“Ponciá Vicêncio” e o nosso verdadeiro nome.
Ponciá é uma mulher que desde menina não reconhece o nome que lhe deram como sendo o seu verdadeiro nome. Às vezes se olha no espelho e pronuncia a palavra “Ponciá Vicêncio” esperando que essa tal “Ponciá” lhe apareça e lhe diga algo como, por exemplo, o sentido e o significado daquele nome que haviam lhe dado. Mas, apesar desse desconforto e na falta de outro nome, tem que conviver com aquele mesmo. Isso faz com que a personagem, por vezes, sinta um vazio dentro de si, como se ela estivesse esvaziada de si mesma e, por isso, sempre em busca de quem era de fato. Talvez, quem sabe, em busca de quem deveria ser...
Dito isso, é importante salientarmos que o nome de um ser deve, em tese, carregar a essência do que tal ser é. No que se refere às pessoas, seus nomes deveriam expressar um sentido que esteja relacionado de alguma forma à sua história. Assim, sabendo que tanto Ponciá quanto muitos da população afrodescendente carrega os nomes e sobrenomes dos ex-escravizadores de seus antepassados, é possível tirar uma lição, fazer uma metáfora com tudo isso, para iluminar nossos passos nos dias atuais.
Nós – homens negros e mulheres negras – fomos nomeados(as) não apenas com nomes e sobrenomes de ex-senhores de engenho e de traficantes de pessoas escravizadas, mas também, fomos nomeados como inferiores, sujos, incapazes, demoníacos, selvagens, ingratos, violentos, preguiçosos, fedorentos. A sociedade brasileira, escravista e pós-escravista, assim nos nomeou querendo com isso atribuir e consolidar uma essência ruim para a população negra neste país. Quis, com isso, nos convencer que o nosso lugar natural é o da infindável exploração diária dos assalariados e desempregados despossuídos, da subalternidade, da marginalidade, sempre da segunda ou terceira categoria.
Embora seja verdade que alguns – desamparados de sua história e ancestralidade e vencidos pela rotina das propagandas racistas – sucumbem aos apelos preconceituosos que nos diminuem como gente, é também verdade que há, entre nós, aqueles que não se submetem e não se calam diante dessa histórica tentativa indecente de nos desumanizar. De maneira que, assim como Ponciá, não reconhecemos como nossos esses nomes pelos quais insistem em nos chamar desde que o primeiro africano aqui pisou a contragosto. Como Ponciá, sentimos que nossos nomes são outros, os quais, mesmo que estejam perdidos em algum lugar da história, poderemos encontrá-los dentro de nós, em meio a nossas famílias, através de nossa luta conjunta nas ruas, nos coletivos, nas escolas, nas redes sociais, nos saraus. Como Ponciá, todos nós – indivíduos de pele preta e consciência crítica – ficamos com as mãos coçando e, no limite, sangrando, de tanta vontade de pegar no barro de nossas vidas e modelarmos a história que desejamos e projetamos para nós e para os nossos neste país.
E, como todo leitor é também autor da obra que lê – pelo menos autor de sua interpretação –, penso que se a personagem Ponciá me disse diretamente alguma coisa, foi que a aceitação passiva dos nomes que são atribuídos a nós por aqueles que nos querem sempre no chão é algo que nos paralisa, nos esteriliza e, por fim, nos tira o entusiasmo de viver.
Por isso, caso queiramos permanecer de pé e caminhar de cabeça erguida sobre o chão, devemos afirmar reiteradas vezes o nosso nome, já revelado para nós através de nossa ousadia, de nossa rebeldia, de nossa inteligência e de nossa coragem. E mesmo que você não saiba ainda – porém muitos de nós já o sabem – qual é o nome que verdadeiramente reflete quem você é, recuse tenazmente qualquer nome que negue ou deturpe a humanidade que te define como gente, que te define como um ser não apenas de movimento e força, mas também de vontade, história e sapiência.