UM OLHAR A POESIA DE PE. ANCHIETA: ANÁLISE DO “AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO”.
Contexto histórico da poesia de Anchieta
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José Anchieta faz parte da corrente literária que chamamos de quinhentismo. Este movimento é caracterizado por ter uma escrita muito ligada ao religioso, o sagrado. Tal escrita religiosa deve-se a grande influência que o teocentrismo tinha sobre esta fase. O século XVI é a transição do teocentrismo para o antropocentrismo, é nesta época, por exemplo, que se deu a maior sacudidela do cristianismo, a Reforma protestante, protagonizada por Martinho Lutero em 1517 e a Contra-Reforma, o Concílio de Trento (1545-1563). Assim, o quinhentismo vive grandes batalhas religiosas apesar de ser idade moderna.
É neste contexto que se encerra a poesia de Pe. Anchieta, uma poesia religiosa, de confissão caracterizada por ser objectiva apesar de usar figuras de estilo. O clássico “Ao Santíssimo Sacramento” de Anchieta é uma prova clara da natureza da poesia quinhentista muito virada para o sagrado e distante do profano, mundano.
Ao Santíssimo Sacramento
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.
Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.
E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.
Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.
Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.
Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.
Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
Se contêm.
É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.
Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
A comer.
Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.
Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.
É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contino.
Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.
Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.
Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.
Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.
Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!
Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!
Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.
Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,
Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.
Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,
Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,
Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.
E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.
Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!
Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.
Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.
Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.
Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.
A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.
Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.
Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.
Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.
Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.
Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós
Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,
que comprastes
Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes
Padecer.
Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.
Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.
Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.
Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão
Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.
Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.
Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.
Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.
Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.
Amém.
Análise Titulógica do “Ao Santíssimo Sacramento”.
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Ao Santíssimo Sacramento é um dos poemas mais lidos e conhecidos deste jesuíta, considerado por muitos o primeiro poeta brasileiro. Este poema começa por surpreender pela natureza do seu título, rico em literariedade e com um enorme tom artístico-metafórico. O primeiro detalhe consiste no facto de a forma como se apresenta o título, faz-nos lembrar de uma epístola, o sujeito poético dirige-se ao sacramento cujas palavras são as estrofes. Na realidade, sacramento no título é um elemento metonímico, na medida que é um acto que substitui o Sagrado, Jesus. Logo, esta carta deste eu-lírico dirige-se não ao sinal, o sacramento, mas sim a Jesus, nesta perspectiva o manto do título seria “Ao Santíssimo Cristo, Filho de Deus, Messias.
Neste título, verifica-se uma certa intensificação da sacralidade do sacramento, é uma superlativação. Para o sujeito poético não é suficiente afirmar “sacramento”, por ser da esfera do sagrado, um acto hierofánico , ele prefere “Ao Santíssimo” o que nos leva a concluir que esta carta é uma adoração, veneração e enorme respeito pelo acto do Sagrado, o Sacramento. É por esta razão que este acto é duas vezes sagrado, distinto nas suas próprias palavras. Repare que a palavra “Santíssimo” é o grau superlativo absoluto sintético de Santo, palavra que nos chega do latim santu(m) significando distinto, tudo que foi contaminado pelo Sagrado, Transcendente, o Radicalmente Outro. Já a palavra “sacramento” possui o radical “sacro” do latim siginificando distinto, cortado do resto, diferente, sagrado. Ela refere-se ao sinal instituído pelo Sagrado (S João 3:16), assim um excesso de sagrado no título.
Se afirmámos que se trata de uma carta poética que o sujeito poético de Anchieta dirige ao “Santíssimo Sacramento”, surge então uma questão que se impõe: que sacramento e quais as palavras que usa para se dirigir a ele? A resposta desta pergunta é clarificada pelas estrofes deste poema. Ao longo da leitura delas, observa-se o tipo de relação que o sujeito poético mantém com a realidade transcendental. Por ser um poema longo analisaremos apenas algumas estrofes.
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Leitura Analítica das Estrofes: Do Cordeiro a Eucaristia
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A primeira começa com uma invocação e uma exaltação “Ó que pão, ó que comida,∕ ó que divino manjar ∕se nos dá no Santo Altar ∕cada dia!” . Tal invocação e exaltação dirige-se ao Pão, a Comida que são elementos metafóricos no poema, pois apontam para ao acto de Jesus, daí o pão representar o corpo dele e o vinho o santo sangue, tudo isto faz a comida sagrada que na realidade é o próprio Cristo que se fez de bode expiatório. O eu-lírico faz referência que esta comida sagrada come-se diariamente no altar, lugar sagrado, o que implica que aponta para uma devoção, culto ao corpo e sangue de Cristo. Esta aí então a resposta da primeira pergunta, é um retrato da eucaristia, santa ceia , um simbolismo já construído pelo próprio Cristo, mas aproveitado por este sujeito poético.
“Filho da Virgem Maria,∕ que Deus Padre cá mandou∕ e por nós na Cruz passou ∕crua morte”. Na segunda estrofe, o sujeito poético revela a comparação abreviada que se faz com “o pão” da primeira estrofe revelando que este tal Cordeiro nasceu de uma Virgem( hiperdulia) enviado por um Deus Pai que se preocupa com a humanidade. É na terceira estrofe que o eu-lírico revela a razão do sacrifício deste Filho: fez-se sagrado na Cruz para tornar sagrada a humanidade. Observa-se um retrato hierofánico que apresenta num lado o profano, material, mundano, o homem, e noutro o Sagrado que se manifesta através da eucaristia ou da morte de seu filho numa cruz.
É um poema totalmente virado para estrofe do Sagrado, religioso. Retrata da relação do pecador com o seu Deus, Tal como podemos verificar na décima primeira estrofe “Não tendes de que temer, senão dos vossos pecados. Se forem bem confessados isto basta”. Apresentando, assim, uma relação entre o Divino e o homo religiosus baseado no perdão, no amor, basta confessar para que o profano seja salvo.
Anchieta e Camões: uma pequena análise comparativa
Sobre estes dois grandes nomes da literatura lusófona, há muito que se diga. Ambos são da época quinhentista, a era dos descobrimentos e da exploração marítima. Uma forma muito comum de escrever nesta altura, são as formas fixas que se originam em Petrarca no século XIV : mormente a canção e o soneto. A epopeia de Camões, Os Lusiadas, por exemplo, é toda uma narrativa escrita em sonetos, ricos em versos rimáticos, figuras de estilo e com uma metrificação rigorosa. Esta rigorosidade e forma de escrever é comum já desde século XIV e estendeu-se ao Século XVI o que não se vê na poesia de Anchieta, nota-se poemas longos, objetivos com uma métrica variada . Camões narrava todas as viagens dos lusitanos, Anchieta fala do religioso do sagrado, possivelmente , porque era o seu objetivo catequisar, numa altura que os grandes autores enalteciam as grandes conquistas já que a época quinhentista é toda ela de descobrimentos, da passagem do teo para o antropos.