Frankenstein: o retorno do recalcado?
Livro: "Frankenstein"; de Mary Shelley
Frankenstein não é o nome da criatura, mas do criador, Viktor, que, em seu empreendimento audacioso, dá vida a um ser cuja aparência lhe assombrará até o fim de sua existência.
A criatura é feita de pedaços, ao modo da constituição do eu, essa espécie de estrutura suturada, de "precipitado de identificações", como formulou Freud. O “dæmon”, ou “demônio”, como é chamado por seu criador, impõe a este um sofrimento cada vez maior, na medida em que seu artífice busca debelar sua existência, não o legitimando, sobretudo por sua estranheza. O inconsciente, onde habita este “estranho-familiar” (unheimlich) tem mesmo esta dimensão espantosa para o sujeito, tanto mais quanto ele recusa sua divisão fundamental quando acredita "saber de si" ou quando escolhe, ainda que inconscientemente, não saber de nada d'Isso e reprime aquilo que depõe contra sua ilusão de unidade.
O "Prometeu moderno", este "Adão renegado", caído desde o príncipio, além da alusão que faz aos limites técnicos e éticos da ciência, remete-se a um traço da condição humana: o desamparo de um ser que busca seu igual para sair da solidão angustiante - o que o dæmon jamais encontra por ser único em sua espécie e ter negada sua "Eva" pelo criador que temia a reprodução de tal monstruosidade. O destino de Viktor Frankenstein se torna cada vez mais trágico, ao modo das profecias autorrealizadoras do neurótico, pela insistência na postura daquele que não reconhece em si mesmo um afeto de base como o ódio, não considera a pulsão de morte, este impulso destrutivo capaz de aniquilar inclusive o que o sujeito mais ama; inclusive a si mesmo. Ali onde não houve nenhuma integração ou consideração a respeito da "Coisa" e, portanto, o recalque se deu (uma negação inconsciente), o ímpeto do retorno do recalcado, incapaz de lidar com a ambivalência, se lança exclusivamente ao ódio que destrói os objetos investidos de amor por aquele que seria o criador e ao mesmo tempo a própria criatura - porque o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. Criador e criatura podem ser um só: dois aspectos de um sujeito dividido e em negação.
O demônio assassina todas as pessoas amadas por Viktor Frankenstein, mas isso não faz seu amo potencial inclinar-se em sua direção. Antes, acentua ainda mais o ódio que o faz perseguí-lo por mares, florestas e oceanos congelados pelo clima gélido do norte. O frio da rejeição volta sob a forma de violência, de fim da possibilidade de fazer laço, de imperativo que se coloca sobre o sujeito e o subjuga. Até o fim, Viktor sustenta sua posição, embora no leito de morte se torne menos figadal. A criatura se aplaca ao ver seu criador nos braços de Tanatos. A morte por exaustão de Viktor Frankenstein o despossui de sua força sobre-humana, como o sujeito moderno diante da denúncia nietzschiana, de que “Deus está morto”, se encontra entregue a um não-lugar paradoxal porquanto se encontra com aquilo que mais buscou e que mais lhe apavora: a liberdade de não mais estar sob juízo de um demiurgo.