Quem conta a história em Coringa?
Quem é, afinal, o narrador no filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019)?
Acredito que há mais de um. Ou talvez só um narrador, mas que apresenta versões variadas, pura fantasia ou não, sobre as mesmas situações. Com vozes plurais, é certo que a trama apresenta versões diferentes para os mesmos fatos, como, p. ex, o relacionamento de Fleck com a vizinha.
Esta maneira de contar a história, em que há cenas distintas sobre as mesmas situações, levanta, no mínimo, dúvida sobre o que está rolando na trama, a “veracidade” interna relativa à ficção em si. Isso pode gerar alguma confusão ao espectador, e pode ser lido de muitas formas, uma das mais óbvias é a de que a primeira versão encenada é a imaginada por Arthur Fleck (Coringa) e a segunda, os fatos “reais”, descritos por um narrador impessoal, terceira pessoa, de fora, narrador deus, que tudo sabe.
Não se trata de algo novo no cinema. O filme “Uma mente brilhante” - vencedor do Oscar de 2002 nas categorias de melhor filme, roteiro adaptado, diretor e atriz coadjuvante - foi ousado e muito feliz ao apresentar dois narradores. E o fez de modo desafiador, pois durante boa parte do longa - da abertura até metade ou mais - as cenas contam uma versão, dada como única, “verídica” (lógica interna), sem dar pistas (fáceis) de que eram criações ou distorções do protagonista, da mente dele.
E aí o espectador é levado a “sentir” sintomas da doença que acomete o matemático, a esquizofrenia. Alucinações, paranoias, ilusões persecutórias só são questionadas, reencenadas, expostas, lá na frente. “A ilha do medo” (M. Scorsese, 2009) também joga com confrontos narrativos, apresentando um belo trabalho com plurivocidade, a contrapor o que era pura imaginação de um personagem e o que houve de fato.
De tudo, ficam as perguntas: até que ponto a visão (subjetiva) dos personagens interfere? O que é verdade (ou seriam verdades?) Como deve ser a experiência de ter delírios? Como confiar nas narrativas?