Bacurau pode parar no oco do pau de seu Oscar

Fui ver Bacurau, o filme mais badalado do momento, com o compadre velho Jacinto Moreno, caboclo se dizente entendedor da arte cinematográfica, ele mesmo produtor de mais de 50 vídeos de ficção. Na longa fila no Cine Banguê do Espaço Cultural José Lins do Rego, noventa por cento de jovens descolados. Raros coroas do tope do velho Mozart e do videasta Jacinto. Sem bronca, furamos a fila, eu amparado na bengala, Moreno na lei da prioridade para os “pezinhos no sepulcro”. Não frequento sala de cinema há um século. O som é muito alto. Ruído tão intenso que seus ouvidos deixam escapar palavras soltas nos diálogos. Deficientes auditivos se sentiriam confortáveis.

O filme começa com os créditos. Informa que Bacurau foi o primeiro no júri popular em um determinado festival. Jacinto Moreno soltou sua primeira avaliação: “júri popular não representa nada, o povo não entende de cinema”. Mais ou menos na mesma linha do raciocínio que garante que o povo não sabe votar, por isso vota em cavalos, papagaios, gambás e outras animálias. O próprio Moreno, eleitor de Jair Bolsonaro, não bota a carapuça na cabecinha nem que a vaca tussa e o burro relinche em inglês. Mas, vamos ao filme. Eu gostei, com restrições. Um troço realmente audacioso como obra de arte. Mistura tradições culturais nordestinas com modernidades. A violência campeia, nos moldes de “Django Livre”. O figurino, confesso que não entendi sua proposta, como de resto não alcancei a maioria dos signos e alegorias da trama. Os modelitos da população de Bacurau estão mais pra galera esportiva e descolada dos grandes centros. Nada a ver com o que veste o povaréu de um lugarejo perdido nos sertões nordestinos. Essa e outras inadequações à realidade deve fazer parte da mensagem além do conflito opressor e oprimido, evidente até pela trilha sonora com canções de Geraldo Vandré.

Na conversa com Jacinto após a exibição, teve confissão mútua de que não captamos uma parte do conflito: por que uma organização criminosa nazista americana iria empregar tantos recursos para eliminar a população de uma vila perdida nos confins do Nordeste do Brasil? As referências lógicas a gente captou, que ninguém é assim tão jerico. No enterro de uma vítima, a galera fazia a chamada dos mortos, citando Marielle Franco e outras figuras recentes tragadas pelo terremoto miliciano e pelo esquema geral da direita. As cabeças dos invasores expostas na calçada é uma alusão clara ao massacre dos cabras de Lampião. A união de marginalizados com “gente do bem” contra o inimigo comum foi mensagem claramente comunicada. O político tradicional foi exemplarmente punido, como manda o figurino um tanto equivocado da própria direitona que assumiu o país recentemente.

Nossos atores paraibanos tiveram poucas falas, mas foram bem. Meu compadre Buda Lira morre no fim, metralhado por um casal de bandidos americanos. Os pistoleiros alcançaram a pé o carro dirigido pela personagem de Buda em plena noite escura, guiados pelo GPS da inverossimilhança. Depois relaxaram com uma bela trepada, devidamente registrada pelo comandante nazista da operação em seu drone disco voador. Pornô cibernético hodierno. Enfim, são tantas as subjetividades que meu olhar fica assim em enquadramento “fora de campo”. É um filme que você sente necessidade de ver de novo. Como arte cinematográfica, achei acima da média. Em plano geral, Bacurau correspondeu às minhas expectativas. O compadre Jacinto Moreno garante que faria coisa melhor se tivesse os recursos financeiros disponibilizados para a produção de Bacurau. Eu dei a ideia: cinematografar um épico gospel fantasmagórico e delirante estilo Irmã Damares e tentar verba na nova agência de cinema com a marca de “Deus acima de tudo”. O velho Moreno fingiu que não entendeu a ironia e fomos tomar sopa de tomate.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 15/10/2019
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