A rua, o prédio e o povoado: passado, presente e futuro.
O som ao redor, Aquarius e Bacurau. A trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho
Aquele grupo de vigias disse ontem:
- Antigamente, vocês nos escravizaram e mataram, “mas esse ano” nós não morremos, e ainda faremos vocês pagarem.
Esta jornalista aposentada diz hoje:
- Sou um pouco mais livre e, mesmo sozinha, agora eu luto por esse meu pedacinho há pouco conquistado.
Esse povo de Bacurau dirá amanhã:
- Em anos futuros, teremos criado nosso espaço e estaremos vivenciando nossa liberdade: se vierem aqui, venham na paz.
Se na trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho (com Juliano Dornelles na terceira produção) - composta por “O som ao redor” (2013); “Aquarius” (2016); e Bacurau (2019)-, uma personagem, ou um grupo delas, quisesse sintetizar a essência da narrativa numa única frase - de resgate, resistência ou aviso/prenúncio -, penso que estas aí em cima seriam escolhas razoáveis, ainda mais se imaginarmos como interlocutores aquelas personagens que agrediram, agridem ou tentarão agredi-los.
(A fim de evitar a repetição exaustiva dos títulos dos filmes, vou comentá-los sempre na ordem cronológica e/ou usando números, de acordo com a data de lançamento acima descrita).
As três obras dialogam de várias formas e a mais evidente é o tratamento dado ao espaço físico, que pode ser lido como personagem, talvez protagonista. Primeiro a rua, depois o prédio (apartamento) e, por fim, o povoado: todos apresentam disputas dos locais.
Talvez um pouco menos óbvio que o espaço, mas não menos relevante e bastante claro, vemos a questão do tempo: o primeiro filme lançado - “O som ao redor” - trata do passado (resgate de uma violência sofrida anteriormente); o segundo - “Aquarius” -, do presente (resistência individualizada/atomizada a uma agressão atual, com ataque e contra-ataque simultâneos); e o terceiro – “Bacurau” -, vai ao futuro (resistência organizada coletivamente para lutar contra uma violência que ainda virá).
A relação entre “ontem, hoje e amanhã” está em tudo que os longas apresentam, até nas aberturas de cada um, com destaque às músicas escolhidas para acompanhar as cenas iniciais. Os dois primeiros filmes se iniciam com fotografias antigas e o último, com filmagens feitas do espaço - talvez de uma nave , que acabam mostrando de cima o Brasil e a região Nordeste. E ainda há um detalhe acerca dos modos como as imagens inaugurais são registradas e mostradas: 1. horizontalidade: as fotografias retratam o mesmo plano do fotografo, de frente, todas numa relação horizontal; 2. Aquarius se inicia com fotos no mesmo plano (horizontalidade) que, em seguida, vão se afastando e subindo, aproximando-se de uma captação vertical, mas ainda de modo oblíquo; 3. Bacurau começa nas estrelas e vem descendo, de modo mais verticalizado, para a terra onde se dará o conflito. Desta forma, percebe-se a sequência entre as aberturas, em vários graus.
E aqui vale o destaque às músicas de cada abertura: no primeiro longa, ouvimos o som de batuques, percussão, sem vozes, algo que remete à ancestralidade afro-brasileira; no segundo, ouvimos “Hoje”, de Taiguara, que até no título da faixa remete ao presente; e, em Bacurau, “Não identificado”, na voz da Gal, que trata do futuro até nas promessas do eu poético (“Eu vou fazer uma canção pra ela ...”), que é uma canção (criação) brasileira, pra ser lançada amanhã (ainda a ser criada) e que “há de brilhar” “como um objeto não identificado” (é tão nosso e tão novo que ainda não tem nome). Essa relação íntima entre a letra da música e as tramas é algo constante no trabalho do cineasta pernambucano, como já comentei nos textos sobre cada uma das obras.
Acerca da violência, é importante deixar logo registrado que os protagonistas “proletários” (entre aspas porque em Bacurau há superação desta classificação, sendo ex-proletários) NUNCA inauguram o combate; os (ex)proletários sempre são agredidos antes pela burguesia, pelos mais poderosos. A violência das heroínas é sempre uma reação a uma agressão, nunca inicial. Só depois de atacados, é que respondem, para resgatar o passado, resistir no presente ou se defender no futuro, no qual já terão criado, coletivamente, algo novo pelo que vale a pena lutar.
Sobre a liberdade, a relação que vejo é a seguinte: ontem vocês usurparam nossa liberdade; hoje, vocês estão tentando destruir minha pequena e limitada “liberdade” recém-concedida (falsa liberdade, impressão de liberdade, mas não verdadeira já que somos “livres” para sermos como vocês); amanhã, teremos construído - coletivamente - nossa liberdade, essa, sim, criada e conquistada (não concedida), e se vocês não vierem na paz...
Em síntese, a meu ver, a relação tempo/espaço na trilogia se dá da seguinte maneira:
Em “O Som ao redor”, a classe pobre de ex-escravizados - grupo desterritorializado - vem resgatar o passado em face dos latifundiários de ontem, os quais detinham, de certa forma, tanto o poder econômico quanto o político. Trata-se de um grupo (vigilantes) que veio do interior para a capital, a indicar a migração campo/cidade grande, lembrando os retirantes, os alijados, os marginalizados, aqueles aos quais se nega o território, inclusive o de moradia. Sem espaço próprio, ocupam intermitentemente a rua, para depois invadirem a propriedade privada do algoz e aí se vingarem. O plano é de resgate do que houve ontem: podemos parecer vigias que vieram te proteger, mas não somos e não esquecemos sua agressão. No tocante à identidade, parece-me que são colocados como oprimidos, colonizados, que vem se vingar e lutar por uma nova identidade. Nos momentos finais, se fala da violência original cometida pelo fazendeiro rico: “Por causa de uma cerca...”. Violência original não só da personagem, mas talvez da humanidade, pois, como disse Jean-Jacques Rossseu, “O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer "isto é meu", [...] , foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: Não, impostor.” E aqui se revela uma narrativa sobre o capitalismo e seu modo de produção, reprodução e opressão.
Em “Aquarius”, há uma protagonista individual - o que difere dos outros dois longas – e ela está num espaço seu, na cidade grande, de modo a representar a classe média brasileira, isolada no seu apartamento, já na qualidade de proprietária dum pequeno espaço de moradia, mas sem consciência de classe nem identificação mais profunda com os mais pobres. No que se refere à identidade, vejo uma certa imitação do opressor; ainda sem identidade própria, imita os dnos do poder. Ela luta, no presente e de forma isolada, contra o poder econômico nacional representado por uma empreiteira. Aqui se vê a hipertrofia do poder econômico e o esvaziamento do poder político, tão comum em tempos neoliberais com redução do Estado. Clara, praticamente sozinha, lutando contra uma sociedade empresarial, mostra bem o individualismo da classe média em face da organização coletiva dos donos do capital. E Clara parece reforçar as estruturas do sistema vigente, porque ela não deixa de ser uma “vencedora” dentro das regras impostas e de acordo com a falácia da “meritocracia”, pois teria emergido da pobreza, como sugere um diálogo racista no filme. Aqui se revela como parte do povo oprimido, proletário, pode se iludir com os sistema capitalista e achar que tudo se encerra em defender um espacinho individial – mas logo é lembrado que, se incomodar a burguesia, vai ter que lutar sozinho. Aqui, o oprimido ainda se ilude e sonha que seria uma maravilha ser parte da burguesia. Um pernambucano porreta dizia: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Paulo Freire avisou…
E, em “Bacurau”, um povoado que ainda será construído, num futuro próximo - já instalado num território “seu”, ocupado de forma coletiva, partilhada, comunitária e nova; não reproduzindo os modelos capitalistas, mas inaugurando uma forma autêntica -, vai superar a divisão em classes (ao menos em sua comunidade) com práticas de democracia direta, participativa e talvez de índole anarquista, ainda a se definir e, por isso, livre de definições velhas. No terceiro longa, o pêndulo da movimentação retorna ao interior/campo. E é a gente de Bacurau, coletivamente organizada, que representa a solução final da trilogia, resistindo amanhã contra os poderes políticos locais que já se venderam ao poder econômico internacional. O povoado revela a política em face da politicagem, a cidadania no lugar dos direitos do consumidor, o caminho para uma revolução – rompimento com o status quo, e não mera reprodução do sistema dominante. Nos dois primeiros longas há reação dos oprimidos; no último, há AÇÃO dos ex-oprimidos que provoca uma reação dos autoproclamados opressores. A gente de Bacurau não passa do papel de oprimida para se tornar opressora, mas cria o novo, transforma, liberta e aí a reação a esse futuro pós-classes vem de um passado capitalista que se originou de uma cerca e que deseja destruir tudo que não tenha a cerca como fundamento. Quanto à identidade, o povoado consegue criar uma sua, própria, nova, genuína. Bacurau derruba as cercas da propriedade privada e trava o modo de produção capitalista, ao criar “um anti-computador sentimental” cheio de amor. E mais uma vez, Paulo Freire: “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem.” e “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” e “Nenhuma pedagogia que seja verdadeiramente libertadora pode permanecer distante do oprimido, tratando-os como infelizes e apresentando-os aos seus modelos de emulação entre os opressores. Os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção”. Nosso caminho não está numa teoria nem na história, há de ser criado ainda. Ainda “há de brilhar” “como um objeto não identificado”.
Os três filmes os abordam sistemas de produção ao longo da história, primeiro com um capitalismo mercantilista, de colonização; depois, um capitalismo mais moderno e ainda de viés produtivo (ainda nacional, como a empreiteira do filme Aquarius, e ainda com algumas regras); por fim, um capitalismo financeiro, de caráter especulativo, internacional, muito bem representado no jogo (game) que tenta se impor a Bacurau. As regras mudam, não são previamente conhecidas (desregulamentação) e mesmo que o povoado não queria jogar, o jogo lhe é imposto. Não é à toa que por várias vezes a gente de Bacurau pergunte aos assassinos por que eles estavam fazendo aquilo...
Os títulos também dizem muito: “O som ao redor” é o do povo vindo de lá onde foi alijado e explorado, do passado; o povo chegando perto. “Aquarius” é o presente, nossa era, como dizem alguns, e que tem semelhanças com o signo que a representa, como a comunicação veloz, a busca pelo que ainda virá e a luta contra o autoritarismo, ainda que marcada pelo individualismo nesses tempos. “Bacurau”, ave nativa também conhecida como curiango (quase Coringa), curiango-comum, ju-jau, carimbamba, amanhã-eu-vou (em Minas Gerais), é sobretudo indígena, no sentido de que ocupava uma área antes da colonização e que, após a invasão, resiste, de modo a não se integrar aos invasores. Se o primeiro longa trata do som ao redor, Bacurau é o centro de onde emana o som, com o seu cantar, “amanhã-eu-vou”. Até o pássaro título avisa sobre o futuro.
Ao assistir aos longas como uma só história, podemos tentar observar a divisão clássica em três atos, cada um dos filmes representando o que seria essencial em cada ato. É óbvio que esta divagação decorre da análise de um contexto suposto sobre a ligação entre cada narrativa, sendo certo que cada um dos longas apresenta divisões internas de atos. Ou seja, aqui se propõe uma ideia de divisão, que não representa necessariamente o que de fato se realizou. Nesse contexto, conversando com o saudoso Belchior:
1. apresentação: dos grupos (pertencentes a classes) antagonistas e do contexto histórico com raízes no passado (ontem morremos, agora nos sobrou o resgate);
2. confrontação: resisto hoje (neste “ano eu não morro” - eu luto); e
3. resolução: construímos um espaço nosso e, se vocês não vierem em paz, pra nos defendermos, nós te mataremos no ano que vem.
Ainda divagando, se a trilogia fosse um livro, um romance, e fôssemos analisar o narrador: em “o som ao redor”, os oprimidos teriam sido totalmente narrados pelos opressores, objetificados, chegando no máximo a coadjuvantes. Em “Aquarius”, o oprimido pode até se destacar como uma personagem mais relevante, achando-se até protagonista, mas apenas na exata medida em que imita o opressor (reage dentro da estrutura - não age), que continua como narrador, dono da trama e pronto pra matar qualquer oprimido que ouse disputar a elaboração e o curso da história (alguns chegam até a sustentar ao fim da história – sem história, sem disputa). Em bacurau, os ex-oprimidos alcançarão, coletivamente, a liberdade real de narrar, construir, criar novos processos, originais, fora da estrutura e, por isso, não reativos e sim ativos: não ocuparão o papel de opressor: passarão de ex-oprimidos para uma história completamente outra, um novo romance. E saberão - unidos - defender sua narrativa coletiva, caso outros pretensiosos narradores não venham em paz. Pode haver diálogo, mas pode haver luta. Depende de como vocês vierem.
No tocante às datas de lançamento, só tenho a dizer que o primeiro foi lançado em 2013, ano das “jornadas de junho”; o segundo , em 2016, ano em que Clara se viu só e Dilma sofreu o golpe; o último em 2019, a 17 km daquele que tomou posse - e é bom que, se vier, venha em paz.
Salvo engano, apenas um ator trabalha nos três filmes, o talentoso Rubens Santos. E os personagens que ele encarna em cada um dos longas dizem muito: no primeiro, ele é Adaílton, um empregado, de uniforme, oprimido, porém disposto a revidar as agressões cotidianas. No segundo, Rubens interpreta Rivanildo, o qual começa como empregado da empreiteira que ataca Aquarius, mas depois deixa de ser empregado e, sem uniforme, vai ajudar Clara, heroína, sem querer nada em troca, apenas pelo certo – e é simbólico que uma revelação tão crucial para a resistência da jornalista (classe média) venha de um desempregado pobre, capaz de deixar o medo dos poderosos de lado para ajudar a “oprimida” proprietária de um apartamento em frente à praia. Em Bacurau, ele é Erivaldo, que abre o filme, sem uniforme, livre, indo e vindo com a água, tão essencial, em seu caminhão-pipa. Trabalhador digno, que dá carona a gente de Bacurau que retorna à terra. Motorista que admira Lunga e que não fica olhando pelo retrovisor naquela área do povo, mesmo quando seu caminhão é alvejado; ele olha pra frente, pro futuro, como tudo em Bacurau.
E pra fechar com falas – do mesmo modo que abrimos:
- Não tivemos espaço; lutamos e morremos; você nos via como coisa e muitos de nós acreditaram na visão de vocês; alguns resistimos (re-existimos) e viemos provar a custa do seu sangue. Sua visão te traiu e alguns já não acreditam em vocês.
- Eu luto por esse pedacinho recém-concedido; você quer me ver como uma pessoa menor diante da sua organização empresarial; resisto isolada e provo minha força agora. Nunca acreditei na visão de vocês sobre mim. E penso que nem vocês acreditam. Mas no fundo acredito na visão que vocês têm de si mesmos.
- Teremos construído um espaço nosso, coletivamente livre; te aviso que lutaremos, se vocês (you) não vierem na paz. Resistiremos. Vivemos de acordo com nossas visões. Apesar de nossos esforços para tentar entender a visão de vocês, não conseguimos: desconfiamos que vocês estão com os olhos totalmente tapados (talvez por um óculos de realidade virtual – muito mais virtual que real) e nem percebem. Estamos vivendo, não “jogando” como vocês.
E canta Bacurau: “amanhã-eu-vou”.