RENATO DE MATTOS MOTTA ~“Pretos de Peleia” - Homenagem aos Lanceiros Negros, massacrados na Guerra dos Farrapos
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Sobre:
PRETOS DE PELEIA
de
RENATO DE MATTOS MOTTA
“Pretos de Peleia” é um longo poema sobre aspectos particulares da História do Brasil no século XIX, mais especificamente, sobre eventos da “micro-história” da região de Rio Grande do Sul.
Recebi, directamente do Brasil, esta obra do meu Amigo transatlântico, o poeta e artista plástico, Renato de Mattos Motta.
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“Pretos de Peleia” é um longo poema, narrativo, sobre a trágica vida dos Escravos brasileiros.
Recorda, numa primeira parte, a vida, ou antes, a saga de um escravo de uma fazenda na região de Pelotas, cidade a sul do Estado de Rio Grande do Sul. Manoel Padeiro, de seu nome, fugiu e refugiou-se num Quilombo na Serra dos Tapes, onde os companheiros o elegeram como General – general das suas lutas! Pois dirigia as razias sobre as fazendas da região, para obtenção não só de mantimentos, como de mulheres, pois o Quilombo vivia em desproporção aflitiva, formado por uma população 80% masculina.
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Localização do estado de Rio Grande do Sul
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Grande_do_Sul
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Numa segunda parte, esta obra recorda a participação dos Escravos brasileiros na Revolução Farroupilha, e o massacre de que foram alvo.
Para nós, portugueses, percebermos bem do que se trata, importa recordar, mesmo que a traços largos, o que foi a Revolta dos Farrapos, uma revolta que se prolongou por dez terríveis anos (1835-1845), organizada pela elite gaúcha de Rio Grande do Sul.
Os charqueadores – produtores de charque (carne seca) – sentiam-se prejudicados porque os impostos sobre o charque por eles produzido eram superiores aos impostos aplicados sobre o mesmo produto de origem argentina ou uruguaia.
Os estancieiros – os produtores de gado da província de Rio Grande do Sul – exigiam do Governo central brasileiro uma taxação que lhes permitisse obter lucro com este produto, pois o charque era parte principal na alimentação dos Escravos no Sudeste e Nordeste brasileiro.
Para cúmulo do mal-estar, em 1834 tinha havido uma praga de carrapatos que dizimara o gado na região, e o Governo central recusava-se a pagar compensações. A isso juntava-se o descontentamento com a falta de autonomia da região, a par do alastramento dos ideais de autonomia e federalistas.
A revolta que começou por ter esse carácter de descontentamento por razões económicas foi adquirindo carácter separatista.
Não só os Escravos refugiados nos Quilombos, mas também outros Escravos se juntaram à Revolta pois foi-lhes prometida a libertação – promessa falsa com que os fazendeiros, em seu próprio proveito, aliciaram os Escravos à luta, embora não tivessem intenção de prescindirem do sistema esclavagista de produção.
Este é o enquadramento histórico deste poema de Renato de Mattos Motta.
PRETOS DE PELEIA
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Trata-se de um livro em formato A5, com capa de cartolina tipo craft, ilustrada com uma xilogravura do Poeta, também artista gráfico. O poema inclui dois cantos, ambos introduzidos por uma xilogravura do Poeta-Artista.
O livro termina com um apanhado biográfico sobre o Poeta, salientando a sua actividade de empenhado Animador Cultural, ilustrado por um retrato do autor, também em xilogravura.
Sobre a qualidade do poema, fala, nas badanas, um artigo de Sidnei Schneider, salientando a mestria do verso utilizado.
Há ainda um Prefácio da escritora Lilian Rocha.
Posto isto, pouco me fica que possa acrescentar...
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PRETOS DE PELEIA é um poema narrativo, em dois Cantos.
Lemos todo o Poema e salta aos olhos que estamos perante um poema épico. Mas um épico muito específico, pois escrito em verso popular, uma vez que o Poeta assume a voz dos seus protagonistas – gente desfavorecida, do mais desfavorecido da época, os Escravos.
As personagens, neste poema, são os Escravos que se revoltam contra o regime de escravidão, querendo assumir a sua dignidade de seres livres, e fogem das fazendas para os Quilombos; e todos aqueles que, acreditando em promessas de libertação se aliam à luta dos fazendeiros revoltosos, na Guerra dos Farrapos.
No entanto, Pretos de Peleia é mais do que isso. É a denúncia do massacre dos Quilombolas e Escravos que tinham participado na Guerra, um “crime de guerra”, como hoje diríamos, que ficou impune e de que não se fala.
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A obra começa por um Prólogo, à maneira da “abertura” ou peça musical com que se prepara o ânimo dos ouvintes antes do início de uma ópera. Assim, é-nos apresentado o ambiente em que vai desenrolar-se a clássica “narração” – um breve texto, em prosa, que nos situa no cenário sangrento da “charqueada”, a matança de centenas de rezes por dia.
Este Prólogo é uma introdução aos dois Cantos que compõem esta obra. Aqui se compara a sorte dos bois com a sorte da “escravaria – gente tratada como bicho cuja morte se arrastava pelos anos; gente que trabalhava desde o amanhecer até tarde da noite, onde a única diversão era a cachaça e o bater dos tambores; gente que agonizava uma vida de sal, de medo, de violência e de dor”... (pág 11)
Esta introdução, além da beleza estética da Prosa, situa o leitor mais desprevenido na realidade da paisagem rural e humana, trazendo-lhe aos sentidos a cor e o cheiro do sangue dos animais sacrificados, e a dor do sofrimento dos Escravos; e proporciona uma melhor compreensão dos dois Cantos que se vão seguir.
O Poema
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Conforme a norma clássica, este poema épico começa por uma “proposição”, ou seja, o pequeno poema, Paisagem, uma oitava composta por duas quadras que refaz e reforça a descrição proposta no Prólogo.
O CANTO PRIMEIRO
O canto primeiro, ou Canto 1, formado por nove poemas e um epílogo em Prosa, dá-nos a história do Quilombola Manuel Padeiro, o General, personalidade que existiu de facto, em período anterior ao início da Guerra dos Farrapos.
Ao longo do Poema, vamos ficar enfeitiçados pela magia da rima e da métrica do verso popular, que o Poeta muito bem cultiva desde o verso em redondilha maior, ou verso de sete sílabas, ao verso de redondilha menor, variando este entre os metros de quatro, ou cinco sílabas, e outras medidas.
No poema I surge a quadra que transcrevo aqui, e que vai servir de refrão a alguns dos poemas:
“meu sangue salgou o sal
minha carne, charque vivo
não sabe o que é o mal
quem nunca viveu escravo” (pág 17).
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No poema II, a queixa da personagem de Manuel Padeiro inclui esta denúncia que deveria fazer pensar a muita gente:
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“é o preto quem produz
o charque que o povo come
um povo que louva a cruz
e mata o preto de fome” (pág 19)
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No ambiente injusto da senzala, acontecem momentos de magia, quando o Amor toca o coração. Manuel Padeiro apaixona-se pela negra Marcelina. Mas a beleza da jovem e a sua sensualidade chamam as atenções do capataz. Manuel Padeiro vê-o abusar da sua amada. Propõem-se fugir os dois, apesar do alto risco que a fuga implica. Disto trata o poema III.
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Poema IV – O refúgio é o Quilombo, onde estão índios e negros foragidos, e onde a sobrevivência é demasiado dura. Mas Marcelina morre de parto e Manuel Padeiro torna-se guerrilheiro.
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O poema V é um lamento de Manuel Padeiro, que se encontra supliciado no pelourinho, mas é também um hino aos Índios... e novamente uma denúncia da crueldade dos “brancos”:
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“eles que foram os donos
da terra que a gente pisa
‘té que os brancos com seus tronos
traçaram novas divisas
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hoje pouco espaço sobra
para os povos dos índios
o branco faz sua obra
com sangue dos outros povos” (pág 29)
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No entanto, no poema VI há estas quadras de luz e esperança:
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“mas não é só sofrimento
no homem que é carne pura
pelos olhos se vê dentro
e há luz sob a pele escura!”
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“mas um dia a coisa muda
faca de boi vira arma
é o grito do povo mudo
berro que brota da alma” (pág 31/32)
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No poema VII surge nova personagem. É a escrava Rosa, que mata o capataz para evitar ser abusada:
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“pé que lhe bate na cara
faca que corta seu pé
Rosa é vento que roda
vento de luta ela é (pág. 34)
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Enquanto o Poema VIII é um canto de revolta, um respirar fundo a encher o peito de coragem e determinação, um chamar às armas, o poema IX identifica novas personagens no drama dos Quilombolas pela sobrevivência.
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O Canto 1 termina com um resumo do que foi a vida e a acção de Manuel Padeiro, o General. É o capítulo X:
A vida nos Quilombos tinha organização. O quilombo do General Manuel Padeiro teve um juíz de paz, João, um capitão, Alexandre Moçambique, dois “mestres de religião”, Pai Mateus e Pai Francisco. Desenvolviam acções que à falta de melhor designação, chamaríamos de razias, perpetradas contra as fazendas, para obterem alimentos, e mulheres, tão necessárias num mundo tão masculino.
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“o quilombo faz a lei
que me manda devolver
cada gota que sangrei
o branco há de sofrer” (pág39)
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Mas o Destino é adverso, e nem sempre os Deuses estão empenhados em fazer Justiça.
É disso que trata o poema X ...que não é poema. A desgraça não tem Poesia. Este capítulo X é, digamos, um esclarecimento sobre o Quilombo de Manoel Padeiro, e a “caça ao homem” que os fazendeiros de Pelotas desencadearam para o apanharem, servindo-se de escravos denunciantes... Mas Manoel Padeiro, o General, o caudilho, desapareceu. Nem mesmo com a cabeça a prémio, nunca foi encontrado. Entrou na Eternidade, entrou na Lenda...
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O CANTO SEGUNDO
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O Canto 2 é dedicado a Jorge Ogum.
Neste Canto 2, predominam as quadras, e a métrica é mais variada. Há poemas de quatro sílabas, assim como os há de cinco ou de sete, ou seis. Esta variedade métrica confere ao poema o dinamismo que sugere a refrega, a determinação, a vontade de vencer pela justa causa da Liberdade.
Enquanto o Canto 1 nos apresentou personagens reais, neste Canto 2, a personagem de João Ogum é fictícia, assim como o seu encontro com Manuel Padeiro. Pois a ficção permite a representação de um colectivo através de uma personagem singular. Jorge Ogum representa, simboliza o corpo dos Lanceiros Negros, formado pelos inúmeros Escravos que tombaram nesta Guerra e, no final, foram traídos:
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– se a pele é preta
A sorte é certa
Cá nesta terra
A vida é guerra (pág 65)
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Jorge Ogum é um escravo que foge para o quilombo. No caminho, encontra Manuel Padeiro que lhe indica o rumo para lá chegar. Luta ao lado dos outros quilombolas, na esperança da libertação.
Mas pelo “Tratado de Ponche Verde”, que marcou a paz entre as duas facções beligerantes, o general Canabarro, líder dos Farroupilhas, combina com os líderes adversários, os Imperiais, mandar desarmar os soldados negros, os lanceiros negros. Durante a noite, estes são chacinados.
Mas João, ou seja, todos os Escravos que combateram pela libertação, pelo ideal sagrado da Liberdade, pela sua fé em Ogum, viram santos, integram-se na Divindade, a grandeza do Cosmos, o lar acolhedor dos mártires injustiçados.
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Para finalizar
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Para finalizar, diremos que em PRETOS DE PELEIA ecoa, por vezes, a voz de João Cabral de Melo Neto, pela métrica e pelas rimas, em “Morte e Vida Severina”.
Mas não só – Quando Renato de Mattos Motta, na página 19, enuncia...
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“é o preto quem produz
o charque que o povo come
um povo que louva a cruz
e mata o preto de fome” (pág 19)
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...reporto-me a uma passagem de Machado de Assis, quando, no início de “Dom Casmurro”, ao apresentar D. Glória, ele nos faz encarar a realidade de uma senhora muito religiosa mas que não se perturba com a crueldade que é vender escravos ou alugá-los, pondo-os “a ganho”.
Se juntarmos a todos os aspectos formais, toda a apresentação gráfica, com o seu tipo de encadernação, o tipo de papel escolhido, mais as xilogravuras, esta obra reporta-nos à Literatura de Cordel, que existiu não só em Portugal mas também no Brasil, e a folhetos que ainda há relativamente poucos anos, circulavam sobre Lampião – ficando assim mais próxima dos heróis que celebra. Pois este belo poema rende justiça aos heróis populares, os Escravos, e também os Índios. E é uma reparação que – até ao Presente – ainda não foi suficientemente clara...
Além disso, temos a repetição, ao longo do poema, da quadra ...
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“meu sangue salgou o sal
minha carne, charque vivo
não sabe o que é o mal
quem nunca viveu escravo” (pág 17).
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Uma quadra notável, pois em poucas palavras atinge o alcance máximo do poema (o clímax): ... pela hipérbole – 'meu sangue salgou o sal' – se exprime o peso do sofrimento (o sangue) da vida dos Escravos, que é tal que o próprio efeito do sal produz menos dor; ... e onde a metáfora pungente – 'minha carne, charque vivo' – nos diz que as suas vidas são mais martirizadas que a carne com que se fabrica o charque...
José Ramos Tinhorão já afirmou que os Escravos foram “uma presença silenciosa”. Mas por vezes, surgem Poetas que sabem como dar-lhes voz.
Como apreciadora portuguesa, não posso deixar de pensar que a dedicação de Almeida Garrett à causa da Poesia Popular, que também partilho, ainda se mantém viva e actual!
Este poema de Renato de Mattos Motta não nos engana na sua brevidade. É um belo poema, importante pelo tema e notável não só pela intenção como também pela forma, que não só enriquece como nobilita a Literatura Brasileira contemporânea.
Finalmente, hesitei em terminar com uma nota muito pessoal, mas que não posso de modo algum omitir:
Um texto, um trabalho como este, não é feito apenas com a inteligência, o conhecimento histórico, e a técnica literária e artística; um trabalho como este é dinamizado por um grande coração!
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RENATO DE MATTOS MOTTA escreveu Pau de Poemas (2013); Os Cantos da Carochinha – cantando contos encantados; Virtude Virtual (ilustrado por Will Cava); Versa; AmarTeAtéAmorTe; Poemas da vergonha.
Balada de Marielle/Lançeiros Negros, o segundo massacre; e Pretos de Peleia, são de 2020.
É dinâmico Animador Cultural.
https://eternizarte.org/@renatomattosmotta/followed
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Foto:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_grade_sul/renato_de_mattos_motta.html
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20 de Outubro de 2020
© Myriam Jubilot de Carvalho
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Meu blogue:
http://www.myriamdecarvalho.com/
ou
http://myriamdecarvalho.com/blog/
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No meu blogue, já tinha publicado uma nota sobre Renato de Mattos Motta, em 2016:
http://myriamdecarvalho.com/blog/category/antologia/page/3/
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em Novembro de 2021:
ESTA OBRA FOI PREMIADA
conforme se pode ver:
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PRÊMIO AGES LIVRO DO ANO 2021 . Livro do Ano 2021.
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A Associação Gaúcha de Escritores vem anunciar os vencedores da 19ª edição do Prêmio AGES – Livro do Ano. - 2021
Nesta edição, recebemos 159 inscrições e os concorrentes estão divididos em nove categorias.
Os escritores associados à entidade escolheram em votação, encerrada no dia 14 de novembro (2021), as obras vencedoras nas nove categorias concorrentes ao Prêmio AGES.
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Em decorrência da pandemia, a leitura das obras para seleção dos Finalistas, foi realizada através de uma sala virtual, onde todos os livros inscritos estavam disponíveis, em PDF, exclusivamente aos jurados. Após a escolha das obras Finalistas, os associados, então, receberam instruções para cadastramento no Portal, tendo assim, acesso aos livros Finalistas, para leitura e posterior votação.
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O livro mais votado recebe o Prêmio Ages Livro do Ano 2021.
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Confira abaixo a lista oficial com as obras vencedoras.
Categoria Poesia
Pretos de Peleia – Renato de Mattos Motta
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Pela minha parte, os meu efusivos PARABÉNS ao vencedor
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Myriam, 18 de Novembro de 2021