O contrato social em Sigmund Freud
O contrato social em Sigmund Freud
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
O contrato social é poderosíssima construção conceitual e institucional da tradição ocidental. Com diferenças de pormenor, revela a intuição de que abdicamos de nossa liberdade originária, em troca da segurança que a vida em sociedade propiciaria. Para uns, a renúncia se daria em favor de um soberano absoluto; para outros, em prol de um governo democraticamente constituído. Contemporaneamente, no núcleo da teoria do contrato social radica a ideia de que um governo legítimo seria produto artificial de um acordo voluntário acertado em agentes morais detentores de liberdade de escolha. É muita metafísica.
Na visão dos pós-modernos, quando os havia, o contrato social seria uma grande narrativa, que apenas qualificaria uma estratégia política que justificaria mecanismos de dominação. Na abordagem feminista o contrato social matizaria dominação masculina; neste sentido, melhor falarmos em contrato sexual. Para Carole Pateman o contratualismo ignora um pacto não escrito, não codificado e místico, que se dá entre os sexos; a soberania, em sentido mais irônico, seria a hipocrisia organizada...
Para Sigmund Freud, o contrato social é fonte de angústias. A renúncia de nossas pulsões teria como resultado direto a constatação de que a sociedade fracassa em proporcionar a felicidade que se espera dela. Meu argumento é de que Freud desconstrói a idealização do contrato social, denunciando-a como ingênua e como insatisfatória para explicar a condição humana. A compreensão do contrato social em Freud é marcada por um forte ceticismo. Freud descortina as tragédias e as possibilidades da cultura; destrói nossa moral, com todos os requintes de ser nosso maior moralista. Pode nos ajudar a compreender que o Estado é menos uma necessidade de que um mito.
O contrato social é percepção que conta com linhagem que explicita os fundamentos de nossa compreensão ocidental de mundo. Com estações no animal social de Aristóteles, e com aproximações com o voluntarismo de Agostinho, Cícero, Sêneca, Guilherme de Ockham e Francisco Suarez, o contrato social alcançou em Thomas Hobbes sua grande formulação no contexto do pensamento moderno. O assunto foi retomado por Locke, que o vinculou ao liberalismo democrático. A noção foi recepcionada por Rousseau, que a calibrou pela noção de que a associação civil é o ato mais voluntário que há no mundo, porquanto cada pessoa nasce livre e é senhora de si própria. Kant, no “Rechtslehre”, fecha o círculo conceitual de contrato social da era liberal. John Rawls revigorou a tradição com sua “Teoria da Justiça”, que Perry Anderson abominou, dizendo-a uma “Teoria da Injustiça”. Anderson é corajoso.
Freud afastou-se dessa tradição. Não se pode negar que o ceticismo do pai da psicanálise em grande parte se deve à depressão econômica de 1929 bem como na ascensão do nazismo na Alemanha. Freud denunciou um conflito do homem com a civilização, opondo liberdade e imaginária igualdade. Ao fim da vida, sua fuga de Viena parece confirmar tanta premonição.
É este o grande tema de “Das Unbehagen in der Kultur”, que alguns traduzem como “O Mal-Estar na Civilização”, outros como “O Mal-Estar na Cultura”, e outros (principalmente da tradição norte-americana) como “A Civilização e seus Descontentes”. A crítica de Freud aos conteúdos simbólicos da vida civilizada (assunto que ele aprofundou em “O Futuro de uma Ilusão”) é também muito agudo em relação a percepções de religião.
Para Freud, numa abordagem absolutamente pessimista, a vida social é fonte de sofrimento, bem como nossa impotência para com a natureza é também justificativa de sensação recorrente de desamparo. Quanto à constituição da sociedade, Freud observava que as leis que criamos não se destinam, necessariamente, ao bem comum que retoricamente as justificam.
Somos os algozes de nós mesmos. A cultura, para Sigmund Freud, que se contrapõe aos contratualistas, é a razão de nossa infelicidade, e não nossa salvação. Freud contrariou Rousseau, negando a vida simples e as metáforas do bom selvagem. Nossas neuroses, segundo Freud, resultam da insuportabilidade da frustração que a vida em sociedade nos impõe.
Muito nítida em o Mal-Estar na Cultura é a desilusão que a racionalidade nos coloca, assunto que será retomado pelos teóricos da Escola de Frankfurt, a exemplo de Horkheimer, Adorno, Walter Benjamin e Erich Fromm (ele mesmo um freudiano). Para Freud a apreensão do que seja propriamente cultura é difícil, embora necessária para que possamos compreender como as regras jurídicas foram postas num compromisso pragmático de comunidade. Ao contrário da percepção convencional, de que a associação humana visaria ao bem comum, Freud contrapunha a imagem de que a comunidade era força coletiva que subjugava força individual.
O Direito, por exemplo, seria mecanismo pelo qual a força coletiva se imporia definitivamente sobre uma força bruta individualizada. O conceito de justiça seria menos uma miragem metafísica e mais uma concepção social garantidora, no sentido de que a força da coletividade que venceu a força bruta individual seja respeitada. Em troca de suposta proteção comunitária em face da força bruta individualizada é que renunciamos a nossos impulsos.
O preço que pagamos para que possamos enfrentar a força bruta de um só é a renúncia de tudo que nos revela como humanos, em nossa maior e mais abrange plenitude, isto é, não civilizada. Para Freud, no entanto, a renúncia poderia trazer algum ganho, se tomada numa antropologia positiva. De onde, num outro passo, a monogamia, exigência que também restringiria a atividade pulsional, temas dos mais relevantes e polêmicos no conjunto do pensamento freudiano.
O “leitmotiv” da tese freudiana sobre o contrato social seguiria a ideia de que a liberdade seria maior numa fase pré-cultural. A cultura, assim, sob um prisma absolutamente pulsional, não seria aperfeiçoamento nem passo que leva a perfeição. O convívio com exagerado número de membros na coletividade nos aponta para uma impossibilidade de satisfação de nossos desejos, o que gera uma psicopatologia que se alimenta na própria seiva. E porque a maioria é mais forte do que o indivíduo, cedemos, recorrentemente. O preço de nossa sobrevivência é calculado na exata proporção da negação de nossa existência.
O custo da aceitação é a renúncia absoluta de nossa condição original. O índice de abovinamento da existência é a impressão digital que toca nas grandes oportunidades da vida social. O necessário amesquinhamento das pulsões pode ser a chave interpretativa dos porquês de nossas frustrações. Perdemos a guerra imaginária que o nosso inconsciente trava contra a cultura. O pacto social se mostra como um contrato de adesão. As cláusulas que não necessariamente pactuamos são nossas amarras: revelam a fragilidade de nossa vontade, o vício de nossa alternativa, a ditadura da falta de caminhos e o erro das nossas opções.