Aquarius: a cidade-mulher e o câncer imobiliário
Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a construtora que pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa.
Clara é como uma representação humana da cidade, com suas histórias, estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades sem negar seu passado e suas cicatrizes.
Mas há uma cisão entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente, a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos como ninhos de cupim.
Aquarius - prédio que integra o corpo de Recife – é atacado pela construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos prédios são importantes e necessários, mas a atuação das empresas não deve ser desordenada como um câncer.
Muitos parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada vez mais afastadas.
A música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa, tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das grandes empresas.
Quando ações desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado, as consequências atingem não só o morador do local mas a todos, pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.
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PS. Outra leitura de Aquarius, relacionando-o ao golpe sofrido por Dilma no link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-poder-economico-e-impeachment.html