O universo de dom Quixote
Esta é uma obra que pode e deve ser analisada sobre diversos pontos de vista. Pode-se levar em consideração, por exemplo, a construção dos personagens, que alcançou um novo patamar; o estilo de escrita fluido e desembaraçado; a presença incontestável do contexto histórico e da vida de Cervantes no texto; o enredo de longo fôlego; a metalinguagem de um texto que por vezes se autorreferencia e se investiga; entre vários outros aspectos a se explorar.
Porém, como um aspirante a escritor, o que mais chamou minha atenção e sobre o que vou falar aqui é o mundo de possibilidades que Cervantes soube estabelecer para que pudesse desenvolver o livro.
Logo após as primeiras páginas a base do romance está construída, e a partir dali o autor tem todas as ferramentas para deixar a imaginação correr. Resumidamente, ele tem o Sancho para desfilar os ditados populares, fazer graças, demonstrar a esperteza e a sabedoria do pessoal do campo e sem instrução formal, a ingenuidade e simplicidade desse povo, a ambição etc. E ele tem também o central Dom Quixote, figura que tinha liberdade de ser engraçada e ridícula, sábia e louca, valente e fraca, motivo de chacota e de admiração. Isso por si só já seria bastante para várias páginas de uma boa história, no entanto, o que mais potencializa a aventura desse romance, é a condição de meia loucura em que dom Quixote se encontra.
Na minha opinião, é isso o que faz o livro ser tão surpreendente a cada página. Pois é um livro onde o banal não existe, já que o banal não é tratado assim por dom Quixote. Uma bacia de barbeiro pode ser um famoso elmo; dois rebanhos de cabras podem ser exércitos rivais; uma estalagem rudimentar pode ser um castelo etc. A cada passo, tudo pode acontecer, de gigantes a magos, de encantamentos a manteamentos, dessa forma, mais de mil páginas parecem pouco para as inúmeras possibilidades deste universo criado por Cervantes. E tudo isso espaçado por ótimos diálogos entre Sancho e seu amo, o que, como já disse, já seriam suficientes para criar uma boa história.
Talvez seja por isso — pelas aventuras possíveis e pelos dois bons personagens— que tantos escritores, já na época de Cervantes, se sentem fortemente atraídos
a darem continuidade eles mesmos às aventuras do cavaleiro andante. É como se o livro não devesse ter um fim, pois, já que tudo era possível na mente do Quixote, todas as possibilidades deveriam ser escritas.
Essa construção do universo de dom Quixote é um dos maiores méritos do autor ao meu ver, principalmente se olhando como escritor. E o mais impressionante, é que ele mesmo nos dá indícios no próprio livro de que esse foi um esforço consciente.
No final da primeira parte, um personagem (Cônego) inicia uma discussão com o padre a respeito dos livros da época. Nesse diálogo, ele deixa transparecer que há certo preconceito com as histórias contadas em prosa, e que livros desse tipo, como os livros das histórias de cavalaria, são fantasiosos, disparatados e de puro entretenimento. No entanto, o mesmo personagem afirma que isso poderia ser bem diferente, pois estes livros são “um vasto campo por onde podia se correr a pena sem restrições”, utilizando a imaginação à vontade e trazendo para o livro elementos da riqueza da realidade que nos circunda. O defeito desses livros estavam, portanto, no estilo, na verossimilhança e na pouca inteligência com que eram estruturados e escritos, o que não os fazia deixarem de serem famosos e lidos, já que o objetivo principal era divertir. Por fim, o personagem, que parece servir para exteriorizar muito do pensamento de Cervantes sobre a escrita, diz que estes livros de prosa fantástica, se forem bem trabalhados, podem “mostrar tal perfeição e formosura que alcançará o grande fim que se pretende na literatura, que é ensinar e divertir ao mesmo tempo”.
E isto foi dito em um tempo onde não havia o termo Romance como conhecemos hoje, pois, para muitos especialistas, é o próprio livro do Cervantes que inaugura e serve de base para este tipo de literatura. E este diálogo do Cônego com padre serve como uma espécie de ensaio e manifesto, elucidando o que está sendo feito neste livro e como deveria se dar a literatura em prosa, pois, como também é dito pelo personagem “a épica pode muito bem ser escrita tanto em prosa como em verso.” Assim, essa lição serve até hoje para os aspirantes a escritores: usemos a imaginação, mas não relaxemos na seriedade com que tratamos o texto, tal qual acontecia até então nas prosas daquela época, especialmente nas histórias de cavalaria.
Enfim, Cervantes faz uma dura crítica a esse tipo de livro, porém, reconhece que ele possui pontos positivos. Então, utilizando a criatividade inerente a eles, ele a trabalha de forma diferente, brincando com os limites do real e do fantástico, do verossímil e do insólito, do entretenimento e da aprendizagem.
Talvez por conta de tanto trabalho que deu a Cervantes e por trabalhar com seriedade a ficção do seu livro, ele tenha reagido tão fortemente contra o livro que se aproveitou dos personagens e do universo que ele criou para escrever a continuação das aventuras de dom Quixote. Assim, ao escrever a segunda parte de seu livro, ele faz questão de deixar claro a morte de dom Quixote no final, para que nenhuma pessoa possa dar continuidade às suas aventuras, o que de certa forma é uma pena, pois haveria assunto até hoje para as boas e más andanças do cavaleiro da triste figura(ou dos leões) e seu fiel escudeiro Sancho Pança neste universo de possibilidades infinitas.