Lunga vive! Novo oeste da caatinga:
uma leitura do filme Bacurau (contém spoilers)
uma leitura do filme Bacurau (contém spoilers)
[Contém spoilers, revelações da trama, inclusive do final] Criado e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme Bacurau é sobre um “novo” oeste, ou melhor, um oeste de um futuro próximo, "daqui a alguns anos" na frase que surge na tela, com muitas referências ao faroeste - western ou ainda “nordestern” -, sem deixar de enveredar por outros gêneros, como suspense e ação, que cito apenas a título de exemplo, porque a obra se expande e surpreende, ultrapassando limites e definições.
A narrativa cinematográfica ocorre e se fundamenta num oeste da caatinga, pernambucano, no sertão do Nordeste brasileiro, com tudo que isso implica: falta d`água (má distribuição de recursos em geral), força, cangaceiros, tecnologia, união, armas, politicagem, tiroteios, comunidade, política, pobreza, coragem, desigualdade e violência.
No início, mostra-se o caminhão-pipa seguindo por uma estrada e o velório de Carmelita (interpretada por Lia de Itamaracá), uma senhora negra importante no povoado de Bacurau, que é o grande protagonista da narrativa do filme. A região sofre com a falta d`água e durante toda a história as câmeras acompanham o ir e vir do caminhão-pipa que abastece a cidade. Esse ir e vir também representa a história de muitas das pessoas nascidas no povoado, que vão para outras cidades, estados e países (para estudar, se formar, arrumar empregos etc.), e depois retornam a Bacurau, pelos mais variados motivos.
E, em destaque, no caminho que leva ao povoado, vemos a placa envelhecida à beira da estrada, onde se lê: “Bacurau, 17 km, Se for, vá na paz”. A pergunta que fica é: estará Bacurau à distância daqueles que apertaram nas urnas o número “17”, o mesmo do partido do atual presidente do Brasil? Ou 17 km foi apenas uma distância qualquer exposta na placa? Não há como saber. Mas é interessante ressaltar que a placa aparece na tela e muitos dos telespectadores do filme estão nas regiões mais ao sul do Brasil e votaram “17”, de algum modo se afastando do Nordeste, que foi a região que menos deu votos ao candidato da extrema direita. São apenas suposições minhas na tentativa de interpretar a obra.
O filme é dividido em três atos bem marcados na história contada na tela.
A narrativa cinematográfica ocorre e se fundamenta num oeste da caatinga, pernambucano, no sertão do Nordeste brasileiro, com tudo que isso implica: falta d`água (má distribuição de recursos em geral), força, cangaceiros, tecnologia, união, armas, politicagem, tiroteios, comunidade, política, pobreza, coragem, desigualdade e violência.
No início, mostra-se o caminhão-pipa seguindo por uma estrada e o velório de Carmelita (interpretada por Lia de Itamaracá), uma senhora negra importante no povoado de Bacurau, que é o grande protagonista da narrativa do filme. A região sofre com a falta d`água e durante toda a história as câmeras acompanham o ir e vir do caminhão-pipa que abastece a cidade. Esse ir e vir também representa a história de muitas das pessoas nascidas no povoado, que vão para outras cidades, estados e países (para estudar, se formar, arrumar empregos etc.), e depois retornam a Bacurau, pelos mais variados motivos.
E, em destaque, no caminho que leva ao povoado, vemos a placa envelhecida à beira da estrada, onde se lê: “Bacurau, 17 km, Se for, vá na paz”. A pergunta que fica é: estará Bacurau à distância daqueles que apertaram nas urnas o número “17”, o mesmo do partido do atual presidente do Brasil? Ou 17 km foi apenas uma distância qualquer exposta na placa? Não há como saber. Mas é interessante ressaltar que a placa aparece na tela e muitos dos telespectadores do filme estão nas regiões mais ao sul do Brasil e votaram “17”, de algum modo se afastando do Nordeste, que foi a região que menos deu votos ao candidato da extrema direita. São apenas suposições minhas na tentativa de interpretar a obra.
O filme é dividido em três atos bem marcados na história contada na tela.
As primeiras cenas mostram um caminhão-pipa, dirigido por Erivaldo (Rubens Santos), indo para Bacurau; um senhor que coloca uma semente - um psicotrópico que é dado como uma hóstia - na boca de Teresa (Bárbara Colen), neta da falecida que acabou de chegar (voltar) a sua cidade natal; o velório e o cortejo fúnebre da matriarca Carmelita, entre outras cenas que descrevem o cotidiano do povo de Bacurau. Percebemos, rapidamente, que a comunidade é bastante unida e toma decisões coletivamente, na praça, e vive bem desta maneira democrática, autônoma (em tudo que consegue) e auto-organizada, apesar das dificuldades.
Ou seja, o primeiro ato apresenta o(s) protagonista(s): a cidade e as pessoas que ali vivem, convivem e resistem. Pessoas de todas as cores e orientações sexuais, é importante dizer, destacando que a produção contou com a participação de pessoas de povoados locais do sertão do Nordeste. Bacurau é fictícia, mas a cidade de Barra/RN[1] existe, no mapa e na realidade, e é de lá que vieram muitas das pessoas que aparecem no filme. Deste modo, e também pela escolha dos atores principais, a produção conseguiu respeitar a representatividade bem como os tons, os sotaques e a linguagem locais.
O segundo ato - cujo início se dá com a chegada de cavalos desgovernados a Bacurau - expõe o começo do conflito: para surpresa de seus habitantes, o povoado some do mapa, e chegam ali forasteiros das regiões Sudeste e Sul, com roupas coloridas e pilotando motos de trilha com a intenção de preparar o terreno para o “jogo” de sangue e morte que será disputado na cidade.
Não vou descrever tudo, é claro, mas chamo a atenção para o diálogo sobre o nome “Bacurau”, no qual uma de suas habitantes explica que o nome refere-se a um pássaro, e não a um passarinho, que é menor, respondendo à carioca invasora. E, no mesmo botequim, ouvindo a pergunta da turista sobre quem nasce em naquele lugar, uma criança arremata, "É gente!". Também merecem realce os insistentes convites dos habitantes dali para os forasteiros conhecerem o museu, o que os “sudestinos” rejeitam, mas que poderia ajudá-los a perceber o que os esperava adiante.
Não dá pra deixar de mencionar o violeiro do lugarejo, que canta um repente para os forasteiros e os provoca, zomba mesmo - até chama São Paulo de paiol num verso -, e recusa a oferta de dinheiro, que representa perfeitamente o que muitos habitantes do Sudeste e do Sul entendem como forma de lidar com o Nordeste e seu povo. A mensagem é clara: o violeiro não quer grana, mas, sim, rir da cara desse povo arrogante e ridículo do “sul maravilha” (v. Henfil) [2].
É no segundo ato que a violência explode. Cenas de assassinatos, muitas armas, pessoas mortas, tiros no caminhão-pipa que vaza água pelos furos de bala. E se descobre que há um grupo de turistas assassinos que foi a Bacurau para caçar habitantes daquele povoado. Sim, caçadores de pessoas, seres humanos; barbárie pura e intensa, praticada por homens e mulheres brancos, de países supostamente civilizados, como Alemanha e EUA. A História é pródiga em registros de atos bárbaros cometidos por instituições e pessoas de países “civilizados”.
O grupo de estrangeiros pretende usar armas antigas (“vintage”) para promover a chacina dos habitantes de Bacurau e conta com a ajuda dos “sudestinos” motoqueiros, que acabam sendo executados pelos turistas caçadores, porque não são tão brancos e diferentes dos nordestinos, como imaginavam. Vale muito a pena o diálogo em que os sudestinos colaboracionistas são confrontados com a realidade de que, para os estrangeiros, são brasileiros, miscigenados, latinos, e foram apenas usados no jogo.
A “aventura” dos turistas estrangeiros é um jogo (“game”) de sangue e morte. Um “drone” interativo - em formato de disco voador, numa referência intencionalmente cômica - filma o povoado, os assassinatos, além de orientar os turistas participantes, que seguem regras e se submetem um sistema de pontuação para cada execução, na caça de pessoas.
Se do lado dos turistas “caçadores” há organização, planejamento, tecnologia e muitas armas; do lado da resistência de Bacurau, aparece Lunga (vivido por Silvero Pereira), uma espécie de cangaceira(o) pós-gênero futurista, uma guerreira “queer” ou “drag queen”, que é um(a) criminoso(a) procurado(a) pela polícia.
E por falar em polícia, é icônica a cena que mostra uma viatura policial enferrujada e crivada de balas, abandonada no mato com outras sucatas de carros. As personagens deixam claro que não há qualquer autoridade policial institucionalizada em Bacurau. É a própria comunidade que se organiza e se protege, diante do descaso do poder público.
Quando Lunga chega (volta, como muitas das personagens) a Bacurau - com cabelos longos e roupa estilosa - uma senhora pergunta algo mais ou menos assim: “mas que roupa é essa, menino?”. É um dos trechos engraçados do filme, que também tem outras cenas e tiradas bem-humoradas, aliviando um pouco a tensão e o suspense da trama. O filme apresenta muitas frases de efeito e encanta também nos diálogos.
Todavia, apesar da importância de Lunga, o filme não aponta para uma heroína, considerada individualmente; pelo contrário, o tempo todo evidencia-se a ação coletiva, a união do grupo, deixando claro que a união do povoado é a base da luta e da resistência.
Durante o filme as personagens fazem uso de uma sementinha, que é um psicotrópico, como já citado acima. Perguntado sobre o que tem a tal “droga”, o diretor Kleber Mendonça Filho disse que a semente contém “coragem, tesão e compaixão, coisas que não faltam a milhões de brasileiros.”[3]
Merece destaque a personagem de Tony Junior (representado por Thardelly Lima), prefeito politiqueiro, almofadinha, entreguista e, claro, detestado na comunidade de Bacurau. Tony trata livros como lixo, despejando-os de um caminhão no chão de terra batida, e envia ao povoado remédios psiquiátricos que deixam as pessoas “lesas”, como revelado à população local pela médica Domingas (Sônia Braga).
O filme ataca a politicagem e o entreguismo, mas não a política, uma vez que a comunidade é bastante politizada e seus cidadãos tomam decisões coletivamente, em reuniões na praça, com ampla participação popular, a indicar uma espécie de anarquismo bem-sucedido no sertão brasileiro, já que ali as instituições do Estado parecem não chegar para resolver os problemas, mas apenas para pedir (ou tentar comprar) votos e explorar, como se vê na cena que Tony arrasta para seu carro uma mulher, que é garota de programa, contra a vontade dela e de outras mulheres que se manifestam em defesa da pessoa reduzida a objeto pelo politiqueiro.
As mulheres do filme são fortes, guerreiras, assumem todo tipo de protagonismo, na resistência armada, no sexo, na força de existir e se impor. As grandes personagens da narrativa, além de Bacurau, são mulheres ou pessoas além do enquadramento binário de gênero, como a personagem Lunga, a cangaceira drag, reiterando que o heroísmo cabe ao coletivo.
Aí vem o terceiro ato, no qual o conflito final vem à tona. Bacurau já estava fora do mapa, sem acesso a internet e, após, sem energia elétrica, que é cortada. Uma criança é assassinada friamente. Um menino que portava apenas uma lanterna é executado e o turista assassino justifica-se afirmando que a criança parecia um adolescente armado. Qualquer semelhança com as crianças e adolescentes - em sua maioria afrodescentes e pobres - que estão sendo assassinados pela polícia nas favelas não pode ser coincidência. A vítima mais recente foi Ághata Felix, de 8 anos, assassinada no Complexo do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro/RJ [4].
Ou seja, o primeiro ato apresenta o(s) protagonista(s): a cidade e as pessoas que ali vivem, convivem e resistem. Pessoas de todas as cores e orientações sexuais, é importante dizer, destacando que a produção contou com a participação de pessoas de povoados locais do sertão do Nordeste. Bacurau é fictícia, mas a cidade de Barra/RN[1] existe, no mapa e na realidade, e é de lá que vieram muitas das pessoas que aparecem no filme. Deste modo, e também pela escolha dos atores principais, a produção conseguiu respeitar a representatividade bem como os tons, os sotaques e a linguagem locais.
O segundo ato - cujo início se dá com a chegada de cavalos desgovernados a Bacurau - expõe o começo do conflito: para surpresa de seus habitantes, o povoado some do mapa, e chegam ali forasteiros das regiões Sudeste e Sul, com roupas coloridas e pilotando motos de trilha com a intenção de preparar o terreno para o “jogo” de sangue e morte que será disputado na cidade.
Não vou descrever tudo, é claro, mas chamo a atenção para o diálogo sobre o nome “Bacurau”, no qual uma de suas habitantes explica que o nome refere-se a um pássaro, e não a um passarinho, que é menor, respondendo à carioca invasora. E, no mesmo botequim, ouvindo a pergunta da turista sobre quem nasce em naquele lugar, uma criança arremata, "É gente!". Também merecem realce os insistentes convites dos habitantes dali para os forasteiros conhecerem o museu, o que os “sudestinos” rejeitam, mas que poderia ajudá-los a perceber o que os esperava adiante.
Não dá pra deixar de mencionar o violeiro do lugarejo, que canta um repente para os forasteiros e os provoca, zomba mesmo - até chama São Paulo de paiol num verso -, e recusa a oferta de dinheiro, que representa perfeitamente o que muitos habitantes do Sudeste e do Sul entendem como forma de lidar com o Nordeste e seu povo. A mensagem é clara: o violeiro não quer grana, mas, sim, rir da cara desse povo arrogante e ridículo do “sul maravilha” (v. Henfil) [2].
É no segundo ato que a violência explode. Cenas de assassinatos, muitas armas, pessoas mortas, tiros no caminhão-pipa que vaza água pelos furos de bala. E se descobre que há um grupo de turistas assassinos que foi a Bacurau para caçar habitantes daquele povoado. Sim, caçadores de pessoas, seres humanos; barbárie pura e intensa, praticada por homens e mulheres brancos, de países supostamente civilizados, como Alemanha e EUA. A História é pródiga em registros de atos bárbaros cometidos por instituições e pessoas de países “civilizados”.
O grupo de estrangeiros pretende usar armas antigas (“vintage”) para promover a chacina dos habitantes de Bacurau e conta com a ajuda dos “sudestinos” motoqueiros, que acabam sendo executados pelos turistas caçadores, porque não são tão brancos e diferentes dos nordestinos, como imaginavam. Vale muito a pena o diálogo em que os sudestinos colaboracionistas são confrontados com a realidade de que, para os estrangeiros, são brasileiros, miscigenados, latinos, e foram apenas usados no jogo.
A “aventura” dos turistas estrangeiros é um jogo (“game”) de sangue e morte. Um “drone” interativo - em formato de disco voador, numa referência intencionalmente cômica - filma o povoado, os assassinatos, além de orientar os turistas participantes, que seguem regras e se submetem um sistema de pontuação para cada execução, na caça de pessoas.
Se do lado dos turistas “caçadores” há organização, planejamento, tecnologia e muitas armas; do lado da resistência de Bacurau, aparece Lunga (vivido por Silvero Pereira), uma espécie de cangaceira(o) pós-gênero futurista, uma guerreira “queer” ou “drag queen”, que é um(a) criminoso(a) procurado(a) pela polícia.
E por falar em polícia, é icônica a cena que mostra uma viatura policial enferrujada e crivada de balas, abandonada no mato com outras sucatas de carros. As personagens deixam claro que não há qualquer autoridade policial institucionalizada em Bacurau. É a própria comunidade que se organiza e se protege, diante do descaso do poder público.
Quando Lunga chega (volta, como muitas das personagens) a Bacurau - com cabelos longos e roupa estilosa - uma senhora pergunta algo mais ou menos assim: “mas que roupa é essa, menino?”. É um dos trechos engraçados do filme, que também tem outras cenas e tiradas bem-humoradas, aliviando um pouco a tensão e o suspense da trama. O filme apresenta muitas frases de efeito e encanta também nos diálogos.
Todavia, apesar da importância de Lunga, o filme não aponta para uma heroína, considerada individualmente; pelo contrário, o tempo todo evidencia-se a ação coletiva, a união do grupo, deixando claro que a união do povoado é a base da luta e da resistência.
Durante o filme as personagens fazem uso de uma sementinha, que é um psicotrópico, como já citado acima. Perguntado sobre o que tem a tal “droga”, o diretor Kleber Mendonça Filho disse que a semente contém “coragem, tesão e compaixão, coisas que não faltam a milhões de brasileiros.”[3]
Merece destaque a personagem de Tony Junior (representado por Thardelly Lima), prefeito politiqueiro, almofadinha, entreguista e, claro, detestado na comunidade de Bacurau. Tony trata livros como lixo, despejando-os de um caminhão no chão de terra batida, e envia ao povoado remédios psiquiátricos que deixam as pessoas “lesas”, como revelado à população local pela médica Domingas (Sônia Braga).
O filme ataca a politicagem e o entreguismo, mas não a política, uma vez que a comunidade é bastante politizada e seus cidadãos tomam decisões coletivamente, em reuniões na praça, com ampla participação popular, a indicar uma espécie de anarquismo bem-sucedido no sertão brasileiro, já que ali as instituições do Estado parecem não chegar para resolver os problemas, mas apenas para pedir (ou tentar comprar) votos e explorar, como se vê na cena que Tony arrasta para seu carro uma mulher, que é garota de programa, contra a vontade dela e de outras mulheres que se manifestam em defesa da pessoa reduzida a objeto pelo politiqueiro.
As mulheres do filme são fortes, guerreiras, assumem todo tipo de protagonismo, na resistência armada, no sexo, na força de existir e se impor. As grandes personagens da narrativa, além de Bacurau, são mulheres ou pessoas além do enquadramento binário de gênero, como a personagem Lunga, a cangaceira drag, reiterando que o heroísmo cabe ao coletivo.
Aí vem o terceiro ato, no qual o conflito final vem à tona. Bacurau já estava fora do mapa, sem acesso a internet e, após, sem energia elétrica, que é cortada. Uma criança é assassinada friamente. Um menino que portava apenas uma lanterna é executado e o turista assassino justifica-se afirmando que a criança parecia um adolescente armado. Qualquer semelhança com as crianças e adolescentes - em sua maioria afrodescentes e pobres - que estão sendo assassinados pela polícia nas favelas não pode ser coincidência. A vítima mais recente foi Ághata Felix, de 8 anos, assassinada no Complexo do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro/RJ [4].
É incrível a cena em que Domingas - depois de tentar salvar a vida de uma das turistas caçadoras, resgatada pelas pessoas que havia tentado matar - recebe o líder dos turistas assassinos com suco de caju, um prato típico local e ao som da canção “True”, da banda Spandau Ballet, cuja melodia leve, lenta e harmoniosa se choca com a tensão do encontro do assassino com a médica da comunidade, o encontro daquele que mata por prazer com aquela que salva vidas, e ela indaga, singela e profundamente, "Por que vocês estão estão fazendo isso?". Para mim, esta cena representa a forma cordial e amigável com a qual os brasileiros costumam receber os estrangeiros, inclusive os bárbaros que vêm aqui explorar e massacrar.
O mais curioso é que a letra de “True”, quando traduzida para o português, tem a muito ver com a narrativa cinematográfica. Os versos da música, “I bought a ticket to the world/But now I've come back again (…) With a thrill in my head and a pill on my tongue/Dissolve the nerves that have just begun”, numa tradução livre, significam: “Eu comprei uma passagem para o mundo/Mas agora estou de volta (…) Com uma emoção na minha cabeça e uma pílula em minha língua/Dissolvo o nervosismo que acabou de começar”. Ir pro mundo e voltar bem como colocar uma pílula (semente) na língua tem tudo a ver com a história narrada. Será que os diretores pensaram até nisso? Aparentemente, sim, pois é coincidência demais para se atribuir ao acaso.
Em seguida, o avanço dos assassinos e a resistência do povo de Bacurau, que se organiza e luta a partir de dois locais principais: a escola e o museu. Nada mais simbólico e belo. Os habitantes do povoado - juntos com Lunga, seu bando e Pacote - matam, em legítima defesa, os turristas sanguinários. E os estrangeiros são decapitados, da mesma forma que fizeram com Lampião, Maria Bonita e outros de seu bando, numa referência ao cangaço e todo o seu peso histórico, político e social naquela região específica e no Brasil.
No final, percebe-se que a resistência usou algumas armas ainda mais “vintage” que os “jogadores” estrangeiros, e que a violência se voltou contra os turistas assassinos. As marcas de sangue deste conflito são preservadas nas paredes do museu, que incorpora esta nova violência, que representa a tentativa de invasão, assim como a luta e a resistência do povoado. Tudo coletivamente, jamais individualmente.
Com a exceção de Michael (líder forasteiro interpretado por Udo Kier), que tem a vida poupada, os demais jogadores sanguinários são mortos. Tony Junior, então, aparece com uma van para buscar os “turistas” mas, apesar de o politiqueiro tentar se desvincular dos estrangeiros, o líder dos assassinos o reconhece e chama por ele, gritando "Tony" que, como tudo indica, havia oferecido (entregado) Bacurau para o jogo de sangue e morte.
Ambos - o líder dos assassinos e Tony Junior - têm suas penas definidas e executadas nas ruas de Bacurau, com participação popular. Interessa mais comentar a punição do líder do jogo de morte: simbolicamente, ele é enjaulado vivo em cela subterrânea, de onde ameaça ressurgir, como o fascismo que, ao longo da história foi derrotado algumas vezes, mas ainda insiste em retornar.
A ideia original para o título deste texto era “Lunga Livre”, mas pareceria um “spoiler” - que poderia sugerir uma suposta prisão de Lunga - e, por isso, o evitei. No entanto, aqui no final, além de recomendar a todos que vejam (e revejam) o filme e o interpretem como bem entenderem, fecho com duas frases: Lunga Vive! Lunga Livre!
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Referências e notas:
[1] Reportagem do programa Fantástico sobre a cidade de Barra/RN: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/08/25/conheca-a-cidade-que-serviu-de-cenario-para-bacurau.ghtml
[2] Alguma explicação sobre o “sul maravilha” do Henfil: https://www.institutonetclaroembratel.org.br/educacao/nossas-novidades/reportagens/obra-de-henfil-ajuda-a-entender-ditadura-militar-e-geografia-do-nordeste/
[3] Explicação do diretor sobre a semente de Bacurau aos 3:55min. no vídeo: https://youtu.be/R-DX9hdBcus
[4] Reportagem do G1 sobre as 5 crianças assassinadas no RJ em 2019: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/familias-de-criancas-mortas-por-bala-perdida-no-rj-cobram-respostas-e-contestam-policia-virou-rotina.ghtml
Entrevistas com Silvero Pereira, o Lunga de Bacurau:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/23/cultura/1569265659_610072.html
e
https://youtu.be/qBAvOB3QwFU
Outros textos e vídeos sobre Bacurau e o coletivo que o fez nascer:
Trailer: https://youtu.be/1DPdE1MBcQc
https://pt.org.br/fernando-haddad-bacurau/
https://www.huffpostbrasil.com/entry/em-50-anos-de-carreira-e-a-primeira-vez-que-choro_br_5ced246ce4b00b599157daee
https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2019/08/29/bacurau-retrata-contradicoes-em-faroeste-no-sertao-com-critica-a-cultura-de-armas-diz-diretor.ghtml
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2019/05/atores-pernambucanos-vao-a-cannes-para-a-disputa-de-bacurau-novo-film.html
Ficha técnica do filme:
Nome Original: Bacurau
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil e França
Ano de produção: 2014
Gênero: ação / suspense / western
Duração: 132 min
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
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Referências e notas:
[1] Reportagem do programa Fantástico sobre a cidade de Barra/RN: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/08/25/conheca-a-cidade-que-serviu-de-cenario-para-bacurau.ghtml
[2] Alguma explicação sobre o “sul maravilha” do Henfil: https://www.institutonetclaroembratel.org.br/educacao/nossas-novidades/reportagens/obra-de-henfil-ajuda-a-entender-ditadura-militar-e-geografia-do-nordeste/
[3] Explicação do diretor sobre a semente de Bacurau aos 3:55min. no vídeo: https://youtu.be/R-DX9hdBcus
[4] Reportagem do G1 sobre as 5 crianças assassinadas no RJ em 2019: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/familias-de-criancas-mortas-por-bala-perdida-no-rj-cobram-respostas-e-contestam-policia-virou-rotina.ghtml
Entrevistas com Silvero Pereira, o Lunga de Bacurau:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/23/cultura/1569265659_610072.html
e
https://youtu.be/qBAvOB3QwFU
Outros textos e vídeos sobre Bacurau e o coletivo que o fez nascer:
Trailer: https://youtu.be/1DPdE1MBcQc
https://pt.org.br/fernando-haddad-bacurau/
https://www.huffpostbrasil.com/entry/em-50-anos-de-carreira-e-a-primeira-vez-que-choro_br_5ced246ce4b00b599157daee
https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2019/08/29/bacurau-retrata-contradicoes-em-faroeste-no-sertao-com-critica-a-cultura-de-armas-diz-diretor.ghtml
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2019/05/atores-pernambucanos-vao-a-cannes-para-a-disputa-de-bacurau-novo-film.html
Ficha técnica do filme:
Nome Original: Bacurau
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil e França
Ano de produção: 2014
Gênero: ação / suspense / western
Duração: 132 min
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles