“De noite todo o sangue é negro” - ou - "Frère d'Âme" - de DAVID DIOP

Dois elementos provocatórios chamam a atenção do possível leitor – o título, e a capa do livro.

Leio a contra-capa. Diz que a ‘acção’ tem lugar durante a I Guerra Mundial, e que as personagens são dois atiradores senegaleses...

Dou novamente atenção à capa. Informa que o Autor ganhou o International Booker Prize de 2021.

Folheio o livro. É um livro breve, a letra é larga... Leio umas linhas... Vejo que a linguagem se baseia num estilo oral tradicional... Poético...

Penso – tenho sempre tantas leituras em atraso!... Será mais uma...

Mas sempre o estilo oral tradicional teve este efeito mágico sobre mim. Fascina-me, esta aproximação às narrativas primitivas, esta aproximação ao cenário de intimidade e simplicidade linear das histórias tradicionais... Na minha infância, nessa época em que todos nos sentávamos à mesa, ao mesmo tempo, e havia tempo para conversar, quer o meu pai quer a minha mãe, cada um deles evocava as suas histórias de infância, havia conversas sobre tudo e mais alguma coisa... Por vezes, o meu pai contava histórias tradicionais do Algarve, que tanto me divertiam. Era tão aconchegante...

Claro que não pensei em tudo isto quando comprei o livro! Mas este tipo de evocações vive profundamente nalgum recanto da nossa sensibilidade, e determina alguns dos nossos gestos, alguns dos nossos gostos.

A ACÇÃO

A história é muito simples.

É a Primeira Guerra Mundial. Um soldado senegalês, Alfa Ndiaye, encontra-se nas trincheiras, do lado francês. Alfa Ndiaye conta como acompanhou à guerra o seu amigo de infância, seu “mais que irmão”, Mademba Diop.

A morte de Mademba Diop deixa o narrador terrivelmente perturbado. Alfa Ndiaye entra num processo de alucinação que atemoriza os companheiros. É por isso enviado para a retaguarda, para se recuperar. Como não fala francês, o médico, o Dr. Armand, usa o desenho como terapia. Alfa Ndiaye começa então a desenhar o seu passado. Através dessa prática, ele recorda a sua vida na aldeia africana, em zona de influência muçulmana. Recorda a história da mãe, e como teria sido raptada por caçadores de escravos.

Recorda como foi adoptado pelo amigo.

Recorda a história do velho pai, detentor de humana sabedoria e prudência.

Recorda a namorada, e a hostilidade entre os pais de ambos. A propósito desta inimizade, Alfa Ndiaye fala-nos da propaganda colonial que pretendia levar os africanos da época a explorarem intensivamente a cultura do amendoim – tal como actualmente se faz com a soja ou o girassol... – cultura que iria destruir os meios de subsistência e autonomia das populações nativas, condenando-as impiedosamente à miséria.

Finalmente, quais os motivos que levaram o falecido amigo, Mademba Diop, a querer alistar-se e deixar a aldeia natal, e ir servir como soldado? Mademba Diop cedeu à propaganda francesa que prometia “integração” aos jovens africanos que soubessem falar francês e se alistassem...

É interessante ver como através de uma história tão simples, o Autor nos põe em contacto com o que terá sido a vida numa aldeia africana, e com a exploração colonial, na passagem do século XIX para o século XX.

Consegue, também, fazer-nos expectadores da tragédia da guerra de trincheiras que foi a I Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.

A TÉCNICA NARRATIVA

Numa narrativa fluente, o narrador conta-nos, logo no início do romance, que se encontra nas “trincheiras”. A partir da morte do Amigo e daquele prenúncio de loucura de que é acometido, ele narra a sua história e dos seus familiares em play-back, e faz uma evocação da vida quotidiana numa aldeia nativa do interior, na zona do litoral-norte do Senegal.

O conjunto termina com recurso a uma história tradicional. Li uma crítica de uma autora francesa que considera que este final é despropositado e estraga o conjunto do romance...

...Penso que este final é, de facto, desconcertante. Mas estará deliberadamente de acordo com o estilo oral de toda a narrativa. Estará certamente em harmonia com as tradições que acreditam na imortalidade da alma, e acreditam na presença e na companhia protectora dos mortos junto dos que permanecem vivos... A companhia do amigo inseparável, mais intelectual, estará eternamente a proteger o amigo sobrevivente, uma força da natureza...

A TÉCNICA LITERÁRIA

O Autor recorreu ao estilo oral tradicional dos contadores de histórias, e aí reside o outro encanto deste romance. O Autor reproduz a aparente inocência tradicional das narrativas orais.

E há este refrão, ou leitmotiv, “Em nome de Deus”... Assim, a história vai decorrendo num monólogo encantatório... Este refrão, ou leitmotiv, no início das frases, reporta-nos aos contos tradicionais indianos, ou árabes, começados por “Om”...

O Leitor vê facilmente, que está presente uma das características mais evidentes da "narrativa contemporânea", a ausência de cronologia. E tudo o mais diz respeito à magia que cada autor confere ao seu estilo pessoal!

A CONCLUIR...

Assinalemos que esta obra foi proposta para vários prémios, tendo ganho o prestigiado prémio Goncourt des Étuduants 2021. Ganhou ainda, o Internacional Booker Prize 2021, que em geral contempla autores de língua inglesa.

David Diop foi entrevistado no programa “La Grande Librairie”, de François Busnel, na TV5 Monde, na noite de 9 do passado mês de Novembro.

David Diop nasceu em 1966, em Paris, mas passou a infância no Senegal. É Professor na Universidade de Pau, em França. Acaba de publicar um segundo romance, “La Porte du Voyage sans Retour” (A porta da viagem sem regresso), que se refere à Ilha de Goré, onde eram embarcados os escravos para a travessia do Atlântico rumo às plantações de açúcar e algodão das Américas... Essa era a terrível “viagem sem regresso”... Estou muito curiosa quanto a esta segunda obra.

O título, em português, é tradução do título na versão inglesa. Resta-me acrescentar que não gostei nem da ilustração portuguesa da capa nem da versão do título... O título em francês seria talvez menos “atraente”, no sentido de menos apelativo da atenção de um provável futuro comprador/leitor, mas muito mais próximo da essência da história, “Frère d’Âme” – Irmão de Alma.

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Mais uma vez, desejo a todas as Amigas e Amigos que continuam a ler estes meus apontamentos,

Um ANO NOVO muito próspero e muito Feliz

Myriam,

29 de Dezembro de 2021

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 28/12/2021
Reeditado em 04/05/2022
Código do texto: T7417128
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