Sobre "Crime e Castigo", de Dostoiévski
Muito já se escreveu sobre a vida e a obra do escritor russo e, numa busca rápida pela internet, encontra-se uma quantidade abundante de resenhas dos seus romances. Este em especial, o do título desta resenha, é um dos principais objetos de interesse das análises de livros em blogs, sites e espaços de discussão sobre literatura nas redes sociais. Para dar a minha pobre contribuição, pobre, porque fui um leitor inconstante, tendo que dividir a atenção com leituras paralelas e, pior, nem sempre lendo no papel, mas na tela do computador ou do celular, decidi registrar essas reflexões. Eu não conhecia Dostoiévski antes de ler, aos 26 anos, seu romance, "Crime e Castigo". Antes, claro, ouvira falar de sua importância para a literatura; de seu pioneirismo em registrar, em palavras, as angústias da condição humana. Mas, só agora, depois de finalmente ler parte desse trabalho, descobri, ou pelo menos tive um vislumbre, da sua real importância.
No fundo, o homem é sempre o mesmo. Isso significa dizer que ele experimenta o sofrimento sempre da mesma forma: a tristeza, a solidão, o medo, a inveja, a angústia... Esses padecimentos da alma não evoluíram através de causas naturais, de causas biológicas como as espécies de Darwin; não surgiram através de meros processos físico-químicos entre os neurônios do cérebro. Não. O homem é sempre o mesmo. A coragem e a rebeldia de Ninrode (antigo herói da época pós-diluviana) não foram diferentes das de Napoleão; a contrição do rei David perante a Arca da Aliança não fora diferente da de Dom Afonso Henriques perante o vocativo da missão evangélica da nação que nascia sob o seu comando; as dores da vida e da morte do próprio Verbo Encarnado podem ser assimiladas por qualquer indivíduo em qualquer época. E aqui está o fascínio da literatura, porque ela é a representação da própria realidade: a possibilidade de exprimir os sentimentos do homem em todas as épocas e em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis. Isso só poderia acontecer se o homem não mudasse; se, no seu íntimo compreendesse integralmente o que é sofrer.
Como eu disse no início, há incontáveis análises de "Crime e Castigo" pela internet afora. Cada uma apresenta um ou vários ângulos de perspectiva sobre a narrativa; cada resenha, por mais simplória, traz em si uma interpretação mais ou menos abrangente da obra. Limitei o meu esforço para o tema que, no progresso da leitura, melhor prendeu a minha atenção, impressionando-me profundamente: o sofrimento. Em "Crime e Castigo" todos sofrem. E sofre também o leitor. Não pude evitar: quando cheguei à cena do crime, tentei resistir, desviei os olhos da página por alguns momentos, franzi os sobrolhos, pressionei as mãos contra os olhos mas, tomando coragem, tornei à leitura. É assim que se deve ler os romances, sobretudo as grandes obras. Não com uma afetação meramente estética das emoções, mas a partir de um entendimento mais profundo do ato de ler: suspension of disbelief, suspensão da dúvida. Essa voluntária e momentânea suspensão da descrença é a forma eficiente de viver o romance, de experienciá-lo.
Rodion Românovitch Raskólnikov, o protagonista, é um estudante miserável. Decide abandonar os estudos, porque não mais pode se manter com o mirrado dinheiro que sua mãe, Pulkéria Alieksandrovna e sua irmã, Dúnia, com esforço heróico, enviam-lhe. Tudo o que lhe é possível, com os recursos de que dispõe, é honrar por tempo indeterminado as despesas da espelunca onde vive, em algum lugar insalubre de São Petersburgo. Esta é a situação inicial a partir da qual os dilemas morais serão apresentados ao jovem estudante pobre e desesperado. Dostoiévski expõe o aflito Ródia (diminutivo do seu primeiro nome) ao mais temível e perturbador dilema da sua vida: se Deus não existe, então tudo é permitido. Esse é o pano de fundo de toda a narrativa. Cada borborigmo de estômago, cada dor de cabeça, cada vertigem que o leva ao chão, cada dor lancinante que o deixa prostrado no esfarrapado sofá do cubículo imundo onde vive faz reverberar a questão dentro de si. Até que ele toma o caminho que o conduzirá ao castigo; até que ele se decide, portanto, pela experiência da negação. Ródia, diz "não" a Deus.
A história, publicada há 154 anos, é de todos conhecida. E mais, é também reconhecida. Nela está presente o drama da redenção. É, portanto, uma obra maior, do tipo que cativa os leitores para sempre. Há mais dois elementos do romance que atraíram a minha atenção: a personagem de Sônia Marmieládovna, a prostituta debutante e a família que, através da sua atividade indigna, ajuda a sustentar. E aqui há outro dos dilemas de Dostoiévski. Sônia é a personificação do amor. Não no sentido sexual, vulgar que seria próprio da sua atividade, mas no sentido do amor sacrificial; Sônia ama a família e acha que por ela todos os sacrifícios valem a pena. O pai é um bêbado contumaz, a mãe é tísica, a tuberculose a faz tingir de vermelho o lenço sempre que espirra, os irmãos, todos, famintos e participantes desta vida moribunda. Sônia não vê outra alternativa, os seus morrem de fome.
Toda aquela vergonha só a tocava de forma maquinal, pois a perversão não penetrara até sua alma. Raskólnikov via isso muito claramente. A moça conduziu o criminoso à redenção, ela o libertou. Há uma cena marcante, na qual Dostoiévski descreve ambos, o assassino, Raskólnikov e a prostituta, Sônia, sentados à roda d'uma mesinha no cubículo imundo desta. Eles leem o Evangelho segundo São João, a passagem na qual é relatada a ressurreição de Lázaro. Apesar de Ródia, no trecho, ainda expressar certa resistência, ambos comungam no cálice da esperança. Sentem que suas vidas têm um propósito maior, ainda que incomunicável, que têm beleza, ainda que violentada. Sônia cativou o coração de Raskólnikov e ele a amou.
"O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo". Fiódor Dostoiévski.