Fósforos de Oxford
Quando sou deixado sozinho com meus pensamentos, gosto de rememorar os áureos tempos de meu passado, pois na falta de um futuro as lembranças são meu único conforto.
Frequentemente sou transportado ao dia em que, pela primeiríssima vez, as Musas me visitaram, ungindo-me a cabeça com o óleo da Poesia – eu, uma criança que mal havia alcançado os 15 anos de idade, sendo agraciado com tamanha honraria! Ainda me lembro da inexprimível alegria que senti ao escrever meu primeiro poema, que desde então jamais veio a ser replicada, e dos castelos que erigi no ar aguardando o dia em que me veria “lado a lado com Tasso e Ariosto” em minha própria ala no Panteão dos vates.
Tantos anos decorridos, aqueles versos de Wordsworth passaram a ecoar em meus ouvidos com força cada vez mais tonitruante para recordar-me das consequências de uma sina de poeta: “We poets in our youth begin in gladness / But thereof comes in the end despondency and madness”. O mais perto que cheguei de igualar-me a Tasso foi em loucura e não em obras, e tal como Chatterton, Otway e Spenser me habituei à penúria ao invés dos lauréis, que só haverão de vir uns 50 anos (ou mais) depois de minha morte. Longe, porém, de maldizer meu fado, só tenho a agradecer àquela benfazeja visita das Musas, pois se não fosse por seu julgamento de que merecia afinal adentrar os arcanos da Ars Poetica eu jamais teria conhecido uma das mentes mais iluminadas que já caminharam por meu país (quiçá pelo planeta) – o cantor Ciro Pessoa, fundador dos Titãs e do mítico Cabine C, com quem gravou o curiosamente nomeado álbum “Fósforos de Oxford” em 1986.
As Musas podem ter me concedido o dom da Poesia, mas sem Pessoa eu o teria devolvido inutilizado; quando ouvi “Fósforos de Oxford” pela primeira vez, foi como se uma epifania se revelasse ante meus olhos, proclamando-me: “Este é o caminho no qual haverás de perseverar! Árdua será a colheita, mas doces os frutos!”. Subsequentemente, muito raras foram as vezes em que vim a escutar um álbum tão belo, e não apenas ele me proporcionou uma longeva inspiração como também uma fortíssima amizade entre pupilo e mestre que só veio a ser desfeita quando Azrael cerrou-lhe as pálpebras.
Uma das maiores qualidades de Pessoa é seu lirismo e versatilidade – as canções que escreveu para os Titãs são completamente diferentes das quais viria a escrever em “Fósforos de Oxford”, mas ainda assim todas possuem sua marca pessoal, permeada de várias influências artísticas e literárias. Todo o álbum está embebido em poesia romântica e simbolista, com Edgar Poe recebendo um lugar de destaque; “Pânico e Solidão” foi inspirada em “Arthur Gordon Pym”, enquanto “A Queda do Solar de Usher” já é deveras autoexplicativa. A musicalidade, mesmo com uma certa umbra a envolvê-la, emana uma aura exótica, flertando com música árabe e japonesa na faixa-título e na expressiva “Jardim das Gueixas” respectivamente. Luz e sombra brincam, formando um espetáculo agradabilíssimo aos olhos – ou, melhor dizendo, aos ouvidos.
Não posso recordar-me de todas as vezes em que este álbum, na falta da companhia de meus semelhantes, serviu-me como meu único amigo, sempre relembrando-me dos encorajamentos de meu mestre; tive a chance de conhecê-lo pessoalmente, entrementes num tempo em que tentava se desfazer da estética “gótica” promovida por ele em Fósforos de Oxford. “Aquele que nunca muda de opinião é como a água parada”, nas palavras do poeta, e uma mente tão privilegiada que sempre irradiou luz aonde quer que fosse adoeceria se tivesse que se ocultar na penumbra por muito tempo. Seus dois últimos álbuns, “No Meio da Chuva Eu Grito ‘Help’” e “Em Dia com a Rebeldia”, demonstram de forma mais acurada quem foi Ciro Pessoa como indivíduo e força criativa – mas “Fósforos de Oxford” sempre terá um lugar em meu coração por me fazer perseverar neste árduo ofício de poeta há mais de uma década.
Tampouco não poderia deixar de agradecer a Pessoa por encher este nosso mundo tão gris (e minha vida) com sua maravilhosa inspiração, e estou certo de que este Virgílio do meu Dante está agora num lugar mais apropriado à magnanimidade de seu gênio, habitando em meio à música e às belas visões que tanto amou em vida.
“Que os deuses lhe façam oferendas, e o proteja sob suas tendas.”
(São Carlos, 28 de abril de 2021)