Peleja da alforriada no tribunal da Paraíba
Encharcada de dor, medo e incerteza, a mulher negra escrava alforriada paraibana, de Cabedelo, sentou no banco do salão de audiências do Tribunal da Paraíba e esperou cinco horas para ser atendida pelo Meirinho, antigo oficial da Justiça. O advogado dela, filho de negro e branca, apresentou demanda requerendo que Gertrudes Maria fosse considerada totalmente emancipada, após longos anos de trabalho, racionamento e fome, quando conseguiu juntar cem mil réis, saldando sua dívida com seu dono. O Ouvidor Cível da Província mandou prender Gertrudes Maria e seus dois filhos menores pelo desaforo de confrontar o Foro e ter se amancebado com um índio, união bizarra donde foram gerados cafuzos, uma espécie de insulto à etnia branca caucasiana, descendente do antigo povo ariano, ou seja, nobre. Os desembargadores da Casa de Suplicação, depois Casa da Justiça da Corte, entenderam que Gertrudes Maria não teria direito à sua carta de liberdade porque seu antigo senhor morreu sem saldar dívida com usureiro local. A escrava Gertrudes Maria entraria no rol do patrimônio do devedor para fins de reembolso ao abutre especulador, de tez branca e formidável conceito na sociedade.
Esses fatos desenrolaram-se na província da Parahyba, no ano da Graça de 1828. A Corte de Justiça tinha o costume de abrir as sessões com a celebração de missa “para que as decisões a serem tomadas fossem presididas pelo ideal de Justiça”. Conforme doutrina e fé dos desembargadores, seria da vontade de Deus que as duas crianças, filhas da escrava alforriada e presa, fossem entregues ao impetrante como pagamento de passivo. O advogado de defesa solicitou a revisão da sentença ao Intendente de Pernambuco. O processo durou mais de dez anos, que a burocracia mora na alma da Justiça brasileira desde sua formação. Justiça antiga e pesada desde os tempos mais arcaicos, diria meu pai, o rábula Arnaud Costa. Registre-se e arquive-se que os bacharéis brasileiros aprendiam a servir às conveniências da administração colonial. Seriam advogados oligárquicos, prepotentes com os da baixa extração social. Os da parte de cima do sistema jurídico, esses transformavam a máquina judiciária em moinho de moer pobre. Sempre foi assim. Uma escrava desafiando tal estrutura, incluindo o sistema escravagista brasileiro, não só é ocorrência digna de averbação na história das mulheres heroínas negras do Brasil, como de fato é parte substancial da longa trajetória da sociedade brasileira em sua briga por um Direito moderno e humanizado.
Gertrudes Maria saiu da cadeia e foi vender quitutes na Praça Barão do Rio Branco, no centro histórico da capital Parahyba, hoje chamada João Pessoa. A ex-escrava empreendedora criou os filhos e pagou sua alforria vintém por vintém, comercializando seus doces, sentada na calçada do prédio onde até há pouco tempo funcionava a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e a Associação do Movimento Negro e Indígena. O reitor da Universidade Federal da Paraíba mandou escorraçar as entidades dos advogados e dos negros. Tem circunstância mais simbólica? Advogados idealistas, negros e índios talvez querendo ocupar os espaços onde no passado não conseguiam sair do apagamento, expulsos por um burocrata cumprindo seu papel de instrumento de manutenção ideológica, em confronto com a justiça plena e igualitária.
Esses acontecidos foram narrados na rima e métrica do cordel pelo jornalista Dalmo Oliveira, no seu folheto “A peleja da alforriada no tribunal da Paraíba”, com capa e edição do xilogravurista Marcelo Soares. Para Dalmo, a história de Gertrudes Maria, é tema de debate desde quando se tornou ativista do Movimento Negro de João Pessoa e participava de campanhas para mudar o nome da Praça Rio Branco, no centro da cidade, pelo da ex-escravizada. “O caso de Gertrudes foi tão emblemático que se tornou paradigma no Tribunal de Justiça da Paraíba, ainda Província”, acrescentou Dalmo. Ao final, ele comove: “Não sei ao certo a gênese de minha africanidade. Dedico este cordel a minha mãe, Dalvanira Oliveira da Silva, que hoje já não sabe mais quem é e que jamais teve o direito de saber de onde realmente veio”.