natal; ou quando já em Itália, toma conta das crianças do orfanato onde se acolhe e onde assume a vida de “religiosa”.

Biografia, ou romance?

Esta obra baseia-se na narrativa que Bakhita foi levada a contar, sobre a sua vida. Poderia ser apenas uma ‘biografia’, mas é um ‘romance’, na medida em que o evoluir da personagem principal, e a análise dos seus sentimentos, bem como a reconstituição das personagens com quem o seu destino a vai cruzando e o seu relacionamento para com elas, são recriados pela autora. Por outro lado, a autora dá-nos um retrato da grande vontade de viver de Bakhita, que simultaneamente à condição social de “pessoa de segunda categoria” consegue manter a sua Humanidade.

A Sociedade no tempo de Bakhita

Podemos dizer que no tempo de vida de Bakhita, duas grandes entidades, ou "forças", dominavam a ordem social: a Crueldade e a Ignorância. Não se trata de entidades abstractas. Muito pelo contrário, a crueldade é uma presença constante. Manifesta-se tanto por parte dos negreiros sudaneses como dos poderosos da Igreja Católica italiana daquela época, bem como por parte da ignorância da população europeia, nomeadamente a italiana naquela época ainda grandemente analfabeta e impregnada de religiosidade supersticiosa.

Crueldade e Ignorância compensadas pela capacidade, revelada pela protagonista, de compreender a complexidade das situações para as superar, tanto em criança e adolescente como ao longo da sua tormentosa existência. Neste contexto, mesmo os “europeus de boa-vontade e bom-coração” não conseguem a necessária “identificação” com aquela pessoa nascida tão longe, e com aquela aparência tão “estranha”, com um percurso de vida tão aberrante. Mesmo as superioras da congregação, ao mudarem-na de instituto, para porem à prova a sua fé, são cruéis. Mesmo as Madres, ao deslocarem-na de um local de trabalho para outro, são cruéis. E mesmo quando lhe fazem narrar a sua vida, estão a ser cruéis.

A vida de Bakhita, a Escravatura e o Colonialismo europeu

A história de Bakhita é aproveitada por certos membros da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, do tempo de Mussolini, para a sua propaganda “missionária”.

Esta obra mostra-nos a Igreja Católica como instituição imperialista. Se ainda não o soubéssemos, seria agora a oportunidade de compreender que a propaganda missionária tem sido por um lado, precursora, e por outro, instrumento e máscara do Colonialismo. (1)

Bakhita é canonizada. Mas é intitulada de “padroeira do Sudão”, e aqui voltamos à tónica colonialista europeia: essa declaração é um gesto gratuito, e desnecessário, pois o Sudão é um país muçulmano, de tradição muçulmana. Certamente que terá os seus patronos espirituais no âmbito da espiritualidade muçulmana.

Por outro lado, esta questão que levanto, é puramente retórica, pois no âmbito espiritual não há facções nem religiões, se pensarmos que fazemos todos parte de um mesmo Uno. Nas estâncias espirituais superiores, onde estará, não precisará das nomeações terrenas para interceder por todos os que sofrem, e em última análise pela redenção de todo o lixo humano que oprime os seus semelhantes.

No prefácio à "Storia Meravigliosa", título que foi dado à narrativa que foi levada a fazer para a Igreja divulgar, o editor reafirmou as “sendas admiráveis de Deus, que de facto só se encontram na Vida, de vez em quando”... Neste mundo cruel e caótico, em que muitos povos ainda se encontram – em maior ou menor grau, conforme a latitude e a cultura tradicional em que cada qual nasce – à mercê dos instintos bárbaros de Poderes abusivos – admiramos essa fímbria de Esperança que por vezes certas personalidades excepcionais conseguem encontrar na coincidência de um conjunto de circunstâncias que em certo momento são favoráveis ao seu “destino”...

Um depoimento sobre a Escravatura

Quem não sabe, ou nunca se informou sobre a realidade que foi, e continua a ser, a Escravatura, terá nesta obra uma excelente janela sobre a terrível dimensão da crueldade humana tanto masculina como feminina, através da extraordinária reconstituição da vida de Bakhita.

Bakhita foi canonizada pela Igreja Católica. Entende-se essa canonização como um prémio de consolação a título póstumo, pelo muito que a Igreja Católica do seu tempo, o tempo de Mussolini como muito bem sublinha a Autora, se serviu dela. Através da reconstituição desta vida, confrontamo-nos com esta triste realidade: a própria Igreja manteve Bakhita na situação de escravatura. Ao exigir dela submissão e obediência, fez dela mais uma Escrava-do-Senhor. Aliás, a Autora põe este particular em evidência, e di-lo numa das entrevistas que lhe foram feitas.

A tradução portuguesa

O título português não segue o título original. No original francês, o título é, simplesmente, “Bakhita”. A edição portuguesa dá à obra o título de “Santa Bakhita”... A meu ver, esta opção contempla objectivos pragmáticos (comerciais) que não estariam presentes na intenção da autora...

A Arte do romance

Um mesmo ritmo emocionante é mantido ao longo desta obra. As frases são sempre enunciadas numa mesma “medida”, como se a Autora estivesse a medir as sílabas dos versos de um longo poema.

Digamos que conto esta obra no número dos livros mais belo que tenho lido. Em matéria de “beleza” e “arte”, nomearei a um mesmo nível, "Uma Abelha na Chuva", de Carlos de Oliveira, “O Mesmo Mar”, de Amos Oz; e “A Eternidade não é demais”, de François Cheng. São, aliás, obras muito distintas, que nada têm em comum! A não ser este detalhe: a Beleza e a Arte. Ou como diria o nosso querido Camões, o Engenho e a Arte.

Além disso, penso que a única pessoa que compreendeu Bakhita e a amou, além das crianças de quem Bakhita cuidou, foi esta grande escritora, Véronique Olmi. E para que isto acontecesse, foi preciso que decorresse cerca de um século.

A autora

Véronique Olmi é romancista e dramaturga. Também tem trabalhado como cenarista e comediante. Foi cofundadora do festival “Paris des Femmes”. “Bakhita” foi publicado em França em 2017; e nesse mesmo ano foi “Prix FNAC”. No entanto, outros dois romances seus foram premiados, "Bord de mer", seu romance de estreia, publicado em 2001, e que nesse mesmo ano recebeu o Prix Alain Fournier; e "Cet été-là", publicado em 2001, que recebeu o Prix Maison de la Presse, desse ano.

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NOTA:

(1)- Maurilio Adriani, “Storia delle Religioni”, 1988; “História das Religiões”, Edições 70, Colecção Perspectivas do Homem, tradução portuguesa de 1990.

Myriam,

Março, 2019

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 29/05/2022
Reeditado em 06/02/2023
Código do texto: T7526715
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