Água viva: Clarice Lispector
A começar pelo título, a água viva é um animal cuja simbologia se remete a sensibilidade e as emoções; tais aspectos conectam-se ao caráter mais intimista da narrativa, dado que, a personagem escreve de maneira a explorar o fluir dos próprios estímulos sensoriais e a impressão mental causada pelos mesmos. A água viva também é um animal gelatinoso e transparente, o que ressalta simbólicamente o seu caráter mais exposto e suscetível aos estímulos internos e externos.
A introdução ao título já expõe a estilística tipicamente Clariceana, pois a autora geralmente explora o universo íntimo dos seus personagens, apesar disso, "Água viva" carrega certas peculiaridades. Alguns críticos classificam a obra como um poema em prosa ou uma prosa poética, já que a mesma não foi produzida com a pretensão usual de contar uma história, e tampouco apresenta linearidade lógica em sua estrutura.
A narrativa é carregada de um lirismo denso e se constrói a partir de uma série de digressões, fazendo com que a obra seja híbrida e flua de modo que não se configure como uma mera leitura, mas como um experienciar intenso da vida. No transcorrer do enredo, vê-se a tentativa da personagem de explorar a natureza dos instantes, que seriam como átomos que constituem a totalidade da vida; nesse processo de exploração, o leitor entra na dinâmica da narrativa, porquanto é levado a uma série de sensações e reflexões "inacabadas", que geram grande impacto, e logo em seguida desaparecem e tomam um novo rumo, em vista disso, se o leitor tentar recapitular os detalhes do que estava escrito anteriormente, naturalmente não irá conseguir, essa frustração exprime o impacto que sentimos com a passagem do tempo, assim como, nos lança ao momento presente. Ao experienciar o presente de forma orgânica, sem o esforço pela lógica linear e sem o uso das memórias, a protagonista busca tanger a essência das coisas.
A personagem em questão, é uma pintora que também gosta de escrever, conforme "pinta" com as palavras, ela desautomatiza a função da linguagem enquanto busca pela liberdade de se fazer no mundo a partir do próprio processo de escrita; tal processo soa metaforicamente como um parto, visto que as palavras são registradas no exato momento em que a experiência surge, precedendo assim, a elaboração lógica por parte da consciência, logo, a medida em que a personagem explora as próprias sensações, ela entra em contato com as partes até então inconscientes de si mesma. Nesse contexto, a escrita é um importante instrumento de autoconhecimento, pois a busca da protagonista pela própria identidade ou "self", representa um constante nascimento do "eu" que se expele das escuridões impessoais da inconsciência por meio das palavras. O "it", pronome impessoal no inglês, é citado algumas vezes pela protagonista para designar um estado primordial em que as coisas ainda estão por se definir, em outras palavras, seria o estágio das possibilidades, o instante antes do vir a ser, o estado indizível das coisas, ou o mais próximo do inconsciente.
Concluindo, a obra "Água viva" mostra a angústia de uma pintora que acabou de sofrer a ruptura de um relacionamento e se sente dolorosamente livre, como um recém nascido que tem o cordão umbilical cortado, e se vê num mundo de possibilidades cujo próximo instante é desconhecido. A construção imagética do texto faz com que o leitor sinta a crueza da existência e a angústia que é formar a si mesmo dentro do tempo. A obra é um mergulho na subjetividade humana, esta que não tem fim, e que traz o ininteligível, pois é por si só indecifrável.
Obs: É importante não confundir o processo de escrita do livro em si, com o suposto método da narradora ficcional, "método" este, que consiste no registro das sensações no instante em que elas surgem. A obra "Água viva" é muito densa para que tal método tenha sido aplicado na sua elaboração.
- Letícia Sales
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