Mal secreto Raimundo Correia
Se a cólera que espuma, a dor que mora
Na alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
“Mal secreto” é uma releitura que o poeta Raimundo Correia (1859 1911), fez do poeta italiano do Pietro Metastásio que viveu durante o século XVIII, no auge da Revolução Industrial. Raimundo Correia recriou o poema na vigência do Parnasianismo, movimento literário, cuja proposta foi o resgate dos moldes da Antiguidade Clássica na produção de uma poesia que cultuou os aspectos formais do poema, cujas emoções foram preteridas em favor da beleza, da formalidade, da estética, da razão. O lema do estilo sublinhava a noção de que a arte deveria ser um fim em si mesma, e não estar a serviço da moral, da religião ou de qualquer outro valor externo, foi tão somente “a arte pela arte”. O Parnasianismo foi a vitrine do próprio ego, um pedestal de onde se ignoraram todos os problemas sociais/ humanos/internos.
“Mal secreto” aparenta se afastar da característica da banalidade temática, típica do movimento parnasiano, no qual a obra está inserida. Nela o eu-lírico argumenta a necessidade do ser humano de se utilizar das máscaras para ocultar os verdadeiros sentimentos, que num outro contexto, seriam expressos explicitamente pelo sujeito: como foi no Romantismo, por exemplo.
Essa dissimulação denunciada no poema faz com que o leitor atento vá atrás da personagem principal desse “Mal secreto” escondida nesse discurso, que embora poético, é denunciada pelo eu-lírico como dissimulada, falsa, dúbia e tem como endereço os versos construídos na forma clássica do imperial soneto: dois quartetos e dois tercetos. E não se iluda, leitor, essa personagem é atemporal, e já nos acena a partir do titulo do poema e se arrasta por toda a obra: “Mal secreto” , mal com “L”, que significa de maneira imperfeita, incompleta, ruim; diversamente do que convém ou do que se deseja: o contrário de bem.
“Um parnasiano só usaria desse recurso da maneira com que fez o uso: secreto, escondido, uma personagem figurativizada”, não aparente; colocada simplesmente de maneira representada. Atente-se, leitor, no Parnasianismo onde se valoriza tanto a estética, sentimentos empáticos não são regras.
O primeiro verso do poema inicia-se por uma condicional “se” na primeira palavra, e isso já demonstra que: pode ser, talvez, quem sabe: dor , cólera, e, na alma? Aí entra em cena essa que transita de maneira despercebida por todo o poema, mas no sexto verso ela se deixa ser reconhecida: a máscara “ Ver através da máscara da face”.
E não se engane, leitor, do mal você só conhecerá o que “Ela” permitir: “ se pudesse ver através da mascara”, você , leitor, iria ver a “dor”, as” desilusões”, “tudo que devora o coração”, mas ela está lá, não só no sexto verso onde fez sua provocativa aparição; das quatro estrofes , ela aparece em todas, ora produzida, ora reinventada: é a máscara de máscara por meio de um advérbio de dúvida ou de uma condicional hesitação: Se, talvez, que parece, aparentemente, supostamente, provavelmente, acaso... “Talvez você visse gente que ri quando chora“, ( se pudesse ver) “Talvez você visse um recôndito inimigo sendo protegido”, (se pudesse ver) “Talvez você visse a invisível chaga cancerosa” (se pudesse ver). Como uma ladainha ela atravessa o tempo e perpetua seu poder.
E aqui, se me permite, quero traçar um paralelo com os complexos dias atuais: “Mal secreto” seria por um acaso uma personagem desconectada da segunda década desse nosso século? Você, leitor, nunca a reconheceu nas nossas redes sociais? Nunca percebeu sua interferência nas nossas relações familiares? Nunca a identificou junto dos nossos representantes congressuais? Nunca sentiu sua presença na nossa condição de cidadão brasileiro onde somos cotidianamente desrespeitados e tratados de maneiras tão desiguais?
Atente-se, leitor, para não restar dúvidas quanto a importância das aparências denunciadas; a realidade precisa, à qualquer custo, ser mascarada: o último verso do soneto é conhecido como “chave de ouro” uma vez que deve conter em si a essência da ideia do poema. Não a perca de vista e acompanhe sua atuação em cena:
“Cuja ventura única consiste”
“Em parecer aos outros venturosa”