A excentricidade de Bocage expressa em "Já se afastou de nós o Inverno agreste"

Já se afastou de nós o Inverno agreste

Envolto nos seus húmidos vapores;

A fértil Primavera, a mãe das flores

O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares o subtil nordeste

Os torna azuis: as aves de mil cores

Adejam entre Zéfiros, e Amores,

E torna o fresco Tejo a cor celeste;

Vem, ó Marília, vem lograr comigo

Destes alegres campos a beleza,

Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar da corte a vã grandeza:

Quanto me agrada mais estar contigo

Notando as perfeições da Natureza!

(Manuel Maria Barbosa du Bocage)

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é um poeta/sonetista português de grande relevância para a literatura portuguesa em decorrência de sua notoriedade para o movimento do Arcadismo (1756-1824), sendo seu principal representante, e por ser um dos precursores do Romantismo português (1825-1865), ao viver a transitoriedade de períodos em sua própria pessoa: tornando-o um célebre da literatura portuguesa.

Nesse sentido, a obra de Bocage trata tanto de temas bucólicos, pastoris e de mitologia clássica – próprios do Arcadismo – quanto de temas pré-românticos, satíricos, encomiásticos e eróticos. Essa amplitude de temáticas faz dele uma grande influência para diversos autores vindouros e compõe a literatura de toda uma época: com seus sonetos, muitas vezes, até mesclando traços do Arcadismo e do Romantismo. Para comprovar essa dualidade do autor, pode-se verificar sua forma de composição de um soneto árcade no qual o eu-lírico faz um convite à musa Marília.

No soneto “Já se afastou de nós o Inverno agreste”, observam-se características do Arcadismo, pois, no que concerne ao contexto do autor, é escrita no momento em que esse assume o pseudônimo de Elmano Sadino, influenciado pelo neoclassicismo; ou seja, ele utiliza-se de uma linguagem neoclássica – clara, abreviada, “correta” – na nova busca pela razão, racionalismo e objetividade, exaltando o bucolismo, o pastoralismo, a simplicidade e criticando a nobreza, o modo de viver citadino e os centros urbanos – afinal, o Arcadismo surge no mesmo século que o Iluminismo (XVIII).

Os pseudônimos de pastores são comuns nesse contexto árcade, retomando valores da antiguidade conjuntamente com a busca de viver com a amada em meio à natureza. Nessa perspectiva, há outros dois elementos que retomam a poesia clássica, com influência de Luís de Camões: na forma, o uso de um soneto; no conteúdo, a referência a elementos da mitologia (Zéfiros e Amores).

Ulteriormente, Bocage produz uma escrita de estilo pré-romântico. Contudo, este soneto é escrito no momento “árcade” do autor, como pode-se perceber partindo para a estrutura profunda do poema, na temática do soneto, ao depreender-se o assunto “convite feito pelo eu lírico à amada para aproveitar a natureza, desfrutando sua simplicidade e beleza com ele”, visto que já é primavera e o inverno (conotado de forma negativa) vai embora. Consegue-se observar, com relação ao tema, a vontade de desfrutar a natureza (locus amoenus), de passar o tempo de uma forma agradável em meio a essa (carpe diem) e também, nesse cenário acolhedor, bucólico e campestre, pode-se notar uma valorização do simples em detrimento da vida urbana (fugere urbem).

Nessa acepção, a natureza, apresentada como modelo de perfeição, é o argumento para que a amada aceite o convite do eu-lírico – abandonado à falsa grandeza da corte –, o qual utiliza-se também do aurea mediocritas ao apresentar um desapego a tudo que represente o “material”. Dessa forma, os cenários que se opõem são a cidade – simbolizada pela corte – e a natureza, a qual é admirada.

O percurso de sentido é dado de forma que o cenário bucólico, com a descrição da natureza – pelo eu-lírico dirigindo-se à Marília – como um lugar agradável (locus amoenus), é apresentado nas duas primeiras estrofes, ao enaltecer a Primavera que chega. O convite à amada, para fugir do local urbano (fugere urbem) e aproveitar a natureza (carpe diem), é feito nos dois tercetos; ademais, no último terceto, assinala-se o aurea mediocritas, ao abdicar a corte, cuja grandeza “inútil” pode ser cortada (inutilia truncat). Assim, a construção do cenário, do “lugar agradável”, serve de base para a apresentação da proposta de fugir da cidade, da inutilidade, e aproveitar o dia: preferindo a “condição mediana” a qual garante tranquilidade.

No que diz respeito à estrutura aparente do poema, vê-se que possui quatro estrofes, dois quartetos e dois tercetos, tratando-se de um soneto e dispondo-se de rimas regulares. Todos os seus versos possuem dez sílabas poéticas, ou seja, são decassílabos, no caso, heroicos, ao conter acentuação nas sextas e nas décimas sílabas poéticas. A métrica faz-se, assim, de rimas perfeitas, pois todos os versos têm o mesmo metro. Quanto à disposição das rimas nas duas primeiras estrofes, são interpoladas (A-B-B-A); nas duas últimas estrofes, são rimas C-D-C e D-C-D, subsequentemente. O soneto possui tanto rimas pobres (flores/vapores, grandeza/natureza...) – com predominância de substantivos – quanto ricas (agreste/veste, nordeste/celeste...) – empregando, além dos substantivos, um verbo (veste), adjetivos (agreste/celeste) e pronomes pessoais (comigo/contigo). Ainda, repara-se a prosopopeia, ao personificar o “Inverno”, a “Primavera” e a “Natureza”. Nota-se a perífrase da “Primavera”, ao caracterizá-la como “a mãe das flores”. Tem-se apóstrofe na frase: “Vem, ó Marília, vem lograr comigo”; e hipálage, na frase: “Já se afastou de nós o inverno agreste”.

Mesmo sendo o principal representante do Arcadismo, Bocage não se prende às características dessa escola literária. Sua educação, suas condições de vida, sua originalidade o fazem desvencilhar-se de regras postas, tornando-o um artista divergente, com várias “entidades”. É contagiado pelo embalo do Arcadismo de seu tempo, porém sua autenticidade o faz mostrar suas facetas no momento certo, indo da plenitude do Arcadismo à introversão do Romantismo e, dependendo de suas vontades, originando eu-líricos que se confundem entre os dois movimentos, mesmo sendo opostos.

Embora o soneto analisado seja de caráter diurno, otimista, suas obras tendem a figurar-se em noturnas, pessimistas. Enquanto esta revela o amor à sua musa, outras conotam dor e sofrimento provocados pela indiferença e ingratidão de futuras musas. Portanto, essa assimetria reflete uma personalidade complexa – a qual vai da razão à emoção – que o faz um poeta diferencial para a literatura portuguesa e o enobrece como principal poeta português, seguindo uma linha cronológica, logo após Luís Vaz de Camões.

Texto elaborado na disciplina de Literatura Portuguesa Do Trovadorismo Ao Realismo do curso de Licenciatura Em Letras Português-Inglês – UTFPR-PB.

Prof. Dr. Pedro Afonso Barth.