NA ESCURIDÃO EM BUSCA DA LUZ: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE VIRGÍNIA E DANIEL NA OBRA "O LUSTRE", DE CLARICE LISPECTOR

NA ESCURIDÃO EM BUSCA DA LUZ: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE VIRGÍNIA E DANIEL NA OBRA "O LUSTRE", DE CLARICE LISPECTOR¹

Antonio Carlos Valentini²; Gabrielly Soares².

¹ Trabalho realizado na disciplina de Narrativa Brasileira Do Século XX ao XXI, Prof. Dr. Wellington Ricardo Fioruci.

² Acadêmicos(as) do 6º período de Licenciatura Em Letras Português-Inglês da UTFPR, Campus Pato Branco – 2021-2.

O romance O Lustre, de Clarice Lispector, é publicado pela primeira vez no ano de 1946. Este é o seu segundo livro, no qual Clarice, umas das escritoras mais proeminentes da terceira geração do modernismo brasileiro (1945-1978), cria uma narrativa sobre a vida de uma garota chamada Virgínia, contando as suas vivências e sentimentos ao longo de sua infância, sua vida adulta, até a sua morte, com uma

[...] capacidade de elevar a descrição a um nível radioso de expressividade, como se dos fatos mais simples brotasse a cada instante o indefinível. A força desta escritora parece estar na capacidade de manipular os detalhes, que vão se juntando para formar a narrativa e sugerir o mundo (CANDIDO, 2007, p. 117).

Desse jeito, com grande sensibilidade, Lispector (2015) retrata a relação incomum da Virgínia com seu irmão Daniel. Ao longo de sua infância, percebe-se que a menina é apaixonada por ele e, quando se torna adulta, esse sentimento incestuoso continua existindo. Essa afeição surge já que Virgínia, durante sua infância na Granja Quieta, não mantém contato com outros garotos, sustentando certa ligação com uma única pessoa: seu irmão Daniel, que “com seus olhos limpos e secos vivia como só com Virgínia dentro da Granja. Desde que a irmã nascera ele a tomara e secretamente ela era apenas sua.” (LISPECTOR, 2015, p. 20)

Entretanto, essa veneração que Virgínia tem por Daniel não é recíproca, já que o garoto possui muita maldade em seu ser e esta é arremessada contra ela, que é muito inocente para compreender que todo o sentimento vindo dele gira em torno do ódio, da violência e do desprezo: “Não a amava sequer mas ela era doce e tola, fácil de se conduzir a qualquer ideia” (Ibidem, p. 20). Mesmo assim, a protagonista retribui essa crueldade com um amor contínuo: “[...] mesmo nas épocas em que ele se fechava severo e bruto dando-lhe ordens, ela obedecia porque sentia-o perto de si ocupando-se dela – ele era a criatura mais perfeita que ela conhecia.” (Ibidem, p. 20)

Desse modo, Daniel faz questão de diminuir sua irmã, ofuscando suas qualidades, sua pureza, e caracterizando-a pejorativamente ao considerá-la com uma “falta de inteligência” (RAMOS, 2013): “Venha, sua idiota” (LISPECTOR, 2015, p. 7); “Você seria até menos idiota se não fosse doida” (Ibidem, p. 24); “Você é vulgar e estúpida” (Ibidem, p. 41). Essa maldade pode ser vista já na infância de ambos, quando é criada a “Sociedade das Sombras”, que se trata de um meio inventado por Daniel para manipular sua irmã; de um símbolo de “poder” de Daniel para com ela (RAMOS, 2013):

Daniel encolerizava-se, empurrava-a apertando-lhe o braço, chamando-a de ignorante, ameaçando dissolver a Sociedade das Sombras, o que a aterrorizava, mais do que sua brutalidade física. Daniel inquietava-a: como que ele se degradava com o poder adquirido na Sociedade das Sombras; endurecera e não perdoava jamais. Virgínia temia-o, porém não lhe ocorria sequer escapar a seu domínio (LISPECTOR, 2015, p. 41).

Assim, por toda essa desvalorização advinda de seu irmão, ela fecha-se em seu “próprio mundo” e acredita que é realmente uma “idiota”, “mesmo porque ela própria se reconhecia tola e incapaz.” (Ibidem, p. 41)

Além de desvalorizá-la, Daniel também manipula-a, utilizando-se da estima que Virgínia sente por ele para fazê-la aceitar o que ele exige. Em certa ocasião, atormentado pela cólera, Daniel deseja fazer o mal também contra a sua outra irmã, chamada Esmeralda. Por isso, ele manda Virgínia contar a seu pai que Esmeralda está se encontrando com um homem às escondidas. Como a personagem principal é dominada por seu irmão, e por medo de ser expulsa da “Sociedade das Sombras”, Virgínia vai até seu pai e faz o que Daniel determina:

Virgínia espiava-o lúcida, os olhos móveis e espertos. Doía-lhe todo o corpo na expectativa.

O pai serenou bruscamente, voltou-se para ela:

– Confirme o que você disse.

– Foi ela quem contou?! gritou a mãe.

– Não... não! gemeu Virgínia branca olhando o pai.

Este vacilou um instante com olhos turvos e quentes:

– Não interessa quem foi, o que importa é que esta… (Ibidem, p. 48-49)

Todavia, Virgínia sabe que faz um mal terrível para sua irmã ao delatá-la. No instante em que seu pai está fazendo o interrogatório, Esmeralda e todos descobrem que foi Virgínia quem a dedurou. A menina finge um desmaio a fim de esquivar-se do que está acontecendo nesse momento: “Rápidos pensamentos entrecruzavam-se nela e antes que alguém pudesse prevê-lo ela deu um grito lancinante e deixou-se cair.” (Ibidem, p. 49). Sendo assim, o desmaio é um dos instrumentos de fuga da personagem.

O sentimento que Virgínia tem pelo irmão dura por muitos anos, fazendo com que ela compare todos os seus pretendentes a ele. A personagem principal pode até começar a sustentar sentimentos por outros homens que passam por sua vida, como Vicente e até mesmo Miguel, o porteiro do prédio em que ela passa a morar; mas, sempre que tem a oportunidade, a garota os compara com seu irmão. Há um determinado ponto do enredo em que, após vários encontros com Miguel, ela começa a gostar do homem mais do que devia; contudo, ela o compara novamente a Daniel: “Com Daniel era difícil, encantado, tão íngreme, renovadamente decepcionante. Com Miguel era liso e simples, ele sempre tinha tanta razão” (Ibidem, p. 92).

Independente de nutrir uma paixão por Daniel, não consegue ficar com ele para sempre, já que, após se mudarem para um novo apartamento, ele consegue uma namorada e, mais tarde, casam-se, mudando-se novamente para Granja Quieta. Isso faz com que Virgínia acabe sozinha na cidade, vivendo uma vida solitária na qual “sua vida transcorria como se ela não conhecesse mais ninguém” (SANTOS JÚNIOR, 2015, p. 86).

Como ainda observa Santos Júnior (2015),

o cotidiano de Virgínia, cada vez mais fechado e íntimo, já que passaria grande parte do tempo lendo, dormindo ou recordando cenas vividas na Granja Quieta, sugerem que a personagem, além de repetir a infância na vida adulta, está, aos poucos, resignando-se a viver só, nutrindo sua existência de si mesma e dos objetos que a circundam. (p. 87)

À vista disso, sem Daniel, ela torna-se uma mulher totalmente solitária, que precisa aprender a viver novamente sem o irmão. Isso tudo é consequência da “inferioridade de poder e de educação da mulher com relação ao homem, o que foi cada vez mais reforçado pela sociedade capitalista moderna” (RAMOS, 2013, p. 78), peculiarizando o androcentrismo do patriarcalismo. Nesse sentido, durante todo o enredo, existem marcas de inferiorização, de exclusão, de isolamento, de silenciamento:

Gostaria de contar ou de ouvir uma longa história só de palavras, mas Daniel nesses tempos mantinha-se silencioso e difícil, quase inexistente no casarão. Ela ficava mais sozinha, olhando a chuva. (LISPECTOR, 2015, p. 35-36)

Essa condição de viver presa a um ambiente limitado, “estando em um segundo plano em relação ao homem” (RAMOS, 2013, p. 79), é o que desvela as marcas do patriarcalismo dentro da obra. Em dado momento, Daniel manda Virgínia trancar-se no porão, como forma de “castigo”. Mesmo assim, “ela secretamente exultava: ao contrário do que Daniel imaginara, ela amava o porão e nunca o temera” (LISPECTOR, 2015, p. 41); pois já estava habituada à escuridão.

Dessa maneira, a personagem simboliza uma vítima do machismo, que não tem perspectiva de futuro e não faz ideia da possibilidade da libertação ao aprisionamento; das possibilidades reais de uma mulher (RAMOS, 2013). Além disso, por ser algo passado de geração em geração, ela vê-se tomando o mesmo rumo de sua genitora: “Com secreto horror, pensativa, via-se cada vez mais parecida de um certo modo com Esmeralda – imitando o destino da mãe” (LISPECTOR, 2015, p. 83).

Dentro dessa perspectiva, O Lustre pode ser visto como uma obra de frases “escuras”, repleta de metáforas que descrevem mulheres perdidas, sempre em busca de algo. Tal imagem de protagonistas perdidas antecipa, metaforicamente, a insatisfação feminina com o “lugar da mulher” que vai ser questionado pelas feministas nos anos 70/80 do século XX no Brasil (RAMOS, 2013, p. 90).

Ao notar a perda da individualidade da mãe por deixar ser controlada pelo marido, e ao ver que o mesmo acontece com ela, Virgínia empreende uma busca por identidade, retratando a marginalização da mulher que não tem voz, que é oprimida (RAMOS, 2013).

Sem ter acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e afetivos, ela não tem condição de construir uma história, já que está à grande margem da sociedade, sem conseguir pensar ou sentir (RAMOS, 2013, p. 104).

Isto é, a privação existente na vida de Virgínia a faz sentir-se em eterna perdição, sem encontrar-se no presente, sem recomeço, não conseguindo regressar ao passado nem vislumbrar o futuro. Assim, essa falta de recursos — materiais, intelectuais e afetivos, retirados por sua condição de marginalização — e, consequentemente, de motivação, a faz ter dificuldade em conduzir seu próprio destino e encaixar-se na sociedade (RAMOS, 2013).

Nessa perspectiva da vivência em meio à maldade, um lustre, citado duas vezes, no começo e no final da narrativa, dá título à obra por simbolizar uma “luz”: a bondade que ainda existe dentro de Virgínia. Dessa forma, o lustre está vinculado à ideia de iluminação. Por meio da fuga, a personagem busca essa “luz” que lhe falta em vida:

Ah, o lustre. Ela esquecera de olhar o lustre. Pareceu-lhe que o haviam guardado ou então que não tivera tempo de procurá-lo com os olhos. Sobretudo também não vira muitas outras coisas. Pensou que o perdera para sempre. E sem se entender, sentindo um certo vazio no coração, pareceu-lhe ainda que na verdade perdera uma de suas coisas. Que pena, disse surpreendida. Que pena, repetiu-se com arrependimento. O lustre… (LISPECTOR, 2015, p. 183)

Logo, o querer encontrar a “luz”, mesmo acostumada à sombra, ao vazio, à escuridão, é um desejo que a move, como se fosse a única coisa que lhe afastasse da morte iminente. O medo de perder o lustre corresponde, diante disso, ao medo de continuar envolta à escuridão, que a atormenta (RAMOS, 2013).

Outro objeto que também possui uma simbologia, sendo outro elemento de fuga e de busca de identidade, é o espelho, que é o meio pelo qual ela pode imaginar outros horizontes, saindo dos limites de sua vida. Nesse contexto, ao olhar ao espelho, ela sente-se viva: confirma sua existência e identidade (RAMOS, 2013) em meio a uma vida repleta de solidão, carência e silêncio.

Olhava-se ao espelho, o rosto branco e delicado perdido em penumbra, os olhos abertos, os lábios sem expressão. Ela se agradava, gostava daquele seu jeito, fino, tão sinuoso, dos cabelos sombreados, de seus ombros pequenos e magrinhos. Como sou linda, disse. Quem me compra? quem me compra? – fazia um ligeiro muxoxo ao espelho – quem me compra: ágil, engraçada, tão engraçada como se fosse loura mas não sou loura: tenho lindos, frios, extraordinários cabelos castanhos. (LISPECTOR, 2015, p. 46)

A trajetória de Virgínia é marcada, portanto, pela permanência na escuridão da existência e a tentativa de encontrar a clareira, o esclarecimento: sua verdadeira identidade apagada. A personagem passa toda a sua vida como se estivesse presa, exilada, dentro de uma caverna, sem encontrar o sentido de sua vida, a luz no final do túnel. Essa tentativa persiste até o final, quando ela alcança certo alívio somente na morte. Isso desmascara a injustiça que há em vida e após esta para quem não é compreendido, para quem é marginalizado, sendo ridicularizada mesmo após sua passagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDIDO, A. “O sistema literário consolidado”. In: Iniciação à literatura brasileira. 5a. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.

LISPECTOR, C. O Lustre. [recurso digital]. 1a. ed. Rio de Janeiro: Rocco digital, 2015.

RAMOS, T. B. L. Representação, espaço e deslocamento em O Lustre (1946), de Clarice Lispector. Dourados-MS, 2013. 115 p. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal da Grande Dourados, Faculdade de Comunicação Artes e Letras/Facale. Disponível em: <https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/bitstream/prefix/613/1/TarsilaBibianeLimaRamos.pdf>. Acesso em: 30 de nov. de 2021.

SANTOS JÚNIOR, M. G. Silêncio, sensações e segredos: o narrador e a personagem feminina no romance O lustre (1946), de Clarice Lispector. Presidente Prudente-SP, 2015. 127 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/132103>. Acesso em: 30 de nov. de 2021.