PESSOA E OS OUTROS EUS: PRIVADO DE UNIDADE (II)
PESSOA E OS OUTROS EUS: PRIVADO DE UNIDADE (II)
VÓS QUE ENTRAIS na dimensão universal dessa existência nesse mundo, deixai toda a esperança. Penitentes da existência inexistente, desistam de descartar a dor de existir ou de delegá-la a outrem, porque não há outro que possa ou tenha a força de se desembaraçar dela, da teia de aranha tecida pelo poder Et inominável que açambarca a todos os que embarcam na nau de Creonte rumo aos infernos astrais dos que viveram, vivem ou viverão na “Terra do Desassossego”.
PEREGRINOS DA inexistência, de todas as sensíveis insensibilidades do masoquismo sádico comum a todos que se torturam na máxima mágica de compartilhar o próprio mundo e o mundo diversificado dos outros. Dos outros desassossegos. Ser ou não-ser a si mesmo e ao Outro em si mesmo. O desassossego cega a busca de uma saída para a ferida insuportável de viver. Viver do estresse, da ansiedade na tempestade do formigueiro das inquietações de ser, de ter.
FERNANDO PESSOA não tinha como suportar sua própria realidade. Ou irrealidade. Buscava nos heterônimos encontrar um único que pudesse libertá-lo da sensação extraordinária mente nítida de sua visão interior. Via nela, visão interior, as forças da hereditariedade. Forças obscuras que faziam dele uma criatura dedicada a devaneios que se sucediam no mar revolto da mente, no qual não há cais de desembarque. Navegar é preciso, viver não é preciso, desde que não há porto de chegada. Não há desembarque possível nas ondas do mar do desassossego.
ONDE ESTARÃO as pontes, onde o píer senão para crepúsculos maiores??? Onde estarão os castelos que não são de areia??? Onde se encontrará o lugar no qual o hálito e a névoa das trevas não poderão alcançar. Como criar um heterônimo mágico que indique em qual ponto cardeal possa ser buscada a ânfora que não seja inútil??? Pessoa afirmava seu vazio com grande convicção: “dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo”.
O QUE IMPEDIA Pessoa de fitar a real idade dele mesmo, dos outros heterônimos de frente??? A realidade dele, ele mesmo, dos demais sinônimos espelhados em sua mente??? Estavam todos sempre a implorar compaixão??? De que modo poderia abrir as algemas que prendiam seus pulsos às trepadeiras invisíveis enroscadas desesperadamente em seus cacarecos???
A SENSAÇÃO DE inquietação era a única realidade que lhe restava, segundo ele mesmo: “pudesse a minha vida ser vivida em panos de arras do espírito e eu não teria abismo a lamentar”. A única ciência que o satisfazia eram as sensações. “A consciência inconsciente da juventude... A consciência de ter compreendido os deuses”.
“CADA COISA sugere-me não a realidade de que é sombra, mas a realidade de que é o caminho”. O Jardim da Estrela da Manhã era para ele um parque antigo de descontentamento da alma. “O outro é sempre o obstáculo para quem busca seja o que for... Não pensar é a parte melhor de ser rico...Quem sonha demais precisa imprimir realidade aos sonhos...É preciso sentir a vida irreal...Aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos”.
“TANTO O ÓDIO como o amor nos oprime, ambos nos buscam e procuram não nos deixar a sós...Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda gente...A vida se nos atira como uma pedra...As coisas do sonho têm uma só face, como as nossas almas...Não há nobreza aos bocados. Meus tédios são padre nossos e as minhas angústias ave-marias”.
FERNANDO PESSOA, ele mesmo dizia que a vida é um novelo que alguém emaranhou. Essa simples afirmação como que se agarra às retinas cansadas e curiosas da interpretação alheia. Dizia também que nunca conseguira ver-se de fora, alegava não haver espelho que o desenraizasse de si mesmo. Talvez possamos concluir que seus heterônimos eram apenas tentativas de afirmação dos vários outros que estavam dentro dele mesmo e não eram senão a consciência imaginária, privativa, de sua singularidade: desejo de ser Outro na rua deserta que não havia atravessado.