Eles não ligam pra gente
 
Minha intenção neste texto é destacar alguns pontos da bela e poderosa música “They don´t care about us” (Michael Jackson, 1995), seus videoclipes e algumas curiosidades. Mais uma vez me impressionei com trechos que ouvi muitas vezes sem prestar atenção - o que é comum em letras de música, já que a melodia costuma tirar a atenção da poesia (e no caso dos videoclipes do astro, ainda há a dança, a fotografia etc., que ofuscam ainda mais a letra, a mensagem).

A música fala de racismo, autoritarismo, violência - especialmente a policial -, política, consumismo, desigualdade, e até do que atualmente chamam de pós-verdade. E é muito atual, encaixa-se perfeitamente à nossa realidade. Em 1995, Michael Jackson cantou sobre a ascensão da violência, denunciando uma situação já crítica, mas que ao longo dos anos ainda piorou e, infelizmente, a resposta a todo discurso de medo e incertezas tem sido mais repressão e violência - e não as saídas indicadas pelo Rei do Pop na sua poesia.

Os versos são diretos, não usam muitas metáforas, dizem logo a que vieram: denunciar o descaso dos poderosos em relação aos marginalizados: "they don´t care about us" - eles não ligam para a gente (nós), frase que em português pode se desdobrar para o sentido de que "eles não ligam pra gente", eles não se importam com pessoas, seres humanos. Descreve claramente como o Estado foi reduzido ao seu papel repressor, abandonando as políticas públicas mais ativas, inclusive (e principalmente) as de promoção de igualdade. E o mais incrível é que ele avisou há mais de 20 anos sobre os riscos e consequências do abandono e marginalização.

A letra já começa falando de “cabeça raspada”, em clara alusão aos skinheads, mas também ao militarismo, porque os soldados também tem o cabelo assim, rente. Ainda na primeira estrofe, acusa o aumento da maldade, além de ressaltar a confusão dos discursos, denunciando um afastamento dos fatos (verdade), em que todos justificam seus atos (inclusive violentos) da maneira que quiserem, criando suas versões, daí a pós-verdade.

E sobre a verdade - prestando bastante atenção ao início dos videoclipes -, ouvimos, no meio do coro infantil que canta o refrão, a voz de menina que se ergue pra dizer: “não importa o que as pessoas digam, a verdade está com a gente.” Num mundo cheio de medo e especulações - como é dito na letra - uma criança defende o seu ponto de vista, que é o da mensagem da música: eles realmente não ligam pra gente. Porque se ligassem pelo menos um pouco, não haveria tanta discriminação e violência, como a letra destaca.

É uma poesia de cunho crítico e politizada: menciona duas figuras históricas, Roosevelt e Martin Luther King, dizendo que se eles tivessem vivos, não deixariam estes absurdos acontecerem. A crítica às políticas neoliberais de redução do Estado não poderia ser mais clara, tendo em vista que o democrata Franklin Delano Roosevelt (FRD) promoveu políticas públicas de inclusão, usando ativamente o Estado de caráter interventor, a fim de atenuar a devastação causada pela crise do capitalismo de 1929. Luther King era um pastor protestante que se tornou um dos líderes do movimento dos direitos civis dos negros nos EUA, com uma campanha de não-violência. 


Michael denuncia o descaso dos poderosos, com a amputação do braço protetor do Estado, que atualmente segue apenas com o braço hipertrofiado da repressão, o qual se volta com mais força e frequência contra aos historicamente marginalizados, os “invisíveis” e sem direitos, como diz a letra.

E pra quem acha que a divisão da sociedade e a polarização são fenômenos recentes, taí uma música de 1995 que deixa tudo bem claro. Antes, em 1980, Bob Marley já falava desta divisão quando lançou "We and them". E pra citar um exemplo de lucidez nacional, em 1997 veio à luz o álbum "Sobrevivendo no inferno" (Racionais MC´s), que até no título expõe a divisão social, e nas músicas descreve uma realidade dura, marcada por desigualdade e segregação, como nos versos de “Diário de um detento": “Cadeia? Guarda o que sistema não quis/ Esconde o que a novela não diz.”

A divisão social é clara há muito tempo; a polarização ficou mais evidenciada quando a extrema direita saiu do armário empurrada pelo discurso de medo e pela decadência da classe média, também ferida pelo neoliberalismo. Alguns dos fundamentos do conceito de classe média são a maior estabilidade do grupo e seu poder aquisitivo razoável, a ponto de suprir com algum conforto as necessidades básicas (sobrevivência) e ainda ter um excedente para atividades culturais e de lazer.

A redução do Estado - com a privatização da educação, da saúde e até da segurança, além do corte de direitos -  tem esgotado os recursos excedentes da classe média: então, resta trabalhar para sobreviver, pra pagar plano de saúde, escola particular, sistema de vigilância em condomínios gradeados, cujos apartamentos (moradia), inflacionados pela especulação, vêm com os juros altos do financiamento. Compras a prazo, cartão de crédito, dívidas: com juros que engordam os lucros dos bancos. O básico agora tem preço, e é caro. O mercado, desregulamentado, cada vez mais livre pra explorar e descartar, não garante estabilidade. A ideologia dominante cega por imersão e direciona o medo - e o ódio - para os mais pobres, para os imigrantes (retirantes), tachando de inimigos as maiores vítimas do próprio sistema, aqueles que sofrem duplamente: com a omissão (abandono) e a repressão (violência) do poder público. 

E eles ("they") lucram no processo inteiro: menos Estado, menos impostos; menos direitos trabalhistas, menos gastos, menos deveres legais em relação a pessoas; menos serviços públicos gratuitos, mais espaço pra "empreender" e vender até o mínimo essencial; mais dívidas, mais juros; mais crimes (e a elite define que tipo de atividades e substâncias são ilegais), mais armas, produzidas em países desenvolvidos; mais prisões, mais trabalho precarizado e expansão dos negócios com a privatização das cadeias; os jornais reforçam o discurso de medo nos artigos e reportagens ao mesmo tempo que - reféns das verbas de publicidade - anunciam unidades em condomínios clubes-fortalezas, empréstimos,  seguros pra tudo (os riscos são enormes); carros novos condicionados ao pagamento de "suaves" prestações.

O sistema cria guerras e vende as armas (pros dois lados); sucateia o transporte público e vende carros e motos, "soluções" individualistas que engrossam os engarrafamentos, onde os potentes veículos se travam pelo excesso: encarcerados nos carros parados e por isso mais vulneráveis, cidadãos de bem temem ladrões violentos e armados enquanto alimentam, acordados, o sonho da arma própria e legalizada, pra poder "empreender" em sua própria segurança pessoal e patrimonial. Mais consumo e privatização (até do conflito armado), mais lucros.

Pode ser que o mesmo conglomerado empresarial venda armas pro ladrão e pro bom cidadão, além de seguros, blindagem, alarmes, filmes de ação com heróis armados (entretenimento motivacional de guerra que banaliza a violência: cortas as cenas de sexo, mas mostra com detalhes pessoas morrendo metralhadas; censura gemidos de prazer e corpos nus, mas não o som dos disparos e os cadáveres estraçalhados), pode ganhar uma grana até com o serviço de atendimento de urgência - SAMU (também privatizado), se sobrarem feridos, e também com os remédios de um eventual tratamento médico. 


Além dos versos fortes, os videoclipes de "They don´t care about us" também transgridem e protestam. Neles, o ícone do entretenimento canta e expõe verdades inconvenientes e como cidadão da chamada “Terra da liberdade” grita por liberdade - exige o cumprimento da promessa -, expondo o real pesadelo que na prática contrapõe ao “sonho americano”. Atrelados ao avanço das políticas neoliberais vieram a maior concentração de renda e o aumento da desigualdade.

Os cenários dos videoclipes não poderiam ser mais adequados à mensagem da letra: dirigida por ninguém menos que Spike Lee, a versão filmada no Brasil foi gravada numa favela (Santa Marta, zona sul do Rio) e no Pelourinho (Salvador, Bahia). Já na versão realizada nos EUA, Michael canta e dança dentro de um presídio, encarcerado. A prisão tem sido uma das principais respostas repressivas do Estado, cada vez mais “policial” e menos preocupado com o “bem-estar social”.[1]

E quando a resposta não é criminalização e prisão, pode ser fatal: o Estado mata, como aconteceu com as crianças vitimadas este ano (e nos anteriores também) e com o homem desarmado e acompanhado da família (inclusive uma criança de 7 anos) que foi fuzilado com mais de 80 tiros por soldados do exército. [2] Preciso mencionar a cor do homem executado? E a cor e classe social das crianças assassinadas? Preciso dizer? Preciso relembrar o massacre do Carandiru, onde a prisão não foi suficiente, e 111 homens encarcerados foram mortos?


Escolher o Brasil, país marcado pela desigualdade, e fazer uma parceria com o Olodum tornam a obra ainda mais fantástica. Ele veio cantar e dançar com os excluídos o arranjo é lotado de percussão brasileira, numa pegada meio Rap e Hip hop, sons da periferia. O músico estava a frente de seu tempo: numa época que ainda não se falava muito sobre lugar de fala e representatividade, ele deu seu recado da melhor forma possível. Não bastou fazer uma música de protesto, ele veio aqui, contou com o talento do Olodum, mostrou a favela, a periferia dentro de um periférico país da América Latina, onde o “sonho americano” só passa na TV e às vezes falta tempo pra assistir.

A letra anuncia o caos, a loucura, e expõe os pesadelos bastante reais de muitos, pesadelos que não deixam de ser o preço, o efeito colateral, dos "sonhos" de alguns. E a obra incomodou: criaram polêmicas em torno da letra, há rumores de que autoridades brasileiras tentaram impedir a gravação para não expor a pobreza e as falhas do governo, além das críticas à negociação de Spike Lee com o chefe do tráfico à época. [3] Isto sem falar na restrição à exibição do clipe na prisão, que só podia ser veiculado depois das 21 horas, sob a alegação de que expunha violência. Sim, há cenas reais de violência, porém não mais que qualquer telejornal ou filme de ação. Ao que parece muita gente queria ver Michael cantar e dançar, mas com temas leves e frívolos, não com um protesto claro, direto e cheio de verdades geralmente negadas, caladas, reprimidas, jogadas pra margem. O incômodo e reações me parecem exagerados: a solução indicada na canção não é uma revolução sangrenta: ao citar Roosevelt e M. Luther King, o compositor enaltece o capitalismo superficialmente brando do Estado de bem-estar social e as vias pacíficas para chegar (voltar) a ele. 


A música e os videoclipes têm muitos aspectos que merecem destaque - como a cena de abertura do clipe da prisão, a mulher brasileira dizendo “Michael, eles não ligam pra gente” logo no início, o barulho de disparo de arma de fogo no meio da música, as mulheres que pra abraçar o astro furam o cordão de isolamento da polícia, as imagens que destacam a bateria do Olodum e seus componentes -, mas quero concluir chamando a atenção pros gritos do cantor. Michael costumava soltar uns gritos em suas músicas, o que se tornou uma de suas marcas. No entanto, em “They don´t care about us”, seus berros são bem diferentes dos demais: são mais ásperos, graves, caóticos,  parecem expressar raiva e desespero; e a música se encerra numa espécie de urro de dor. A situação vem se agravando e os sentimentos predominantes ainda são os mesmos mais de duas décadas depois. “Eles não ligam pra gente”.

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Notas e referências:

[1]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1941685-brasil-ultrapassa-russia-e-agora-tem-3-maior-populacao-carceraria-do-mundo.shtml

[2] https://www.causaoperaria.org.br/rj-solados-do-exercito-dispara-80-tiros-contra-carro-com-familia-e-assassinam-musico-negro/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/2/12/cotidiano/3.html

https://mjbeats.com.br/o-lan%C3%A7amento-do-single-they-dont-care-about-us-e096b2672057

https://pt.wikipedia.org/wiki/They_Don%27t_Care_About_Us


https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/michael-jackson-sobe-morro-grava-clipe-leva-dona-marta-para-mundo-em-96-18647055