"O príncipe" de Maquiavel: escrita 506 anos atrás, obra influente e incompreendida se tornou uma referência para governantes desde então, estabelecendo as bases do que viria a se tornar o "Estado moderno"
Livro "O príncipe" do escritor e diplomata italiano Nicolau Maquiavel, obra escrita no ano de 1513 e publicada após a morte do autor, em 1532.
Maquiavel viveu na República Florentina, no período do Renascimento. Essa época teve como principal característica um declínio na influência do pensamento religioso/místico sobre a sociedade e, consequentemente, sobre os governantes. Até então, a figura do "príncipe" (que pode ser aplicada a qualquer tipo de governante de uma nação) era, em certa medida, inseparável da religião dominante. Houve uma valorização das artes, da filosofia e das ciências.
Na Europa, antes do Renascimento, havia grande poder concentrado nos chamados "Estados pontifícios", situados no centro da península itálica, controlados pela Igreja Católica. A Itália era, então, dividida em diversos reinos ao sul, como Nápoles e Sicília, e repúblicas localizadas ao norte, tais como Siena, Gênova, Florentina. Havia ainda domínios diversos como Savoya, Milão, Módena.
Essas regiões da Itália viviam em constante instabilidade por disputas de todo tipo, objetivando, naturalmente, a conquista de territórios e poder. Maquiavel tinha profundo conhecimento das relações entre essas regiões por ter, ao longo da vida, atuado como diplomata/chanceler em diversas missões. Ele utilizou essa experiência para escrever "O príncipe".
No livro, Maquiavel foi pioneiro ao propôr a separação entre Estado e Igreja. Tendo em vista que os Estados papais também participavam de disputas, tal como as demais regiões, é compreensível que Maquiavel defendesse que havia duas morais: a religiosa, então vigente, e a política, criação do autor. O conhecimento de ambas permitiria um melhor convívio nas relações com a Igreja. Para Maquiavel, ainda, o príncipe (entenda como qualquer governante) precisava de duas coisas: manter o poder e garantir a eficiência de seu governo. Tudo isso seria o início do que conhecemos hoje como "Ciência Política", bem como do "Estado moderno".
Para Maquiavel, o príncipe dependia da obtenção da experiência nas coisas modernas e na leitura das antigas, o que representaria a fonte do conhecimento, ou seja, o entendimento dos fatos passados é essencial e complementar ao conhecimento prático adquirido. O príncipe estaria sujeito a duas forças que se opõem e, igualmente, se complementam: "virtù" e "fortuna". A virtù está ligada ao indivíduo, à força e ao conhecimento que dita suas ações. Por sua vez, a fortuna está ligada ao ambiente externo, ou seja, à sorte e ao ocaso. Maquiavel, ao longo do livro, procura ensinar as características que o príncipe deveria ter para se manter no poder (virtù), bem como ler e identificar os cenários que se apresentam (fortuna), para saber como tirar o melhor proveito da situação. O relato de exemplos reais constitui a base da didática utilizada pelo autor.
Por criticar a influência religiosa sobre as ações do príncipe, Maquiavel começou a ser difamado por religiosos, logo após a publicação do livro tornando, inclusive, o termo "maquiavélico" um adjetivo com conotação negativa, nos séculos seguintes. Uma leitura e análise apressadas da obra podem levar, facilmente, a interpretações erradas. A máxima "os fins justificam os meios", geralmente atribuída ao autor, é um bom exemplo disso. Maquiavel, em nenhum de seus livros, diz essa frase. Sequer tal linha de raciocínio faz parte de sua obra. O que Maquiavel, de fato, defendia, além do que já foi pontuado, é o conhecimento prático, obtido em ações (e não em orações) e cujo estudo consistia na leitura dos exemplos apresentados. Ao falar dos motivos que levam um príncipe a ser louvado ou não, Maquiavel assim diz: "(...) Ora, um homem que de profissão queira fazer-se permanentemente bom não poderá evitar a sua ruína, cercado de tantos que bons não são. Assim, é necessário a um príncipe que deseja manter-se príncipe aprender a não usar [apenas] a bondade, praticando-a ou não de acordo com as injunções". Nas palavras de Antonio Caruccio-Caporale, "os meios dos quais se vale um príncipe não são, portanto, 'justificados pelos fins': eles são 'impostos', tornados necessários pelo 'modo' da experiência, pelo ambiente no interior do qual o homem deve agir" (1).
Boa parte da incompreensão de Maquiavel se deve ao desconhecimento do contexto histórico da Itália renascentista. Com as citadas disputas entre as regiões, a Itália carecia de unidade nacional, tornando-a suscetível a todo tipo de invasões. É tentador (e compreensível) condenar Maquiavel quando ele apresenta exemplos elogiosos de governantes que assassinaram seus inimigos e/ou praticaram atrocidades. Contudo, naquele período e contexto de intrigas e guerras, a qualquer momento, o príncipe poderia ser traído, assassinado, ter seus domínios ameaçados. O mérito de Maquiavel consiste em buscar meios práticos de resolver as questões, sem depender da providência divina. A carência destes conhecimentos e dessas relações perigosas entre as regiões italianas, dentro do espectro maquiavélico, preocupa o autor. Por isso, seu livro foi dedicado a Lourenço II de Médici (o Duque de Ubino), então ainda jovem e que poderia, devido à idade, unificar a Itália (o que acabou não ocorrendo). Maquiavel também almejava uma posição de destaque (cargo) junto à corte do Duque, o que também não veio a ocorrer.
O livro está dividido em 26 capítulos. Nos onze primeiros, Maquiavel apresenta os diferentes tipos de principado, suas características e o que é preciso fazer para mante-los sob sua guarda, ainda que a violência precise ser aplicada. Nos três capítulos seguintes, Maquiavel fala de questões militares: tipos de exército, milícias que possam ser contratadas para lutarem a favor do príncipe e o conhecimento específico básico nessa hora. Em seguida, até o capítulo 20, Maquiavel fala das características pessoais do príncipe. Nos dois capítulos trabalhados em seguida, Maquiavel fala da escolha de ministros e do perigo de se cercar de aduladores. Por sua vez, nos capítulos finais, Maquiavel tenta explicar a razão da perda de parte das regiões citadas para invasores, como reagir à presença da fortuna (o ambiente externo). O livro encerra com uma exortação à unificação da Itália.
A leitura de "O príncipe" não é fácil. Demanda tempo, apesar de não ser tão grande em páginas. Isso se deve à quantidade numerosa de exemplos históricos colocados por Maquiavel, que fazem parte de sua didática. Ele cita governantes e eventos, tanto por um positivo quanto negativo. Neste ponto, é fundamental ter em mãos uma edição acrescida de notas históricas. A edição que li (vide ficha no final da resenha) aproveitou-se de notas explicativas incluídas em antigas edições francesas (2) e italianas (3). Sem isso, a compreensão das interações entre as regiões e, consequentemente, do próprio pensamento maquiavélico fica muito prejudicada. Ao colocar primeiro a descrição dos tipos de principados, deixando as características pessoais para serem apresentadas gradualmente e, principalmente, em capítulos mais a frente, temos um enfoque que caminha do teórico para o prático de forma lenta o que, talvez, desanime o leitor que vai com fome ao pote.
Em tempos recentes, "O príncipe" tem recebido vários tipos de releituras sendo, a mais comum, aplicar seus ensinamentos ao ambiente empresarial. Nesse contexto, o empreendedor/empresário/profissional passa a ser visto como o "príncipe" e os inúmeros personagens citados por Maquiavel se tornam fornecedores, parceiros e concorrentes. O povo governado seria o cliente. Tenho resistência a esse tipo de releitura (aliás, não gosto de releituras) pois te obrigam a aceitar a interpretação de outros sobre um material original que, provavelmente, o leitor não acessou. Qualquer interpretação equivocada ou limitada se perpetuaria. Considero particularmente difícil aplicar o que foi escrito mais de quinhentos anos atrás num contexto totalmente diferente, ignorando, certamente, aspectos da intencionalidade de Maquiavel ao gerar a obra e do contexto renascentista na qual ela se insere.
Querem um exemplo disso? Semanas atrás, ao conversar com uma pessoa sobre um empresário que conheci, citei Maquiavel (4). Esse empresário tinha se cercado de puxas-sacos, contratando pessoas sem competência mas que tinham grande influência sobre suas decisões por serem amigos pessoais. Tais pessoas tomavam a frente em processos onde elas não tinham bagagem técnica, gerando problemas e intoxicando o ambiente interno da empresa. Não é difícil imaginar o destino de tal empresário. Citei Maquiavel, na ocasião, pois ele dedica um capítulo inteiro para falar exclusivamente de aduladores e os perigos de ter eles te influenciando. Durante a conversa, essa pessoa me falou que tinha lido "O príncipe" cinco vezes!!! E que, a cada leitura, aprendia algo mais. Isso me deixou pensativo pois eu me considero um leitor experiente, tendo lido centenas de obras ao longo da vida e, sendo bem sincero, tive dificuldade para ler "O príncipe", fazendo uma leitura bem cadenciada, tentando encontrar o prazer na obtenção do conhecimento histórico. Logo, como alguém pode ter lido cinco vezes? Além disso, não se trata de uma obra subjetiva, que ofereça um cardápio interpretativo. Pelo contrário, Maquiavel buscava a praticidade e os exemplos apresentados reforçam isso. Então, como isso é possível, considerando que a pessoa provavelmente disse a verdade? Quando me lembrei que tal pessoa tinha como hábito a leitura de livros de negócios/empresariais, matei a charada. Certamente ela tinha na estante uma dessas interpretações de "O príncipe", voltadas para o ambiente corporativo.
A arte da política e da governabilidade não é simples. O próprio Maquiavel teve dificuldades ao longo da vida nesse sentido. Em 1512, Maquiavel foi demitido sob a acusação de ter expandido uma política de resistência contra a Casa dos Médici, que angariaram grande poder após a queda de Francisco Soderini, a quem Maquiavel serviu. Por várias vezes, como chanceler, Maquiavel teve dificuldades em suas missões diplomáticas. Nessa mesma época, Maquiavel ficou perplexo ao ver a rendição de Baglioni diante do Papa Júlio II quando, na realidade, deveria o papa ter sido preso. Afinal, naquele contexto, o papa era um príncipe como qualquer outro, disputando poder, territórios. Esse espanto de Maquiavel era oriundo do fato de que Baglioni ser homem de confiança de César Bórgia. Boa parte dos exemplos positivos de "O príncipe" residem principalmente na figura de César Bórgia, para quem Maquiavel serviu durante um bom tempo. Tendo boa parte de seus mapas de campanha desenhados por Leonardo da Vinci, Bórgia era influente e tornou-se conhecido por sua violência. A apresentação de uma figura tão cruel como exemplo positivo, por Maquiavel, gera questionamentos interessantes e reforçam aquilo que falei mais acima: é problemático interpretar e estabelecer analogias com fatos tão antigos, sem conhecer todos os seus nuances.
Ainda dentro dessa dificuldade da arte política, embora "O príncipe" tenha se tornado influente para governantes nos últimos cinco séculos, é pouco provável que a maioria tenha realmente lido e aprendido algo com a obra. A quantidade de guerras infrutíferas e de governantes medíocres que surgiram em todos os continentes desde então demonstram isso claramente. Pegando o Brasil como exemplo, analisando a atual classe política, com políticos que mal conseguem articular duas frases em sequência sem erros de concordância, a leitura de Maquiavel bem que ajudaria, pelo menos, para se ter um pouco de estabilidade. Contudo, é bem provável que eles desistissem logo nas dez primeiras páginas.
Enfim, "O príncipe" é um livro influente e interessante para se entender como o conceito de "Estado moderno" teve início, ou seja, como as intrigas e o jogo de poder, motivadas por ambição e vaidade, e com violência e traições alimentando, se tornaram o modus operandi dos diferentes Governos ao longo dos últimos séculos e como o entendimento dessas interações constitui as bases da Ciência Política. Maquiavel não deve ser considerado um guia moral e nem imoral. Deve ser considerado como alguém que enxergou na praticidade das ações o caminho mais tranquilo para a resolução de problemas. Deve ser considerado também como alguém que enxergou a importância de se separar a figura do Governo da Igreja, por entender que o governante não é uma criatura divina e que a Igreja (aqui me referindo a todas as religiões), como qualquer instituição busca o poder e a auto-sobrevivência através da influência. Por fim, "O príncipe" é um ótimo livro sobre as relações políticas durante o Renascimento. Seria um livro muito melhor se fosse mais convidativo ao leitor comum, o que pode ser atenuado tendo em mãos uma boa edição rica em notas e informações.
(1) Nota # 101, página 147.
(2) Edições por Gallimard e Flammarion, ambas de 1980.
(3) Edição das "Opere" de Niccolò Machiavelli, publicada por Riccardo Ricciardi Editore (Milão-Nápoles), de 1954. Essa edição foi traduzida a partir do original, escrito em dialeto toscano. A edição italiana é a base dessa tradução de Antonio Caruccio-Caporale, para a editora L&PM.
(4) Livro lido em setembro. Resenha escrita em novembro.
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