“Os Cus de Judas” – de ANTÓNIO LOBO ANTUNES

António Lobo Antunes é um grande escritor português, que muitíssimo admiro.

“Os Cus de Judas”, a primeira obra que publicou, é uma obra extraordinária, que nos absorve a atenção e a emotividade. Eu já a tinha lido quando ela foi publicada pela primeira vez, em 1979. Mas já não me lembrava dos pormenores, e daí que estive a relê-la novamente. E felizmente que assim aconteceu, pois agora li-a com muito mais conhecimentos tanto sobre a nossa História recente, como em matéria de interpretação literária.

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Em primeiro lugar, e para quem não viveu os tempos da Ditadura, em Portugal, será conveniente fazermos um breve enquadramento histórico, para bem percebermos o tema e o enredo de “Os Cus de Judas”.

Então, comecemos pelo princípio:

1- Enquadramento histórico

O sistema colonial foi consequência do fenómeno económico e social que os historiadores designam como “expansão europeia”. Os países mais poderosos da Europa tiveram colónias em África, na América, na Ásia e na Oceânia.

No século XX, Portugal mantinha territórios coloniais em África (Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique), na costa ocidental da Índia (os territórios de Goa, Damão e Diu), e na parte ocidental da ilha de Timor, na Indonésia.

Esse sistema de exploração de riquezas naturais e de mão-se-obra não propriamente “barata” mas “gratuita” entrou em colapso quando os líderes mais esclarecidos e dinâmicos dos povos colonizados se juntaram na Conferência de Bandung, entre 18 e 24 de Abril de 1955. (1)

Antes disso, porém, na I Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, os países colonizadores europeus tinham usado corpos de intervenção formados por soldados africanos. Porém, finda a guerra, os sobreviventes não tinham obtido o reconhecimento e compensações com que haviam sido aliciados. E essa injustiça nunca foi esquecida.

Em meados da década de ’30, os poetas de língua francesa, Aimé Césaire, natural da colónia francesa da Martinica, e Lépold Senghor, natural da colónia francesa do Senegal, encontram-se enquanto estudantes em Paris. Aí, desencadeiam o movimento cultural que ficou conhecido como Negritude (2). Como naturais de colónias francesas, eles preconizavam a valorização da cultura original dos países africanos de língua francesa. Mas esse movimento difundiu-se e a sua influência estendeu-se a outros povos colonizados.

Penso que o primeiro grande levantamento contra os poderes coloniais foi o que deu origem à independência da Irlanda, que conseguiu libertar-se do poderio inglês após a Primeira Guerra Mundial, levando a cabo uma guerra de subversão e guerrilha entre 1919 e 1921.

A partir da II Guerra Mundial, começaram outros movimentos de libertação em diferentes colónias. A Índia, sob a condução de Mahatma Gandhi, conseguiu que a Inglaterra reconhecesse a sua independência em 1947. (3)

A Indochina (Vietnam) libertou-se da França após uma guerra de libertação que durou desde 1946 até 1954. (4)

Em 1952, no Quénia, colónia inglesa, teve início a revolta Mau-Mau, e uma luta de libertação que durou até 1957 (5).

O Congo conseguiu tornar-se independente da Bélgica em 1959. (6)

Na Argélia, colónia francesa, a “guerra de libertação” durou de 1954 até 1962 (7).

Em Dezembro de 1961, Nehru, primeiro-ministro da então denominada União Indiana, exigia a “restituição” à Índia, dos territórios de Goa, Damão e Diu. (8)

Enfim, para resumir, vemos que na década de ’50, no século XX, as regiões colonizadas pelos poderosos países europeus ganharam força e iniciaram lutas de libertação em relação aos países dominadores.

Do mesmo modo, as colónias portuguesas de Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, e Moçambique, tiveram de recorrer à guerra para conseguirem a sua libertação política. Salazar recusou-se a ler o seu tempo. Acreditou que pelas perseguições, pelas prisões políticas e pelos campos-de-concentração, conseguiria dominar o fluir da História. Preferiu envolver Portugal e os "territórios ultramarinos" nesse esforço desesperado e anacrónico de manter as colónias ou, conforme dizia, “o Império”, numa guerra que se desenvolveu em três frentes (Guiné, Angola, Moçambique), e que durou desde 4 de Fevereiro de 1961, até à “Revolução do 25 de Abril” em 1974.

2- A revolta em Angola

Entre o final de 1960 e o princípio de 1961, deu-se o início dos levantamentos de revolta em Angola:

“Angola viveria entre finais de 1960 e os primeiros meses de 1961 a revolta dos camponeses do algodão, na Baixa do Cassange, o assalto dos nacionalistas angolanos às cadeias de Luanda e o levantamento no norte do território. São acontecimentos que marcam o início, para os portugueses, de uma guerra colonial de 13 anos e, para os angolanos e os outros povos das colónias, das guerras de libertação nacional." (9)

Como em todas as guerras, é nessas circunstâncias que o ser humano revela a sua natureza mais profunda – nuns casos, a sua crueldade mais brutal, noutros casos, a sua capacidade de bondade e misericórdia.

Penso que agora os leitores mais jovens poderão compreender o tema e a narrativa da primeira obra publicada por ANTÓNIO LOBO ANTUNES, “Os Cus de Judas”, pois aqui o autor fala sem rodeios do que foi a experiência da Guerra Colonial, mantida pelo regime ditatorial de Salazar.

ANTÓNIO LOBO ANTUNES estudou Medicina. Foi pois mobilizado como médico.

Ele fala-nos da experiência da guerra, através da personagem principal deste seu romance. Recordemos que pelo facto de termos uma narrativa na 1ª pessoa (do singular), isso não significa que o autor fale exclusivamente da sua experiência. O médico protagonista deste romance é uma ficção: através desta ficção, o Autor pode juntar, fundir numa só “experiência” – a do protagonista – todas as experiências que presenciou e de que teve conhecimento!

3- O Título

Em primeiro lugar, importa esclarecer o sentido deste título – “Os Cus de Judas”. Trata-se de uma expressão portuguesa, uma expressão depreciativa que significa “lá para os fins do mundo...”

4- A narrativa e as personagens

Nesta sua obra, António Lobo Antunes, que logo no início desta Guerra serviu como médico, em Angola, comunica-nos magistralmente a dor e a angústia de quem participa naquela tragédia porque a isso eram obrigados todos os jovens, pela força política que dominava e imperava no país, e também a dor e angústia impotente do médico de campanha que vê sofrer e não dispõe de meios para colmatar a dor alheia.

Comunica-nos ainda as saudades da família, e o entranhado receio – ou certeza – de que, após uma tal experiência, nunca mais poderá voltar a ser o mesmo... Aliás, numa entrevista ao diário espanhol El País, ele diz:

“Depois de 60 anos continuas com pesadelos por causa das coisas horríveis em que participas”. (10)

A narrativa segue dois caminhos:

Por um lado, segue uma ordem cronológica, pois o Autor, como em qualquer romance “clássico”, começa por nos apresentar a sua infância. Segue-se o seu treino militar em Santa Margarida, zona de treinos para os “alferes milicianos”, isto é, para os mancebos com “cursos superiores” (universitários).

E segue-se, logicamente, a viagem para os cenários de guerra, num dos navios da Marinha Mercante contratados para o transporte das tropas para o “Ultramar”.

Toda a narrativa vai seguindo o percurso do contingente em que o jovem médico foi incorporado.

Porém, esta linha cronológica é perpassada por “saltos” no tempo. Isto é, surgem as “associações de ideias” e tanto estamos no Presente, como no Passado! No meio da confusão dos feridos e das mortes, a mente foge da realidade e vagueia pelos momentos bons do passado, pelas saudades da filha pequenina, pelo receio de nunca regressar, ou o que dará no mesmo, de nunca mais voltar a ser a mesma pessoa...

Através da narrativa e da sua fuga à realidade através das recordações, o Autor escalpeliza as perversidades do Estado Novo e da sociedade que ele fomentou e criou, com o pseudo-conforto do quietismo e conformismo que tanto convinham ao “Regime”... Este aspecto é demonstrado através das personagens das tias do protagonista, que tinham tido a educação alienada das antigas senhoras de sociedade.

Fala das instituições criadas pelo Estado para seu próprio apoio – a Mocidade Portuguesa, instituição paralela ao sistema educativo, criada para inculcar nos jovens o ideal do “Serviço e Sacrifício”, sob o modelo nazi, e a sua saudação. E ridiculariza o Movimento Nacional Feminino, organização das “senhoras-bem” que se prestavam a dar apoio aos “soldadinhos”...

Fala enfim, da crueldade da guerra, da indiferença dos generais que exigem a vitória das forças portuguesas contra os combatentes da Guerrilha, indiferentes à falta de condições fornecidas aos militares em campanha.

Fala da falta de recursos para tratar os feridos.

E fala do recurso de todos aqueles homens, deslocados e desenraizados, que de noite percorriam as sanzalas à procura de mulher... De passagem, aponta os filhos mestiços de soldados portugueses e mulheres africanas, filhos do acaso da noite, que ficam abandonados...

Fala, ainda, da PIDE, a tenebrosa polícia política salazarista...

Enfim, Lobo Antunes tece uma panorâmica geral e objectiva de toda a sociedade portuguesa daquelas décadas sob a influência da ideologia do Estado Novo...

4- A técnica narrativa

A primeira característica que se torna evidente para o leitor é a ironia. António

Lobo Antunes escalpeliza cada pormenor dos comportamentos das personagens de que não gosta, e através do ridículo, põe em evidência o seu lado mais egocêntrico e cruel.

No entanto, põe igualmente em evidência mas agora da forma mais pungente, todo o drama que é ver morrer os companheiros, ou vê-los saltar em pedaços devido a uma granada, ou vê-los agonizar com os corpos desfeitos...

A narrativa desenvolve-se num monólogo doloroso. O protagonista, de quem não chegamos a saber o nome, no regresso dos seus dois anos de guerra, separado da esposa e da filha, ainda dominado pelas ondas de choque das recordações traumatizantes das cenas sempre presentes de feridos e mortos, traz para casa uma companheira de copos que encontrou num bar nocturno.

É essa interlocutora de ocasião, que o escuta sempre atenta e calada, o alvo da pungente narrativa. Daí, esses saltos cronológicos, pois o narrador, apesar de seguir o percurso das caminhadas de campanha, vagueia não só ao sabor das associações de ideias, como também de um aroma, uma luz, um olhar, e a sua memória salta de sinestesia em sinestesia, de episódio em episódio...

Há ainda um pormenor curioso. Os capítulos são encabeçados pelas letras do alfabeto. Assim, temos o capítulo A, o capítulo B, e vai seguindo até ao capítulo Z. Quer dizer, quando chega ao fim da enunciação do alfabeto, a sua história fica concluída, fica completa.

Quanto ao narrador:

Este narrador de quem não ficamos a saber o nome é, pois, um narrador anónimo. Este anonimato confere ao narrador um valor generalizante, um valor "universal". Isto é, o anonimato confere-lhe a função de SÍMBOLO – este narrador, este jovem, representa todos aqueles soldados e milicianos que foram enviados para as frentes de combate.

5- A técnica literária

Quanto à técnica literária, Lobo Antunes pratica a frase longa, que implica uma pontuação diferente da tradicional. Mas esta prática não interfere com a fluidez do discurso narrativo. Muito pelo contrário, favorece a adesão do leitor à angústia obsessiva da narração.

6 - A finalizar

“Os Cus de Judas” é uma obra que ficará como um monumento literário inolvidável, não apenas como obra literária mas também como testemunho de um período trágico da história recente de Portugal.

Eu já tinha lido esta obra logo quando foi publicada, em 1979. Mas agora, com esta releitura, recordei-a com o prazer de ler uma obra extraordinária, mas também com a angústia de recordar aqueles anos terríveis em que os nossos jovens eram lançados naquele inferno ... de que uns voltavam... e outros não...

A escrita de António Lobo Antunes é uma escrita angustiante, mas igualmente, uma escrita apaixonante, que nos tira o fôlego. E que nós, leitores, temos que irremediavelmente seguir até ao fim.

NOTAS:

(1) - Sobre a Conferência de Bandung, poderá consultar:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Bandungue

(2) - Sobre o movimento da Negritude, poderá consultar:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Negritude

(3) Sobre a independência da Índia, poderá consultar:

https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/independencia-da-india-nao-violencia-e-desobediencia-civil-de-ghandi.htm

(4) Sobre a libertação da Indochina (Vietnam), poderá consultar:

https://brasilescola.uol.com.br/historiag/guerra-da-indochina.htm

(5) Sobre a independência do Quénia, poderá ver:

https://www.mondayfeelings.com/pt-br/independencia-do-quenia/

(6) Sobre a independência do Congo em relação à Bélgica, poderá consultar:

https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/a-independencia-congo-belga.htm

(7) Sobre a Guerra de Independência da Argélia, poderá consultar:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_de_Independ%C3%AAncia_Argelina

(8) Sobre a anexação do “Estado da Índia” à União Indiana, poderá ver:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_de_Goa

(9) Sobre o início da guerra de libertação em Angola, poderá consultar:

https://ensina.rtp.pt/artigo/angola-1961-o-inicio-do-fim/

(10)- António Lobo Antunes em entrevista ao jornal espanhol El País, edição de 25-09-2015:

HTTP://OBSERVADOR.PT/2015/09/25/LOBO-ANTUNES-PERGUNTO-ME-UM-HOMEM-NUNCA-FODEU-PODE-BOM-ESCRITOR/

Leituras complementares:

Guerra Colonial Portuguesa

https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Colonial_Portuguesa

Sobre as consequências da colonização europeia em África, poderá ler:

"Os Condenados da Terra" - de Frantz Fanon

Curiosamente, o autor desta obra também era médico, médico psiquiatra.

Esta obra notável influenciou a tomada de consciência que, a par de todos os outros factores, levou às lutas de libertação.

O livro foi publicado pela primeira vez em França, em 1961.

Em Portugal, esta obra foi proibida pela Censura salazarista.

Sobre a obra pode colher mais informação em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Condenados_da_Terra

“Ébano” - de Ryszard Kapuściński

Trata-se de um livro de reportagens através dos países africanos.

A partir dos cenários que presencia, o Autor faz uma explicação histórica e sociológica para tudo o que vê.

A obra original é de 1998.

Porto Editora, 2017

Myriam

11 de Novembro de 2021

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 11/11/2021
Reeditado em 04/05/2022
Código do texto: T7383623
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