Fonseca adorna romance policial com erudição e digressão

Delfina Delamare, mulher da alta sociedade carioca, é encontrada morta dentro de um carro em uma rua sem saída. A princípio, suspeita-se de suicídio, mas Guedes, o policial encarregado do caso, começa a desconfiar de que não foi bem assim. Temos um corpo, um tira ressabiado e um possível assassino. O suficiente para desencadear uma trama de romance policial. Em "Bufo & Spallanzani" (Cia das Letras, 1997, 238 páginas), porém, o escritor Rubem Fonseca faz muito mais do que um jogo de gato e rato entre polícia e criminoso.

"Bufo & Spallanzani" remete a dois personagens, um deles histórico. Bufo refere-se a um sapo da espécie Bufo marinus (hoje chamado de Rhinella marina), nativo de países das Américas Sul e Central. Lazzaro Spallanzani (1729-1799) foi um padre italiano interessado em ciências e perscrutador da teoria da abiogênese.

Alguém pode se perguntar: que diabos os experimentos de um sacerdote católico com sapos no século XVIII pode ter a ver com o assassinato de uma burguesa carioca no século XX (a história se passa na década de 1980)? Eles são personagens de uma "história dentro de uma história". O protagonista-narrador Gustavo Flávio/Ivan Canabrava, principal suspeito da morte de Delfina, está escrevendo uma ficção histórica cujo título é o mesmo do romance: "Bufo & Spallanzani".

Trata-se da manifestação de dois artíficios de estilo que permeiam a obra: a erudição e a digressão. A narração em primeira pessoa é acompanhada de divagações a granel, recordações (levando o leitor a um "passado negro"), citações de outros escritores, observações irônicas e comentários sutilmente humorísticos.

A narrativa, que era para ser centrada na morte da mulher encontrada no carro, acaba se desdobrando em outras duas tramas (do passado e do presente) com mais defuntos e mais mistérios. Assim, a maior parte do livro é ocupada por esses outros imbróglios e só no final (o que é esperado) teremos a resposta (ou será que não?) para o crime envolvendo a madame.

O romance tem aspectos da literatura pós-moderna. Além da intertextualidade, paródia e digressão, há também metanarração. Flávio/Canabrava é escritor, então ele narra como se estivesse escrevendo um livro e aproveita para fazer reflexões sobre o próprio processo da escrita.

E a narração talvez seja "não-confiável". O protagonista conta a história de uma forma que, em muitos momentos, parece ter se tornado um narrador onisciente. Mas Fonseca aproveita as limitações acerca disto para instigar quem lê o romance. Por exemplo, há ambiguidades em elementos da história que obrigam o leitor a tirar suas próprias conclusões.

"Bufo & Spallanzani" é um romance inteligente porque os recursos

estilíticos usados por Fonseca tornam o enredo inventivo, divertido e interessante. É muito além da história de um tira atrás de um criminoso.