A Ilha do Santo, de SUM MARKI

Sobre a obra "A Ilha do Santo"

de Sum Marky

1ª edição em Outubro de 2001

Editor: José Ferreira Marques

Na realidade, trata-se de uma "edição de autor";

O nome civil deste autor, era de facto José Ferreira Marques.

Mas em Crioulo, ele era mencionado como Sum (senhor) Marky (Marques) - (1)

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Esta apreciação sobre esta obra data de 2006.

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1- Romance de tese e personagens-tipo

Quanto a mim, este romance inclui-se no âmbito dos chamados “romances de tese”, fez-me pensar na obra de Alan Paton, “Chora, Terra Bem Amada”:

Em "A Ilha de Santo" temos um enredo demonstrativo, destinado a ilustrar e divulgar uma determinada situação político-social, a saber – o trabalho escravo nas roças de São Tomé, no tempo do Estado Novo e do seu cruel mentor, Salazar. Daí que cada episódio seja demonstrativo de mais um detalhe sobre a situação de toda uma população de africanos escravizados, e o Leitor assiste a um desenrolar infindável de peripécias que só irão terminar quando o Autor tiver esgotado o inventário de desgraçadas circunstâncias e comportamentos a que assistiu. No entanto, não vamos pensar que o romance seja desinteressante – muito pelo contrário.

Nota-se ainda que apesar da imaginação do Autor, e do desenvolvimento do enredo, as personagens são personagens-tipo, e o Leitor pressente desde o início que a ‘acção’ se encaminha para a fuga, no final. O "clímax" do romance acontece com a fuga, quando Pedro, o pescador, foge com o moçambique Tamaleia, o cabo Florêncio, e mais as outras seis famílias, fazendo-se todos ao mar nas suas canoas.

2- O mundo onde a ‘acção’ do romance se desenvolve;

e

os sentimentos

A ‘acção’ desenvolve-se num mundo fechado, tanto fisicamente, como humanamente.

- Fisicamente, o romance passa-se na Roça Jou, a SW da Ilha de São Tomé.

A ilha, encerrada no limite da sua realidade insular, em pleno Oceano Atlântico, longe do continente africano, funciona como uma fortaleza que a todos encerra – a uns, na sua desumanidade – administradores e agentes coloniais; a outros – os imigrantes idos de Portugal; mas também os serviçais (leia-se, escravos) –, no seu desalento e esperanças perdidas; e a todos, nos diversos tipos de servidão que a colónia lhes impõe. Pelas características deste romance, a Ilha vai desempenhar um papel específico, e vamos considerá-la com a função de uma personagem física.

- No entanto, as grandes fronteiras que se impõem a senhores (europeus) e a servos (africanos), são as limitações erguidas pela mentalidade europeia. Neste campo, as fronteiras são múltiplas. Há a mentalidade dos ‘brancos’ quando moldada pelo Colonialismo e que obviamente separa a consciência moral da realidade escandalosa das vidas dos servos/escravos. Mas há também uma fronteira diluída, ambígua, entre o administrador, o Sr. Esteves, e o seu acólito fiel, o Santos – com o mesmo tipo de dureza e indiferença; e o enfermeiro Machado, igualmente ‘branco’, mas que intelectual e filosoficamente é o critico da “situação”, sendo por isso capaz de interpretar os comportamentos de uns e de outros. Há ainda aqueles que vão assistindo à sua própria ‘mudança’ de um mundo para o outro, como o Carvalho, que à medida que vive e observa, se passa intelectual, emocional e afectivamente para o mundo dos servos.

Quanto à desumanidade, é um sentimento transversal aos dois mundos, o dos africanos e o dos europeus:

Os ‘brancos’, quando representando o mundo do poder, são desumanos, prepotentes, cruéis, esquecem a sua condição de homens civilizados e regridem à barbárie – uma barbaria tanto mais escandalosa quanto parte do mundo que a si próprio se considera “civilizado” – para manterem o seu estatuto económico, social.

Os ‘negros’, quando se revoltam para reivindicarem os seus direitos, e fogem para as montanhas onde quase morrem de fome, comportam-se (do ponto de vista dos ‘brancos’) como ladrões devastadores quando descem à roça para roubar mantimentos.

Os servos (‘negros’), quando comandados pela vingança, bárbara, dos seus senhores (‘brancos’), também se vêem forçados a regredir a um estado de barbárie.

Este romance retrata-nos um mundo de situações extremas, onde todos ao fim e ao cabo, ficam ao mesmo nível – o homem “civilizado”, que se torna um bruto, por vezes muito mais cruel do que os considerados “selvagens” – é o caso da rusga à montanha para vingar o roubo operado pelos foragidos –, pois que actua sem moral; os ‘negros’, que os colonos consideram ainda pouco “civilizados”, encurralados nesse bárbaro choque de culturas onde o destino os colocou e que sentem não poder sair dessa condição. É de facto um mundo fechado, onde todos são escravos... Os ‘brancos’, uns escravos bem-aventurados, prisioneiros pomposos da sua posição, poder, ambições, desumanidade; os ‘negros’, na sua ausência de meios económicos, prisioneiros da sua impotência social, do seu sofrimento, e da sua ausência de escolarização.

3- As personagens

Uma vez que se trata de personagens-tipo, com valor simbólico, vamos considerar não só as personagens humanas, mas também as próprias circunstâncias, que neste romance, curvam e submetem os humanos indefesos:

3.1- As personagens determinantes:

Por um lado, personagens determinantes são personagens ausentes:

Temos a situação política portuguesa, dominada pela figura prepotente do seu chefe totalitário – “sua excelência, o Senhor Doutor Oliveira Salazar”, como todas as outras personagens a ele se referem.

Os donos da roça, que faustosamente, e indiferentes à desgraça que os enriquece, vivem em Lisboa.

Por outro lado, os próprios sentimentos, funcionam como personagens determinantes:

Os sentimentos grosseiros, que reduzem o Homem à condição de “besta humana”, como a cobiça e a sede de enriquecimento a qualquer custo, sustentados tanto pela ambição daqueles que querem subir na vida, cada qual à sua maneira – o administrador, os militares, o governador, o padre; como pela necessidade das classes desfavorecidas que se vêm na necessidade de recorrer à emigração para as colónias.

3.2- As personagens abstractas

* A "Lei do Indigenato"

Desempenha um papel de referência que pauta a submissão dos escravos – é a “aliada” criada pelo Governo.

* O sonho da fuga em Tamaleia

Na maioria esmagadora dos servos, a ideia de fuga não é determinante da acção, uma vez que é ofuscada pela desistência, pelos hábitos de consumo de bens desnecessários e de álcool que ardilosamente são proporcionados e incutidos pelos ‘brancos’.

Mas em Tamaleia, a ideia de fuga é o lema que dá as forças para resistir à tirania – é a aliada, embora eles a soubessem impraticável, pois os escravos não possuíam meios logísticos para a concretizarem.

* A ambição e impiedade dos brancos.

3.3- Personagens não-humanas:

* A ilha-prisão:

Esta ilha-prisão, pelo seu isolamento no meio do mar, foi a aliada ideal escolhida pelo Governo português e por aqueles que ele defende e que por isso o apoiam. Aliada dos ‘brancos’, é por consequência a grande inimiga dos ‘negros’.

*A Natureza:

A Natureza desempenha um duplo papel:

Por um lado, a Natureza é aliada dos ‘brancos’ – fornece-lhes a matéria-prima – o cacau – que depois há-de ser exportado para as fábricas da Europa, como por exemplo, a Cadbury’s.

Enquanto dominada pelos ‘brancos’, a Natureza é também a grande inimiga destes servos/escravos. O clima extremo e impiedoso, os seus animais perigosos, as plantações de cacau – que absorviam todas as preocupações do administrador – são os instrumentos de tortura que oprimem os servos.

Por outro lado, para os ‘negros’ que conseguem escapar ao laço da civilização branca e refugiar-se na montanha, inacessível e inóspita, mas onde conseguem sobreviver, ela desempenha o papel da Mãe Protectora.

3.4- As personagens humanas:

As personagens humanas são agrupáveis em dois grandes grupos, como já se deu a entender; e cada um destes em diferentes categorias:

* O grupo dos ‘brancos’:

É um mundo hierarquizado, que se mantém pela força, onde os senhores são apoiados pelos militares em comissão na colónia, onde o próprio padre lança mão da exploração e desfasamento cultural dos ‘negros’, pondo os pescadores a “comprarem vento” para com os proventos decorrentes dessa venda, poder obviar às obras de que a igreja necessita.

* O grupo dos servos:

Os ‘negros’ têm diferentes proveniências. Os Moçambiques, tal como esta designação no-lo informa, são originários de Moçambique. Aqui, nomeadamente em Lourenço Marques, foram capturados pelas rusgas dos sipaios, quando fora da hora do "recolher", andavam à deriva por tabernas e bordéis. Foram depois trasladados para São Tomé em modernos negreiros, navios de passageiros onde eram transportados nos porões inóspitos. Há os Angolas, igualmente servos. E há os altivos Caboverdes, escolarizados, que para São Tomé imigraram em consequência das fomes provocadas pelas secas. Os Caboverdes diferem dos outros servos – têm a consciência dos seus direitos, que lhes é conferida pela sua escolarização – em certos casos, a frequência do 5º ano do Liceu; conhecem a Língua, a História de Portugal, sabem raciocinar como os ‘brancos’.

Na praia, há uma população livre. Trata-se dos Angolares, pescadores descendentes de um negreiro que, segundo a tradição, naufragara na costa Leste da ilha, ao largo do rochedo Sete Pedras, em meados do séc. XVII, e que nunca foram escravos.

De facto, como disse atrás, todas estas personagens são “prisioneiras”:

Os servos, são escravos dos ‘brancos’.

Mas os ‘brancos’ – tanto os mais poderosos, como os ambiciosos –, são prisioneiros, voluntários embora, da filosofia própria da sua posição social, à qual aderem, evidentemente, aqueles que desejam "subir na vida" – filosofia essa que determina a sua crueldade.

Ou seja, a diferença está, evidentemente, em que os “escravos negros”, não têm recursos e sofrem moral e fisicamente; e os “senhores brancos” só obtêm bem estar com o lucro proveniente das opções que adoptaram.

4- A linguagem e os diálogos; ironia e poesia

* Linguagem poética:

Pelo ritmo da narração, a linguagem toma fôlego poético.

Lendo o texto com uma pronúncia tão próxima quanto possível do que poderá ser a pronúncia crioula, sente-se esse ritmo que confere ao romance o tom poético que o aproxima da origem épica do género romanesco. Considerado deste ângulo, o romance é uma obra muito bela.

* Os diálogos:

As falas dos ‘brancos’ podem ser divididas em dois tipos: as falas marcadas por um cunho realista/naturalista; e as falas marcadas pelo cunho didáctico.

- As falas do administrador e seus próximos, que traduzem a sua rudeza e grosseria, são espontâneas, traduzem a naturalidade, no seu chorrilho de palavrões e exclamações agressivas.

- As falas das personagens que desempenham a função filosófica e através das quais se desenvolve a tese social, que explicam as razões dos senhores-das-roças, do seu estatuto, do Estado Novo, dos seus comportamentos e hipocrisia – são discursivas, pelo que os diálogos em que esta intenção didáctica se manifesta, perdem a naturalidade.

- As falas dos serviçais, do ponto de vista da verosimilhança e naturalidade, dão-nos também a impressão da autenticidade.

- Na altura da fuga, quando o cabo Florêncio, que sabia ler, explica ao pescador Pedro que “os negros não são burros, mas sim utilizados pelos brancos para seu serviço, utilidade, e distracção”, a sua fala assume um tom pedagógico.

5. A ausência da mulher branca

e

a presença da mulher africana;

* O erotismo

Na roça não havia mulheres europeias. Pois tratava-se de um mundo demasiado rude. O clima demasiado agressivo, a

vida social demasiado solitária e o convívio com outros ‘brancos’ praticamente inexistente.

Fala-se uma vez ou duas, por alto, da visita de casais que iam à roça, mas seriam casais que iam da capital da então “província ultramarina”, apenas em visita.

O romance incide a sua atenção na presença da mulher africana e na das prostitutas, tendo ambas um papel a desempenhar na satisfação da cobiça sexual daqueles ‘brancos’ deslocados e embrutecidos.

Aqui, o ‘branco’ usando a sua posição de prepotência, serve-se da suposta desinibição da mulher africana, usando a escrava e largando-a a seu bel-prazer. Serve-se igualmente da entrega da adolescente, usando em seu proveito um costume tradicional africano. Na época retratada pelo romance, a mãe são-tomense adere ao apregoado prestígio do senhor, e entrega a sua jovem filha, para “amiga”, recebendo em troca, neste convénio, algumas ninharias.

No entanto, relações sérias entre os trabalhadores europeus presentes na roça e a mulher africana eram absolutamente interditas, havia que preservar a continuidade da “raça” – da “raça branca”, subentende-se.

Quando toca à paixão que se desenvolve entre Carvalho e Susana, a adolescente cabo-verdeana, o romance atinge níveis de poética erótica muito bela.

No entanto, no que toca às relações de Santos, e de Machado, com a China, o relato é erótico-satírico. Quando finalmente, a China se torna D. Helena e passa a “amiga” exclusiva do administrador, o Sr. Esteves, a mulher mostra toda a sua capacidade de sedução, revelando-se capaz de domar o feroz senhor pelos seus ternos ardis. Aqui, no que se refere ao papel do Esteves, o relato assume uma intenção de nítido escárnio e maldizer, sugerindo, sem o expressar, que o fero, feroz, façanhudo, sucumbe às simples mas bem arquitectadas atracções montadas pela inteligente macaense.

6. A riqueza, o cacau

A riqueza, neste romance, desempenha o papel de uma praga bíblica, pois enlouquece os homens. O ouro representado pelo cacau custa tanto a obter como o ouro ou os diamantes extraídos ao garimpo, o seu custo é desumano, tanto porque bestializa os senhores, como porque embrutece e reduz à ínfima condição de máquinas, os escravos.

7. Conclusão - As Dicotomias

Esta análise é, aparentemente, muito dicotómica... Mas dicotómica é a distinção entre o Bem e o Mal, a Luz e a Sombra, a Abundância e a Miséria, a Fantasia e a Realidade, a Beleza e a Fealdade, o Heroísmo e a Crueldade, a Esperança e o Desespero, a Justiça e a Exploração, o Conhecimento e a Ignorância, a Generosidade e o Egoísmo...

No entanto, entre os seres humanos – o Homem e a Mulher, seja qual for a sua origem, geográfica ou social – não deveria haver lugar para dicotomias, pois todos vivem apenas enquanto o coração bater; se alguém fizer um corte no dedo, quer nuns, quer noutros, o sangue, universalmente vermelho, começará a correr, a dor se instalará, e a infecção ou a cura poderão sobrevir...

...E é apenas desta consideração comezinha que trata esta bela e impressionante obra de Sum Marky...

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(1): Há oscilações quanto à indicação da data de nascimento deste escritor. O jornalista e investigador Jorge Trabulo Marques, em:

http://www.odisseiasnosmares.com/2016/03/sao-tome-sum-marky-figura-lendaria-nas.html

- diz que Sum Marky faleceu com 92 anos... E sendo assim, teria nascido em 1911. No entanto, nomeia as duas datas (1911 e 1921)...

Sum Marky é um dos pseudónimos de José Ferreira Marques – 1921- 2003 .

Filho de pais portugueses, nasceu em São Tomé.

Estudou Medicina em Portugal, mas ao regressar a São Tomé, desempenhou o cargo de adjunto do secretário da Câmara Municipal, até 1956.

O seu primeiro romance data de 1956, “O Vale das Ilusões”, obra em que já se percebe uma crítica ao sistema colonial.

Os seus outros pseudónimos são Roy Harvey e Louis Rudolfo.

Além da sua obra crítica em relação ao colonialismo português, que lhe valeu perseguições pela PIDE, também tem novelas e romances eróticos. Mas é como Sum Marky que este autor interessa à Literatura de São Tomé.

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Sobre a biografia deste autor, ver Inocência Mata, em:

https://uk.groups.yahoo.com/neo/groups/saotome/conversations/topics/5246

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O texto acima data de 2006.

Nessa época, não encontrei informação bastante na Internet - ou então, eu não a soube procurar... - nem sobre este autor, nem sobre a sua obra.

Actualmente, há muito mais informação disponível.

Assim, encontrei este blogue:

canoas do mar:

http://canoasdomar.blogspot.com/2020/06/sao-tome-sum-marky-1911-2003-para.html

Aqui se informa que este autor foi assiduamente perseguido pela PIDE, devido:

- ao seu empenho na denúncia das atrocidades cometidas na colónia de São Tomé e Príncipe,

- e ainda pela sua produção de literatura de carácter erótico e popular. Características que ofendiam o puritanismo da época, defendido pelo regime político e pregado pela igreja católica.

Este romance refere o MASSACRE DE BATEPÁ, perpetrado pelas forças coloniais contra os trabalhadores das roças de cacau, em São Tomé, em 1953.

Nessa época, a Informação era controlada pela apertada e vigilante Censura, não chegavam relatos destes acontecimentos à "metrópole", e os que chegassem, eram abafados e a sua divulgação era impedida.

Para quem desejar um tipo de Informação mais 'científico', há por exemplo este artigo:

https://saladeimprensa.ces.uc.pt/ficheiros/noticias/19346_Batepa_Observador.pdf

Myriam

2006 - 2022

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 05/02/2022
Reeditado em 04/05/2022
Código do texto: T7445669
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