O aspecto irônico e a postura do herói romântico no conto O Bispo Negro de Alexandre Herculano.

Trabalho de Narrativa Portuguesa apresentado à Professora Luciana dos Santos Salles.

A seguinte análise busca entender como a ironia e o herói romântico são apresentados no conto O Bispo Negro de Alexandre Herculano. Antes de compreendermos tais elementos, observemos primeiramente um breve resumo da narrativa. O conto narra a história do Príncipe de Portugal, Afonso Henriques, o qual retirou o poder de sua mãe Dona Tereza, condenando-a ao exílio. Por esse motivo, o papa deseja excomungar Coimbra, isto é, a retirar do convívio religioso, “amaldiçoando-a”. Ele envia o bispo Dom Bernardo, o qual diz ao príncipe para que solte sua mãe, caso não queira sofrer a excomunhão. O príncipe não cede ao acordo e elege um novo bispo que era considerado negro a fim de que ele cumpra suas vontades. No entanto, certa manhã um cardeal excomunga a cidade e parte. Afonso Henriques o persegue, fazendo-o jurar que retiraria a excomunhão de Coimbra, levando seus dois sobrinhos como reféns. A ficção termina com o velho cardeal advertindo o papa de que poderia ter sido morto, caso não fizesse o que o príncipe desejava.

Após termos rememorado o conto, observemos os aspectos irônicos presentes nesse enredo. Primeiramente, vale salientar que a narrativa possui personagens e acontecimentos históricos reais misturados em uma ficção. O conto retrata que o príncipe, Afonso Henriques, retirou o poder de sua mãe Dona Tereza. Tais personagens e ocorrências retratadas de fato existiram historicamente. Desse modo, ao fazer a mistura de elementos fictícios com reais, essa ficção cria uma ironia estrutural. A ironia constitui-se na possibilidade de dizer dois elementos ao mesmo tempo, podendo afirmar inteiramente um e integralmente outro, através de apenas um recurso. Isso não ocorre de igual modo, por exemplo, na ambiguidade, a qual se refere a um fator ou a outro; e não aos dois ao mesmo tempo. Vale destacar que, essa forma de constituir uma narrativa é muito utilizada pelo Romantismo por diversos motivos. Dentre os quais é importante evidenciar a relevância de dois constituintes: a influência sobre a visão do leitor e a parceria criada com o mesmo.

Essa estrutura dúbia é empregada pelo autor com o intuito de atrair o leitor e incentivá-lo de forma pedagógica. Esse estímulo é usado para criar um espaço de dúvida a fim de ensinar os leitores a questionarem os discursos e o mundo. Tal visão questionadora constitui o Romantismo, o qual é uma literatura que não foge da realidade, mas que questiona o real. A ironia também é usada para criar uma parceria do autor com o leitor. Quando o leitor percebe o que o escritor quis dizer através de “palavras não ditas”, aproxima-se do mesmo por ter um conhecimento em comum. Vejamos, por exemplo, a presença da ironia estrutural no capítulo II , quando o narrador fala sobre a história contar o fato, mas a tradição o verossímil. Desse modo, apresenta os dois elementos de forma duvidosa, não dizendo qual está certo ou errado, mas propiciando dúvidas ao leitor. Acreditar na história ou na ficção? Isso não é exposto pelo autor, somente que ambas possuem sua veracidade, cabendo ao leitor escolher ou não em qual deve confiar.

A ironia está presente não só na estrutura do conto, mas na própria forma na qual o personagem é descrito pelos outros. Enquanto a narrativa apresenta a figura de Afonso Henriques como a de um grande rei, que se conduz, possuindo suas próprias decisões; todos os outros personagens da ficção o chamam somente de príncipe e até mesmo de infante. Esse título é dado aos filhos do rei que não são herdeiros do trono, aos que jamais reinarão. O bispo Dom Bernardo, por exemplo, ao visitá-lo em Coimbra, a fim de pedir que liberte sua mãe, o chama dessa forma: “— Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?”. O próprio Afonso Henriques, apesar de todas as suas ações gloriosas, chama-se também por esse nome. Quando ele foi à crasta da Sé de Coimbra assistir à eleição do novo bispo, o qual foi eleito mais tarde por ele próprio, disse a seguinte frase: “ — Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?”. Desse modo, o próprio rei que assumira o poder do reino, que foi retirado de sua mãe por ele, chama-se de infante.

Além disso, o próprio narrador o chama de infante ao decorrer da narrativa, diversas vezes. Observemos os seguintes exemplos: “... — bradou o infante cheio de cólera —...” ; “O infante Afonso Henriques, o Espadeiro...” ; “As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos...” ; “O infante estava assentado...” ; “... e breve alcançaram o infante.” Vejamos ainda o seguinte trecho: “Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria”. Nesse episódio o príncipe persegue o cardeal e o ameaça, fazendo-o jurar que seria retirada a excomunhão de Coimbra e para ter certeza de que cumpriria sua promessa, leva seus dois sobrinhos como reféns. As atitudes de Afonso Henriques são grandiosas, ele decide e age, persegue-os levando-os como reféns, faz de tudo para que a cidade volte a estar no convívio religioso. No entanto, o narrador mostra toda uma ironia quando o rebaixa, apesar de todos esses atos, chamando-o de infante.

A narrativa apresenta ainda uma ironia de expectativa que ocorre através de seu título. Ao lermos a expressão “O Bispo Negro” deduzimos que o conto retrata a história de um bispo negro, ou pelo menos que o mesmo estará presente em grande parte da ficção. No entanto, ele é mencionado na narrativa somente quando o príncipe visita os cônegos dizendo que Coimbra terá um novo bispo. Desse modo, ele é descrito como um negro que veste hábitos clericais e que se chama Çoleima. A narrativa conta que ao ouvir Afonso Henriques falar, ele concordava com a cabeça em sinal de aprovação. O príncipe, ao fitá-lo, o escolheu como o novo bispo, nomeando-o de Dom Çoleima. Em seguida, houve uma missa conduzida por esse novo bispo, a qual foi ouvida com devoção por Afonso Henriques. Depois do ocorrido, ele não é mais mencionado ao longo de toda ficção. Dessa forma, o título O Bispo Negro provoca o leitor a acreditar que lerá de fato sobre o bispo negro, mas isso não ocorre; gerando uma ironia de expectativa. Vale salientar que, um texto irônico possui um enigma insolúvel, que sempre irá frustrar a expectativa do leitor.

O título do conto pode também ter sido denominado dessa forma para referir-se ao jogo de xadrez. O bispo é uma das peças contidas nesse jogo, sendo inclusive a mais próxima do rei juntamente com a rainha, o mesmo ocorre na ficção. Afonso Henriques necessitava ter ao seu lado um bispo que pudesse continuar mantendo o convívio religioso em Coimbra. Por isso, decide eleger um novo bispo que concorde com suas práticas, alguém que ficasse próximo a ele, a seu favor. Ademais, o título, ao fazer menção desse jogo, apresenta a literatura como um desafio criativo, sendo capaz de criar diversas jogadas assim como o xadrez. Desse modo, tal expressão é usada a fim de chamar o leitor para jogar. Vale salientar que, a ironia é um motor para o processo de reflexão assim como esse jogo. Os seres humanos possuem essa ironia presente em si, uma vez que, são feitos de linguagem. Assim, ao lermos a narrativa conseguimos compreender ou não a ironia, utilizando, por conseguinte, o processo reflexivo para buscar entende-la melhor.

Observemos também como o herói romântico é apresentado nessa narrativa. No entanto, para compreender esse componente, é importante saber que um dos elementos fundamentais do Romantismo é a busca pela identidade. Essa procura pode ser subjetiva (pessoal) ou coletiva. O outro fundamento é a ironia, que está ligada à forma; e o terceiro é a idealização, que se refere a ideia (forma) e ao ideal (conteúdo). A ideia fica no âmbito da forma utilizando a ironia na estrutura e o ideal é o projeto revolucionário feito para ajudar as pessoas a questionarem. Todos esses elementos são imprescindíveis ao Romantismo, tendo a sua concretização nessas obras românticas. Visto isso, falemos sobre a figura do herói romântico, a qual está muito presente nas composições dessa corrente. Isso ocorre devido esse personagem possuir características relacionadas a um dos elementos muito importante do Romantismo, a busca pela identidade. Desse modo, o romântico luta por sua identificação e a de seu povo, fazendo de tudo para que ela não ser perca.

Ao lutar por essa identidade, o herói não precisa necessariamente estar “certo”. Desse modo, na perspectiva de outros personagens, do narrador e até mesmo do leitor, essa figura pode ser considerada como imprudente e incorreta. No entanto, isso não muda o fato de que seja o herói da ficção, caso possua as características referentes ao mesmo. Ao lutar por seus objetivos, muitas vezes, esse personagem pode obter atitudes que o façam sentir-se incompreendido ou sozinho no mundo. Afonso Henriques, ao ir à crasta da Sé de Coimbra pedir que um novo bispo seja eleito, tem sua ideia reprovada pelos cônegos. Vejamos um trecho que mostra esse acontecimento: “ — Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição — disse o mais e velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes e que era o adaião.” Além de ter seu pedido negado pelos cônegos, possui também o mesmo rejeitado pelo bispo negro. Desse modo, Çoleima só aceita o pedido do príncipe mediante à ameaças: “ Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.”

Todas essas rejeições mostram como esse personagem possuía atitudes que não eram bem vistas pela Igreja. Ademais, devido a tais reprovações essa figura, de certa forma, era isolada dos demais. Vejamos ainda, outras características referentes a esse herói. O protagonista precisa ser incomum (extraordinário), com marcas humanas (defeitos), não necessitando estar ligado a fatores positivos. Esse herói é um indivíduo com o qual os leitores precisam se identificar, por isso não pode ser perfeito, uma vez que, precisa ser identificado pelos humanos como seu semelhante. Afonso Henriques, ao saber que Coimbra fora excomungada, agiu de forma extraordinária. Ele tomou uma atitude precisa: “Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a levantar do chão.” No entanto, também agiu de forma humana, defeituosa, quando decidiu raptar os sobrinhos do cardeal, dizendo: “Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos”. Ele fez isso para que o clérigo realmente cumprisse sua palavra e trouxesse de volta o convívio religioso para sua cidade.

O personagem Afonso Henriques trava uma luta por sua identidade de ser rei e pela independência de seu povo. Por isso, ele é o herói romântico nessa ficção, tendo todos os seus atos, por mais “errôneos” que sejam considerados, pautados nessa busca. Isso ocorre diferentemente, por exemplo, no conto A Pequena Sereia, no qual a personagem abre mão de sua identidade para se tornar humana. Esse tipo de atitude não é bem vista pelos românticos, mas sim a persistência em manter sua identidade. Desse modo, vejamos algumas atitudes que esse personagem obteve que possuíram como pauta essa procura identitária. O conto inicia o capítulo II contando que Afonso Henriques, após uma revolução, retira o poder de sua mãe e a condena ao exílio. Isso não é bem aceito pela Igreja, que decide excomungar Coimbra. Essa atitude do príncipe é vista como um absurdo pelos religiosos, um ato que não deveria ser tomado contra a própria mãe. Podemos observar nessa passagem uma das características do herói romântico, que é a de ser diferente. Para igreja, ele estava errado, pois agia de forma contrária da que se esperava pela sociedade.

No entanto, Afonso Henriques lutava pela identidade de seu povo, tudo o que fazia era para que Portugal fosse reconhecido como reino, tendo sua independência. Ao ouvir Dom Bernardo, que fora enviado pelo papa, pedir para que solte sua mãe, ele nega: “— Não! Mil vezes não!”. Desse modo, ratifica que a busca pela identidade do seu povo é maior do que qualquer empecilho ou indivíduo que possa aparecer em seu caminho. Com isso, fortalece seu papel como herói romântico. A religião que sempre esteve presente com esse povo seria, de certa forma, retirada daquelas pessoas. A igreja estava retirando tanto Afonso Henriques, quanto sua população da membresia religiosa. Por conseguinte, grande parte da identidade daquela sociedade seria perdida. Por isso, Afonso Henriques luta até o fim para restaurar seu convívio religioso e de seu povo, não medindo muito suas ações. Todavia, apenas agindo por um bem que considera maior.

O conto apresenta ainda uma analogia ao cristianismo, comparando o herói romântico à imagem de Cristo. Na narrativa, Afonso Henriques vai até a crasta de Sé de Coimbra vestido com sua armadura e empunhando uma espada. Desse modo, os cônegos formam um semicírculo em volta dele e o sol, que brilhava muito, faz com que sua armadura brilhe também. Assim, sua figura é apresentada como a de um rei, que é um ser iluminado por Deus. Além disso, na manhã em que o galo canta três vezes, enquanto todos dormiam, a cidade foi excomungada: “O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.” O cristianismo relata uma passagem que fala sobre Pedro negar Jesus três vezes antes que o galo cante. Como a igreja excomunga a cidade, sem que ninguém saiba, na manhã em que o galo canta três vezes; é relacionada à figura de Pedro, o qual negara Cristo. Já o herói romântico Afonso Henriques é associado à figura de Cristo, uma vez que, enquanto dormia ele e seu povo foram “traídos” pela igreja.

Referências Bibliográficas:

O Bispo Negro. Português.seed.pr, 2019. Disponível em :

<http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/o_bisbo.pdf>.

Acesso em: 13 de dez. De 2019.

Afonso Henriques. Wikipedia, 2019. Disponível em:

< https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques>. Acesso em: 15 de dez. de 2019.

Isabel Oliveira do Nascimento
Enviado por Isabel Oliveira do Nascimento em 23/12/2019
Reeditado em 24/12/2019
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