CARLOS CUNHA, O POETA NA ALGAZARRA DO SILÊNCIO
 
“Nunca pretendi ser e desejei ser o maior poeta do meu Estado. Eu que talvez não seja o maior poeta de minha cidade, do meu bairro, da minha rua e de minha casa. Só sei que a minha poesia sobe e desce as ladeiras de São Luís nos braços do povo. Isto me dá a convicção de que sou poeta.” Carlos Cunha
 
O maranhense Carlos Cunha foi um dos homens mais polêmicos que já conheci. Em contrapartida, foi um dos beletristas maranhenses do Século XX que bem representou sua terra nas mais variadas formas de usar a pena: foi poeta, ensaísta, crítico literário, jornalista, orador, conferencista, antólogo, historiador, além de educador.

Considerado um jornalista irreverente, ele usava a crônica diária para combater o sistema, os malversadores do dinheiro público e os péssimos governantes, ao mesmo tempo em que defendia os direitos da sociedade, bem como, por meio de suplementos literários e prefácios, divulgava e incentivava jovens escritores e demais artistas que estavam entregues ao anonimato.

Por meio dos seus conhecimentos de história, deu à respectiva disciplina uma visão crítica e moderna, no início da década de setenta, algo inusitado na época. Também contribuiu para o soerguimento da Educação Maranhense, ensinando em escolas públicas e, por intermédio do Colégio “Nina Rodrigues”, que fundara no fim da década de cinquenta, permitiu que várias gerações, principalmente as menos privilegiadas economicamente, tivessem acesso aos bancos escolares, distribuindo bolsas de estudos parcial e integral aos necessitados.

Divulgava os poetas brasileiros e estrangeiros, por meio de sua arte de declamar e frequentava eventos culturais, nos quais discursava ou fazia conferências e palestras sobre literatura, história e educação. Um predecessor da nova geração, fundou o Instituto “Lourenço de Moraes”, o “Jornal Posição”, a Academia Maranhense de Trovas e vitalizou a Associação Maranhense dos Novos, divulgando os seus contemporâneos em suas Edições Mirante, que serviram de subsídios para a sua antologia, Poesia Maranhense Hoje ou Cinquenta anos de Poesia, comparável a Novos Atenienses, de Antônio Lobo e, recentemente, à antologia A Poesia Maranhense no Século XX, de Assis Brasil.

A dupla face do jornalista/escritor rendeu-lhe dois cognomes adversos: boca do inferno, numa analogia a Gregório de Matos, pelas críticas que fazia aos indesejáveis por meio do jornalismo; e o caçador da estrela verde, em ressonância ao seu livro de memórias, assim intitulado. De um lado, inspirou inimizades; de outro, angariou amigos e admiradores. Depois da morte de Carlos Cunha, houve um silêncio nas redações dos jornais, nos ambientes culturais, nas escolas, nas ruas, nos bares, nas tertúlias. Sua algazarra... Silenciaram-na. Sua memória... Deixaram-na sob a escuridão da indiferença. Ele morreu. Morreu o audacioso entusiasta da cultura, que brigava com a metade do mundo e que abraçava a outra metade. Mas só aqueles, de longo olhar sobre a paisagem humana, poderiam avistar, nos trabalhos literário e jornalístico de Carlos Cunha, o altruísta, aquele que se debruçou sobre as obras de gregos e troianos para estudá-las e divulgá-las, além de promover sua terra e sua gente, a cultura e a história de seu povo. Entrementes, ninguém quis ser um Carlos Cunha para Carlos Cunha. Até o poeta, que lhe rendera a entrada na Academia Maranhense de Letras, no assento da cadeira 33, com o livro POESIA DE ONTEM, nunca foi citado, nunca foi lembrado. E é sobre esse poeta que hoje me debruço, sem a mínima pretensão de encerrar um estudo sobre sua poesia ou, mesmo, sobre sua obra de escritor, jornalista, educador, historiador que ele o foi, obra vasta que serve de fonte de pesquisa para outros estudiosos de seu quilate.

As exéquias de sua alma humana, ele as deixou nos mais belos sonetos da Literatura Maranhense, a exemplo “Soneto da Minha Angústia”, “Soneto para Jacimira”, “Soneto para Catedral”. Todos tematizam o amor pela família, este último soneto chora a morte da filha, em decassílabos assim distribuídos:
 
Eu vi Tereza no teu altar rezando/Preces de amor na festa do noivado./Era um anjo, sereno, imaculado;/Ou, uma rosa em paixão se confessando///Depois, eu vi Tereza iluminando/ Teu simbolismo em ouro cravejado,/ Eu vi Cristo sorrir crucificado/ Vendo no altar Tereza se Casando.///Hoje, porém, a rosa já não brilha; Já não sinto e ouço a voz da minha filha Que tão cedo partiu para a eternidade/E o Cristo que sorriu para Tereza/No mesmo altar soluça de tristeza/Procurando conter minha saudade.///
 
Carlos Cunha rejuvenesce o poema de forma fixa de Petrarca, traçando o perfil afetivo e imagístico da catedral. No soneto acima transcrito, o poeta produz duas aparições de Tereza. E em ambas as circunstâncias, a Igreja da Sé é o ambiente circunfuso, comportando Tereza e a espiritualidade do poeta. A palavra catedral traduz a religiosidade arrolada em todo o poema, traçando o caminho daquela que recebera o seu catecismo e os mesmos atos cristãos do poeta e através do poeta.

O que estabelece a prevalência da igreja sobre Tereza é o sentimento de fé. Ademais, tudo ocorreu dentro da Sé, dentro do aspecto religioso; Tereza estava dentro da Catedral; e, depois que Tereza saiu de lá, ainda assim, era como se, configurando a religiosidade, a igreja continuasse a existir num plano superior, tornando efusiva a transcendência. Logo, vida e morte explicadas. Tereza já não estava naquele templo, enquanto ser vivente, mas só ela, a igreja, arquitetando eternidade, era capaz de deixar Tereza ressuscitada aos quatro cantos do seu simbolismo em ouro cravejado. Catedral é, pois, símbolo da personificação. Mas o sublime é a figura de Cristo chorando, trazendo Tereza de volta, no antropomorfismo de sentir tristeza, para conter a saudade do eu poético.

Carlos Cunha também sempre insistiu na temática da infância carente, como em Bilhete a Papai Noel (CUNHA, 1989, p. 24):
 
Papai Noel, que vergonha! Eu/confesso de você/Sonhei muito, mas quem sonha/não vive bem, já se vê./Ainda tenho os sapatinhos/que guardava pra você/Andei por muitos caminhos/não o vi, não sei por que...///Ainda guardo os sapatinhos/empoeirados, tristonhos,/mas dentro deles sozinhos/os fantasmas dos meus sonhos!/ Papai Noel, que vergonha,/se você me visse agora:/alma cansada, tristonha, cheia/do nada de outrora/Quantos sonhos disfarçados/em seu saquinho, Noel,/castelos alicerçados/em colunas de papel./ Papai Noel, por favor,/não minta para as crianças/traga mensagens de amor/e um Natal só de esperanças!/

No poema, há uma carga humanística incontestável daquele que prima pela igualdade social. Papai Noel é uma figura de sua infância que trouxe para o presente, como símbolo de mentira e que deve ser desmistificada, em prol das gerações futuras.

Fantasmas, castelos, colunas de papel, tudo são metáforas, com as quais o poeta bordou o texto poético, para não o deixar cru, insípido. As frases exclamativas têm sabor de decepção; as imperativas, de reivindicação, de reparo, de retificação. O advérbio "ainda" não só dá ideia de reincidência, mas, também, de esperança, credulidade, paciência.

Dentro do ponto de vista métrico, ele usa os heptassílabos, que foram preeminentes em sua vida de trovador. Na verdade, são seis trovas, trabalhadas em rimas alternadas que, quanto à sonoridade, são perfeitas e quanto à categoria gramatical, algumas são ricas como você/vê, vergonha/sonha, você/por quê, sapatinhos/sozinhos, tristonhos/sonhos; e outras são pobres, como Noel/Papel, disfarçados/alicerçados, crianças/esperanças.

Carlos também trabalhou poemas em prosa, livres e descompromissados com a métrica, conforme sugeriam os modernos, alunos de Marinetti. Fê-lo, conquanto, sem se descuidar da carga emotiva que um texto poético propicia, dando-lhe uma abordagem sociológica, próxima do homem comum, com quem sempre conviveu e com quem jamais deixou de ter as suas amarras. É o que se observa em Canção de Natal para o Menino Pobre (CUNHA, 1967, página irregular):
Menino pobre, menino do meu subúrbio/Papai Noel não te quer./Uma infância desenflorada/Balança tua espádua nua, dilacerando o silêncio./Pra que brinquedo, menino, pra que brinquedo, pra quê?/Se já nasceste um brinquedo:/franzino, magro, esquelético, um brinquedo do destino/Esquece Papai Noel, menino pobre, menino do meu subúrbio./ O carro desse velhinho passou distante de ti./Papai-Noel nunca viu/O teto todo furado do teu casebre de tábua/Teu riso transfigurado, teu braço magro, comprido/Teu ventre pasto de verme./Porque se visse, menino,/Menino do meu subúrbio,/Não te daria um brinquedo./Mas um pãozinho de trigo/E um minuto de sossego.


Segundo o professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva (Teoria da Literatura, 1976, p.562), o formalista russo Ejchenbaum assinalou que, na linguagem poética, a palavra se situa numa nova atmosfera semântica, pois que deixa de ser compreendida em relação com a língua geral para ser entendida em relação com a língua poética. No poema Canção de Natal Para o Menino Pobre, acima transcrito, essa contiguidade semântica pode ser estabelecida a partir das expressões pãozinho de trigo e um minuto de sossego. Dentro de uma visão morfológica, pãozinho e minuto estão classificados como substantivos, mas, por uma questão de literariedade, transformam-se em antítese, posto que pãozinho de trigo denota um alimento que serve à necessidade fisiológica do menino, enquanto um minuto de sossego conota uma refeição à sua necessidade espiritual.

Ainda dentro desta visão, vê-se o encadeamento do adjetivo pobre e da locução adjetiva do meu subúrbio; a primeira no plano social; a segunda, no físico. Mas, ligadas pela essência da linguagem poética, há a prevalência, no plano semântico, do aspecto social, porque o pronome meu, servindo de ligação entre os dois termos, estabelece a inter-relação entre o locutor e o interlocutor menino. Se o menino era do subúrbio e era pobre e o eu poético era do subúrbio, logo o eu poético também era pobre.

Sobre o poema acima transcrito, fala Fernando Barbosa de Carvalho (1967, Jornal Pequeno):
...Basta, por certo, invocar-se o seu comovente poema, denominado "Canção de Natal Para o Menino pobre", em o qual, dominando a verdade, o poeta expõe os seus nobres sentimentos fraternais, os seus nobres sentimentos de solidariedade humana. Continue o poeta a honrar as famosas tradições de decantada Atenas Brasileira, em lhe enriquecendo o formoso patrimônio de cultura.


Canção de Natal Para o Menino Pobre é um poema de fronteiras, que vai além da fraternidade visível. Como o ainda incompreendido Augusto dos Anjos, Carlos Cunha trabalha palavras fortes, da estirpe de verme, esquelético, transfigurado, ventre... Essa similaridade vocabular entre Augusto dos Anjos e Carlos Cunha pode desembocar na questão da descrição minuciosa, que choca porque usa expressões insólitas para a poesia, e que são chocantes exatamente porque querem mesmo é denunciar, mostrar as mazelas sociais e humanas. Ambos queriam acordar a sociedade que ainda hoje dorme sobre os seus próprios trastes.

É sob esse aspecto que a poesia se transfigura em notícia. Quem conheceu Carlos Cunha, no dia a dia, não pode deixar de observar que o que mais dava consistência ao seu texto eram os seus posicionamentos político, social e humano. O texto não desmentia as suas atitudes; as suas atitudes não desmentiam o seu texto. Por isso, o texto era a extensão de seus atos e seus atos, a extensão de seu texto.

Logo, Carlos Cunha não foi apenas o poeta das emoções, foi poeta dos pobres, dos humildes, dos sem-pão. Foi o poeta da maioria visivelmente exposta nestes Maranhão e Brasil. Se coube a Casimiro de Abreu ser o "poeta da saudade", caberia a Carlos Cunha ser o poeta da infância, com os dois poemas acima transcritos, e da infância pobre, desnutrida, esquelética e abandonada pelos que manipulam o poder.

Mas esse olhar de soslaio sobre o plano literário de Carlos Cunha ainda não dimensiona o seu valor estético. Avaliar a poesia de Carlos Cunha sob o ponto de vista formal, sob os pontos de vista histórico, estilístico, sociológico, tudo irá requerer horas a fio de dedicação e estudo que ainda poderão ser imprecisas para dar-lhe o tamanho exato.

Carlos Cunha, em sua poesia, fala do mundo sofrido, porque participou desse mundo. Não pode falar de solidão e de tristeza, quem nunca foi só e quem nunca foi triste. A sua poesia também foi feita para denunciar e protestar, a exemplo do que se observa no poema “Sem Nódoa do Tempo Liquefeito”, abaixo transcrito:
 
Eu procurava, no meu subúrbio colorido,/Acender o lume das auroras, mas as minhas manhãs/Eram desidratadas e, sempre que olhava o céu,/Sentia o gosto de azul na boca./Com aquela rosa de alumínio batia à minha porta/Um trecho de órgão que procurava sufocar a minha infância. Eu cresci num sufrágio de porquês,/Mas, no horário dos sinos também./A minha tristeza morreu servida numa taça/E, das grandes madrugadas sonolentas,/Roubei o brilho de um peixe/E fiz minha canção.

Constitui-se a poesia em um poema em prosa. Nesse mundo textual, o poeta volta ao passado, sem cultuá-lo com a pieguice característica dos românticos. Os três primeiros versos denotam a condição humilde do eu poético, que se manifesta via a palavra subúrbio e do adjetivo desidratadas. Já o adjetivo colorido é a palavra de efeito, que encharca de sugestão o sentido visual da infância. A infância está caracterizada pelos verbos no passado e em expressões como auroras, no sentido figurado de princípio, começo, desabrochar. Assim, auroras e manhãs fazem a mixórdia de um momento escuro do qual se extrai a tênue luz de um acendedor de anseios, porque o poeta intencionava acender as auroras, mesmo que as manhãs fossem desidratadas.

A degustação que o eu poético faz do céu, através do azul, é uma sinestesia que conota a religiosidade e que, ao mesmo tempo, desmascara a fome e desmascara a fragilidade da matéria. A perda de água, sugerida pelo adjetivo desidratadas era imposta pela causalidade da fome. A fome induz à ociosidade do paladar, mas quando o eu lírico sentia o gosto de azul na boca, ao olhar o céu, dava à fome uma compensação espiritual: a fé. Vê-se a coloração dada ao paladar.

O alumínio desmente a rosa que, por sua vez, vê-se corroída pelo alumínio que resiste à corrosão. Não se pode também deixar de ver que esse mesmo alumínio é a metonímia da panela na qual não houve a cocção da comida, razão por que a infância assistiu às desigualdades sociais.

Se o eu lírico sofria as perseguições impostas pelas necessidades orgânicas e materiais, também compensava essas perseguições com a espiritualidade, a religiosidade, a fé com as quais fora agraciado, ao crescer, também, no horário dos sinos. Estes lembram o bronze, as igrejas, a musicalidade, as horas. Eis a razão para o poema não ter nódoa nem denotar mágoas.

O fato de a tristeza ter nascido da circunstância de um “não ter”, a mesma tristeza morreu, sob o requinte do ter, e a taça é o tropo das mudanças, da vitória, e nela o poeta bebeu o seu tempo liquefeito. Mesmo das circunstâncias nebulosas, das madrugadas em que esteve acordado, o eu poético soube roubar o brilho de um peixe, pescando entre o céu e o mar, a sua resistência. O eu lírico poderia roubar o peixe para alimentar-se fisiologicamente, mas preferiu roubar-lhe o brilho a continuar na escuridão, preso às coisas fúteis, passageiras e materiais, pois acreditava no transcendental. Assim, a partir desse brilho ele fez a canção que daria ritmo à sua vida futura.

Carlos Cunha, por meio de sua alma de poeta e jornalista, edificou-se como o homem da emoção e da razão. Do sentimento e do fato. Da poesia e da notícia. Afinal, a poesia foi mais um instrumento que ele utilizou para denunciar o fato e com a qual fez notícia. Destarte, se ele, em mostrando a fragilidade da infância, foi poeta, foi muito mais jornalista. É sob esse aspecto sociológico que os versos de Carlos Cunha vão ser emergenciais e pragmáticos, fortes e sempre atuais: "pra que brinquedo, menino, pra que brinquedo, pra que, se já nasceste um brinquedo... Um brinquedo do destino?" (1967, Poesia de Ontem).

Nos dois primeiros poemas, encontrar-se-á o dualismo que está sempre presente na obra de Carlos Cunha: o opressor e o oprimido; o governante e o governado. Os discursos do poeta e do jornalista dirigem-se insistentemente a esses dois leitores. Na primeira poesia, por exemplo, Bilhete a Papai-Noel, o discurso é dirigido ao poder. Na segunda, Canção de Natal Para o Menino Pobre, o destinatário é aquele que está sob o domínio desse mesmo poder. E o interessante é que, em nenhum momento, os dois discursos se contradizem, pelo contrário, completam-se.

Escritora, professora, jornalista, filha de Carlos Cunha.