NIKETCHE, romance, de PAULINA CHIZIANE

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"TER é uma das ilusões da existência, porque o ser humano nasce e morre de mãos vazias." (pág 26)

"Quando se trata de BENESSES, qualquer cultura serve." (pág 132)

"Todo o HOMEM é criança nos nossos braços. Transmigra. Esquece a vida e a morte, porque o corpo da mulher é eternidade." (pág 194)

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NIKETCHE é a primeira obra que leio de Paulina Chiziane. E isso quer dizer que fiquei com a curiosidade estimulada para continuar a ler e melhor conhecer esta Autora.

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Para começar, e para se compreender NIKETCHE completamente, é conveniente referir que Paulina Chiziane é uma romancista de Moçambique, nascida e criada e a viver em Moçambique, extenso país africano que foi colónia portuguesa até 1974. Porquê referir em particular e com destaque, este facto de que Moçambique foi “colónia” portuguesa?

Porque, conforme é do conhecimento geral, os territórios colonizados pela Europa, e hoje países independentes, sofreram o enorme atentado que em Antropologia se designa como “aculturação” – esse fenómeno cultural – ou seria mais acertado dizermos “anti-cultural” – que consistiu na introdução forçada da cultura europeia – línguas, costumes, leis, religião – nos países e regiões onde os Europeus conseguiram estender a sua influência económica.

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NIKETCHE tem como subtítulo – Uma história de Poligamia.

A Autora conta a história de um casamento, monógamo, legal, que é perturbado pela vigência paralela de costumes ancestrais, marcados pela poligamia.

Os dois regimes vivem em sistemas paralelos. O regime introduzido pelos Europeus (pág 193) , predomina nos meios urbanos escolarizados. O regime ancestral continua vivo e activo nos meios rurais ainda não contaminados pela cultura estrangeira (1). No entanto, as populações urbanas e as tradicionais cruzam os seus caminhos, e desse cruzamento surge o confronto entre os dois modos de vida, o urbano-mais-moderno e o antigo-tradicional.

A história é muitíssimo bem urdida e organizada, e ilustra a luta que muitas mulheres africanas ainda têm que travar, numa possível escolha entre tradição e... ?

...E o que lhe chamaremos? Entre Tradição e Civilização? Este enunciado, pondo em alternativa o sistema europeu e o sistema africano, parece dizer que a Tradição não é “civilização”... Perguntaríamos – Então, os costumes tradicionais não constituem uma forma de Civilização? E perguntaríamos ainda mais – Não seria a civilização tradicional mais ajustada aos instintos humanos da reprodução?

Nesta apresentação da Poligamia vemos com nitidez que ela assenta na preponderância masculina, na persistência de um Patriarcado cruel e terrivelmente escravizante e inferiorizante da Mulher. Quando as mulheres desta história conseguem organizar uma vida profissional, surge a revolta do homem: ele agora já não as pode dominar, elas agora já são autónomas, já não dependem de ninguém, já homem nenhum lhes dá ordens. Elas passam para o outro lado e podem enfrentar o homem em pé de igualdade.

Nos meios urbanos, onde as mulheres têm estudos e conseguem ter o seu próprio modo de vida, a sua própria profissão ou os seus próprios negócios, o poder autoritário e prepotente do Homem-Patriarca dilui-se forçosamente.

NIKETCHE funciona assim como um guia! A Autora conhece muito bem os costumes de norte a sul do seu País, e dá-nos uma panorâmica muito clara das tradições desse extenso país que é Moçambique! Pela obra, visitamos as culturas Maconde, Machangana, Shona, Macua, Sena... Passam a magia tradicional, as cerimónias de iniciação, os muçulmanos, os cristãos! Assim, Paulina Chiziane cria um guia para a emancipação que conferirá a todas as mulheres a consciência dos seus direitos, e ao homem, um esclarecimento sobre os seus deveres!

As personagens são muito bem desenhadas, numa escultura psicológica admirável, iluminando os conflitos surgidos entre a consciência da própria dignidade e o desconhecimento de que pode haver alternativas à submissão! Pior: o desconhecimento do que Dignidade possa significar – a obra é um tratado! Um tratado pela análise psicológica, pela análise social opondo tradição e racionalidade, pelo desenho das personagens nos seus retratos individuais, e como já dissemos, pela análise antropológica – opondo as regras da poligamia à necessidade da fraternidade. É da Fraternidade que nascem a Lealdade e a Amizade!

Alguém já disse que Paulina Chiziane representa um “Feminismo Negro”. Designação no entanto desajustada. Feminismo é apenas Feminismo. Nem “branco”, nem “negro”, e muito menos “meias-tintas”. Feminismo versus Patriarcado. Aliás, uma leitora europeia vê nesta narrativa paralelismos que ainda subsistem nas nossas sociedades (2).

É um campo em que se é, ou não se é! Depois da escolha feita, não há como voltar atrás nem como encontrar conciliação entre os dois sistemas. Esta obra é pois, um elogio da Mulher, marca uma conquista da Feminilidade. Para ultrapassar o desânimo, Rami arranja a sua 'toilete', ela cuida-se com brio, ela percebe finalmente que 'provocar o desejo' restitui-lhe a segurança psicológica, e percebe igualmente que 'sentir o desejo' diz-lhe que está viva!

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Quanto à narrativa propriamente dita, ela decorre fluente, pois a narrativa é desenvolvida na 'primeira pessoa' (do singular). Acompanhamos o monólogo interior da narradora, Rami, a principal protagonista, que se transforma na salvação das suas rivais, criando entre todas elas uma cadeia de ajuda e apoio mútuos. As mulheres desta história representam várias das Culturas desse imenso País, pois como já ficou dito, a Autora conhece bem as realidades com que se debatem as suas pares!

Acompanhamos Rami, a personagem principal. É ela quem vai re-organizar a vida das várias mulheres prejudicadas pelo egocentrismo mulherengo e irresponsável de Toni. É Rami quem vai restituir a todas elas a consciência da própria dignidade e dos inerentes direitos!

E vemos como são irreconciliáveis os dois sistemas. Vemos que tanto os homens como as mulheres saem magoados ao quererem viver os dois sistemas em simultâneo...

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Ao longo da obra há imensas referências culturais, tanto à cultura tradicional africana, como à cultura europeia.

Estas referências funcionam como caixa de ressonância, ou como os comentários do "coro" do Teatro Grego da Antiguidade. De facto, chegamos ao fim da obra, e vemos que ela termina em dois registos - Para as mulheres de Tony tudo acaba numa resolução feliz, ou pelo menos, satisfatória. Mas para o casal principal, a história acaba em tragédia... Rami oscilou entre a vingança e a justiça, lançou os dados... mas saiu magoada... sente que perdeu o jogo...

Paulina Chiziane gosta de se dizer "contadora de histórias"... Mas embora recorra a elementos tradicionais, ela sabe como fazê-lo magistralmente. É o que vemos por exemplo no recurso ao "espelho". Rami olha-se ao espelho e é com ele que reflecte e dialoga. O espelho além de funcionar estruturalmente como um "leit motif", é o grilo-consciência de Pinóquio, é o seu alter-ego. É ao olhar-se ao espelho que Rami dialoga consigo própria e descobre o que deverá fazer, descobre como deverá actuar!

Há ainda a referir a presença da IRONIA! Temos, na página 72, uma Avé Maria adaptada - A narradora pensa:

"Até na bíblia a mulher não presta (...) O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. (...) E esse Deus, se existe, porque é que nos deixa sofrer assim? (...) Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, na cozinha, a cozinha celestial. Se ela existisse teríamos a quem dirigir as nossas preces e diríamos: Madre nossa que estais no céu, santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino – das mulheres, claro –, venha a nós a tua benevolência, não queremos mais a violência." (...) Não admira que os capítulos finais nos mostrem que a conclusão de toda esta intrincada história seja tirada pelas próprias mulheres!

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Falámos da Narrativa e das Personagens. Referimos o interesse sociológico da obra. Importa ainda referir que a linguagem passa da "narração" à "poesia", numa derivação própria da fusão de géneros literários que se pratica nesta perspectiva a que se convenciona designar de pós-moderna. Exemplos dessa derivação, ou fusão, entre os géneros literários encontramos por exemplo na pág 67: "Fecho os olhos, A imagem dos bons momentos se desenha. Escuto a voz do meu Tony cantando baladas de amor só para mim. Os seus braços semeando carinhos, os seus lábios humedecendo cada célula do meu corpo. Nós dois, de mãos dadas, passeando nas ravinas dos montes." A Poesia incorporada pelas comparações (pág 67): "Ah, meu Tony, andas sempre à deriva como canoa no mar revolto." Ou na página 325: "De tudo ter, acabei não tendo nada. As minhas esposas esvoaçam como pássaros numa gaiola aberta, e eu fico a olhar, espantado, essas mulheres a quem amordaçava as asas e afinal sabem voar."

Para finalizar, referiremos que Paulina Chiziane recebeu o Prémio José Craveirinha por esta obra, em 2003.

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NOTAS:

A obra que li e a que se referem as páginas citadas é a 1ª edição;

da editora Caminho, em 2002.

(1): Pág 133: Aqui se enunciam as REGRAS da família polígama;

Na pág 104/105, temos a oposição entre a "filosofia para a Mulher" e a "filosofia para o Homem".

(2): Recordo-me que em criança, ouvi muitas vezes o ditado, citado em ocasiões apropriadas:

"Faça o mal quem no fizer... Quem no paga, é a mulher!..."

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Paulina Chiziane nasceu em Maputo, quando esta cidade ainda era a capital da Colónia portuguesa e se chamava Lourenço Marques.

Paulina Chiziane começou a publicar em 1984. Foi a primeira mulher que publicou um livro em Moçambique.

Começou por publicar contos, tendo-se depois dedicado a uma escrita de maior fôlego. E em boa hora o fez, pois sabe dar-nos um retrato do seu País!

Em 2021, tornou-se a primeira mulher africana a ser distinguida com o Prémio Camões, juntando-se assim às portuguesas Sophia de Mello Breyner, Maria Velho da Costa, Agustina Bessa Luís e Hélia Correia, e às Brasileiras Rachel de Queiroz, e Lygia Fagundes Teles. Sendo de notar que dos 34 laureados com o Prémio Camões, apenas 7 são Mulheres...

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Obras de Paulina Chiziane:

1993: Ventos do Apocalipse

2000: O Sétimo Juramento

2002: Niketche: Uma História de Poligamia: ganhou o Prémio José Craveirinha em 2003.

2008: O Alegre Canto da Perdiz

2009: As Andorinhas

2012: Na Mão de Deus

2013: Por quem vibram os tambores do Além

2015: Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento

2017: O Canto dos Escravizados

Em 1994, Paulina Chiziane tinha publicado o seguinte testemunho: Eu, mulher… por uma nova visão do mundo.

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Querendo conhecer mais sobre a Autora, poderá ver este artigo:

"A escritora Paulina Chiziane, 66 anos, vencedora do Prémio Camões 2021, elege a luta pela emancipação da mulher moçambicana como um dos fios condutores da sua obra.

https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/quem-e-paulina-chiziane-a-escritora-que-comecou-a-luta-descalca-a-escrever-sob-uma-arvore-com-a-emancipacao-em-vista

*** ENTREVISTAS a Paulina Chiziane:

Esta entrevista conduzida por Ana Sousa Dias:

https://www.youtube.com/watch?v=bo3VCEXemzk

E esta, conduzida pelo jovem jornalista Dionísio Bahule :

https://www.youtube.com/watch?v=VrKmJEyhACs&t=1234s

Myriam

31 de Março de 2022

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 31/03/2022
Reeditado em 18/08/2022
Código do texto: T7485151
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