Sintonia: periferia nas telas e caixas de som (Netflix, 2019)
[Texto sem spoilers] A Netflix acertou ao fazer parceria com KondZilla (@kondzilla - no YouTube: https://m.youtube.com/user/CanalKondZilla) na criação e direção da série Sintonia, lançada recentemente na plataforma. A produção é muito bem-feita, com um roteiro de primeira qualidade, atuações ótimas, fotografia original e uma trilha sonora incrível.
Meu objetivo aqui não é falar sobre a trama, o que eu talvez faça em outro texto com revelações (spoilers). O fato é que eu vi, gostei muito, estou revendo e recomendo demais. O que desejo nesta análise é destacar os muitos pontos altos da série Sintonia e também fazer críticas a aspectos da produção que me chamaram atenção.
O tema principal da série é a amizade - e isso é o que a trama tem de universal -, mas o que brilha nas cenas e até emociona são as particularidades da vida numa das periferias brasileiras, a maior do país: a de São Paulo. As gravações rolaram na Favela do Jaguaré, zona oeste da capital, mas na ficção a favela se chama Vila Áurea - homenagem do KondZilla à mãe dele -, localidade marginal (no sentido sociológico) onde os três amigos - dois rapazes e uma jovem mulher - vivem e compartilham seus dramas e destinos.
E as chaves da originalidade e vanguardismo da produção são justamente a coragem e a fidelidade ao retratar a vida na marginalidade, especialmente a de SP. E isso é muito interessante, porque geralmente os holofotes estão virados para as favelas cariocas e não pra periferia paulistana. As favelas do Rio merecem atenção, é claro, mas esse foco nos cariocas é desproporcional, já que, além de KondZilla, SP é a terra dos Racionais, Sabotage, Criollo, Emicida e mais uma pá de gente talentosa, formando um cenário social, cultural e artístico muito ativo, original e rico.
Sintonia tem personagens muito bem construídos e verossímeis - interpretados por atores muito talentosos que espantam pela naturalidade nos papéis -, diálogos ágeis, cheios de gírias, ritmo e espontâneos demais, além de uma narrativa realista, forte, muito bem contada, que cresce e encaixa os caminhos dos três protagonistas.
Os atores da série (não só os principais) são incríveis, parecem ter nascido nas personagens. E não é à toa: o elenco é formado por desconhecidos (profissionais que não estão na TV) e, pesquisando sobre a origem dos talentos, descobri que alguns dos atores são ex-detentos, que fizeram curso de teatro na prisão. Pelo resultado do trabalho, essa foi um excelente escolha dos realizadores.
Para não dar spoilers, vou dizer apenas que a trama se sustenta nas caminhadas e batalhas do trio principal: Rita (Bruna Mascarenhas), Doni (Jottapê Carvalho) e Nando (Christian Malheiros). Os amigos, cada um com seus “corres” (lutas diárias), representam o tripé que fundamenta a história narrada: a vida no crime (em facção que explora o tráfico de drogas), a aproximação com a igreja evangélica e o desejo de realizar o sonho de viver da música, de se destacar como MC.
Sintonia conta a realidade da periferia de SP e realiza muito bem esse projeto, porque tem criadores e colaboradores que nasceram e se desenvolveram ali, dentro da favela, e por isso sabem do que estão falando. Impossível tratar de experiências na periferia brasileira sem mencionar igrejas evangélicas, tráfico de drogas, cenário musical, trabalho informal (com personagens camelôs, vendedores ambulantes), união da comunidade, violência (incluindo a doméstica), preconceitos, corrupção policial etc. Tudo isso é abordado na série.
Bom, agora passo às críticas sobre o que penso que pode ser aperfeiçoado. As personagens são muito boas, mas podem ser ainda melhores se o roteiro da segunda temporada se dispuser a contar mais sobre o passado de cada um dos protagonistas. Colocar alguns flashbacks da história de Rita, Doni e Nando pode dar mais profundidade às suas personalidades e também à trama como um todo.
Na minha opinião, o maior erro de Sintonia foi em relação à representatividade, especialmente no trio principal. A questão é de gênero, racial (étnica) e também passa pelo colorismo: há apenas uma mulher e somente um dos três protagonistas é negro com a pele mais escura, e é justamente esse personagem que faz parte de uma facção criminosa.
No plano geral, a série consegue fugir dos estereótipos; porém, ao colocar só um negro no trio e ainda ligado ao crime, acaba reforçando uma visão menos apurada e original da favela. Conforme explica o site GELEDÉS, “de uma maneira simplificada, o termo [colorismo] quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.”[1]
Na população brasileira em geral, segundo o IBGE, a maioria é de brancos (47,51%), seguidos de pardos (43,42%), negros (7,52%), amarelos (1,1%) e indígenas (0,42%) [2], sendo a maioria de mulheres, que representam mais de 51% do total. Apesar de os brancos serem maioria no país, não é esta a realidade nas quebradas, nos lugares mais pobres, onde o percentual de negros supera 50%. [3] Portanto, um trio mais representativo da favela paulistana poderia ter duas mulheres negras ou dois negros, e não vincular os mais escuros a atividades ilegais. Em um país racista e desigual como o Brasil não dá pra passar pano na questão da representatividade.
Minhas críticas - que se pretendem construtivas - não tiram o valor da série, uma das melhores já realizadas no Brasil, com temas e cenários muito ricos, belos, peculiares e geralmente mal apresentados em produções audiovisuais, que não respeitam o lugar de fala das pessoas da favela. Que venham mais projetos artísticos criados e produzidos por pessoas da periferia!
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Notas e referências:
[1] https://www.geledes.org.br/colorismo-o-que-e-como-funciona/
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Composi%C3%A7%C3%A3o_%C3%A9tnica_do_Brasil
[3] https://ceert.org.br/noticias/dados-estatisticas/9503/levantamento-mostra-distribuicao-da-populacao-negra-em-sao-paulo
Entrevista com KondZilla e parte do elenco: https://youtu.be/B5xhPbFhY8I
https://www.cartacapital.com.br/cultura/kondzilla-nunca-me-apoiei-em-algum-discurso-de-racismo-assista/
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/criticas-de-series/2019/08/sintonia-critica-1a-temporada
[Texto sem spoilers] A Netflix acertou ao fazer parceria com KondZilla (@kondzilla - no YouTube: https://m.youtube.com/user/CanalKondZilla) na criação e direção da série Sintonia, lançada recentemente na plataforma. A produção é muito bem-feita, com um roteiro de primeira qualidade, atuações ótimas, fotografia original e uma trilha sonora incrível.
Meu objetivo aqui não é falar sobre a trama, o que eu talvez faça em outro texto com revelações (spoilers). O fato é que eu vi, gostei muito, estou revendo e recomendo demais. O que desejo nesta análise é destacar os muitos pontos altos da série Sintonia e também fazer críticas a aspectos da produção que me chamaram atenção.
O tema principal da série é a amizade - e isso é o que a trama tem de universal -, mas o que brilha nas cenas e até emociona são as particularidades da vida numa das periferias brasileiras, a maior do país: a de São Paulo. As gravações rolaram na Favela do Jaguaré, zona oeste da capital, mas na ficção a favela se chama Vila Áurea - homenagem do KondZilla à mãe dele -, localidade marginal (no sentido sociológico) onde os três amigos - dois rapazes e uma jovem mulher - vivem e compartilham seus dramas e destinos.
E as chaves da originalidade e vanguardismo da produção são justamente a coragem e a fidelidade ao retratar a vida na marginalidade, especialmente a de SP. E isso é muito interessante, porque geralmente os holofotes estão virados para as favelas cariocas e não pra periferia paulistana. As favelas do Rio merecem atenção, é claro, mas esse foco nos cariocas é desproporcional, já que, além de KondZilla, SP é a terra dos Racionais, Sabotage, Criollo, Emicida e mais uma pá de gente talentosa, formando um cenário social, cultural e artístico muito ativo, original e rico.
Sintonia tem personagens muito bem construídos e verossímeis - interpretados por atores muito talentosos que espantam pela naturalidade nos papéis -, diálogos ágeis, cheios de gírias, ritmo e espontâneos demais, além de uma narrativa realista, forte, muito bem contada, que cresce e encaixa os caminhos dos três protagonistas.
Os atores da série (não só os principais) são incríveis, parecem ter nascido nas personagens. E não é à toa: o elenco é formado por desconhecidos (profissionais que não estão na TV) e, pesquisando sobre a origem dos talentos, descobri que alguns dos atores são ex-detentos, que fizeram curso de teatro na prisão. Pelo resultado do trabalho, essa foi um excelente escolha dos realizadores.
Para não dar spoilers, vou dizer apenas que a trama se sustenta nas caminhadas e batalhas do trio principal: Rita (Bruna Mascarenhas), Doni (Jottapê Carvalho) e Nando (Christian Malheiros). Os amigos, cada um com seus “corres” (lutas diárias), representam o tripé que fundamenta a história narrada: a vida no crime (em facção que explora o tráfico de drogas), a aproximação com a igreja evangélica e o desejo de realizar o sonho de viver da música, de se destacar como MC.
Sintonia conta a realidade da periferia de SP e realiza muito bem esse projeto, porque tem criadores e colaboradores que nasceram e se desenvolveram ali, dentro da favela, e por isso sabem do que estão falando. Impossível tratar de experiências na periferia brasileira sem mencionar igrejas evangélicas, tráfico de drogas, cenário musical, trabalho informal (com personagens camelôs, vendedores ambulantes), união da comunidade, violência (incluindo a doméstica), preconceitos, corrupção policial etc. Tudo isso é abordado na série.
Bom, agora passo às críticas sobre o que penso que pode ser aperfeiçoado. As personagens são muito boas, mas podem ser ainda melhores se o roteiro da segunda temporada se dispuser a contar mais sobre o passado de cada um dos protagonistas. Colocar alguns flashbacks da história de Rita, Doni e Nando pode dar mais profundidade às suas personalidades e também à trama como um todo.
Na minha opinião, o maior erro de Sintonia foi em relação à representatividade, especialmente no trio principal. A questão é de gênero, racial (étnica) e também passa pelo colorismo: há apenas uma mulher e somente um dos três protagonistas é negro com a pele mais escura, e é justamente esse personagem que faz parte de uma facção criminosa.
No plano geral, a série consegue fugir dos estereótipos; porém, ao colocar só um negro no trio e ainda ligado ao crime, acaba reforçando uma visão menos apurada e original da favela. Conforme explica o site GELEDÉS, “de uma maneira simplificada, o termo [colorismo] quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.”[1]
Na população brasileira em geral, segundo o IBGE, a maioria é de brancos (47,51%), seguidos de pardos (43,42%), negros (7,52%), amarelos (1,1%) e indígenas (0,42%) [2], sendo a maioria de mulheres, que representam mais de 51% do total. Apesar de os brancos serem maioria no país, não é esta a realidade nas quebradas, nos lugares mais pobres, onde o percentual de negros supera 50%. [3] Portanto, um trio mais representativo da favela paulistana poderia ter duas mulheres negras ou dois negros, e não vincular os mais escuros a atividades ilegais. Em um país racista e desigual como o Brasil não dá pra passar pano na questão da representatividade.
Minhas críticas - que se pretendem construtivas - não tiram o valor da série, uma das melhores já realizadas no Brasil, com temas e cenários muito ricos, belos, peculiares e geralmente mal apresentados em produções audiovisuais, que não respeitam o lugar de fala das pessoas da favela. Que venham mais projetos artísticos criados e produzidos por pessoas da periferia!
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Notas e referências:
[1] https://www.geledes.org.br/colorismo-o-que-e-como-funciona/
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Composi%C3%A7%C3%A3o_%C3%A9tnica_do_Brasil
[3] https://ceert.org.br/noticias/dados-estatisticas/9503/levantamento-mostra-distribuicao-da-populacao-negra-em-sao-paulo
Entrevista com KondZilla e parte do elenco: https://youtu.be/B5xhPbFhY8I
https://www.cartacapital.com.br/cultura/kondzilla-nunca-me-apoiei-em-algum-discurso-de-racismo-assista/
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/criticas-de-series/2019/08/sintonia-critica-1a-temporada