Poema de desintoxicação - análise
“Em densas noites com medo de tudo: de um anjo que é cego de um anjo que é mudo. Raízes de árvores Enlaçam-me os sonhos No ar sem aves vagando tristonhos. Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. Ó face sonhada de um silêncio de lua, na noite da lâmpada pressiono a tua. Ó nascidas manhãs que uma fada vai rindo, sou o vulto longínquo de um homem dormindo.”
A vigília, a noite insone, em “Poema da desintoxicação” parece imprimir-se no próprio ritmo do texto; seus versos pentassílabos e os ecos provocados pelas rimas alternadas (entre elas há versos brancos) criam uma atmosfera de monotonia e repetição soturna, semelhante ao ritmo martelado do relógio. Dessa forma, a noite é evocada concretamente pelo poema, para ocupar o lugar de palco para as cismas do eu lírico e testemunho do nascimento gorado do poema. Buscando operar a fruição do belo por meio dos contrastes, este poema eivado de imagens referentes à esterilidade, ao abandono e às ausências, fala precisamente sobre criação. Em certa medida, “Poema da desintoxicação” lembra a decadénce simbolista e evoca a atmosfera noturna do Romantismo, algo reconhecido pela crítica Marta Peixoto.
A Beleza pautada na tensão e os signos da noite e da morte ancoram “Poema da desintoxicação” no Romantismo; sobretudo no Romantismo mais tardio e no simbolismo, estéticas que cultivaram o mito da arte maldita, mito esse que assume contornos mais expressivos a partir de Baudelaire. Charles Baudelaire e aqueles depois dele que foram influenciados por sua obra revestiram a criação poética sob o signo do mal; tratando-a como ofício maldito, sacrilégio e criação diabólica. Aqui no Brasil, o poeta simbolista catarinense, Cruz e Sousa foi bastante sensível a esse motivo aprendido com a lírica baudelairiana. O “Poema da desintoxicação” debate-se na noite e busca, para configurar-se, a matéria-prima do medo; essa matéria-prima, de acordo com o forte apelo plástico da poética de Pedra do Sono, encontra materialização em imagens; dois anjos gauches, anjos mais parecidos com estátuas de sepulcro que com aqueles que pairam no céu, dois anjos marcados pelo signo das ausências, sinistros e aleijados: “Em densas noites/ com medo de tudo:/ de um anjo que é cego/ de um anjo que é mudo”. A frustração da expressão e o silêncio se tornam carne na figura desses dois anjos; eles são como que musas de um poema tinto de medo e que não nascerá de acordo com o que se esperava. Ora, como a poesia de Pedra do Sono é pautada no
olhar, o anjo cego parece corresponder a uma musa que nada vê, que não permite, assim, que se vislumbre o ideal, já o anjo mundo é expressão própria do silêncio, do poema que não nascerá. Nesse pesadelo que manifesta a angústia pela criação frustrada, o próprio sonho – outra possível matéria-prima profícua para a geração do poema – se apresenta como plaga desolada e entregue ao abandono: “Raízes de árvores/enlaçam-me os sonhos/ no ar sem aves/vagando tristonhos.” Os sonhos, destinados originalmente ao voo sem limites da fantasia (voo cujo percurso poderia revelar o poema), possuem um vínculo com o chão, com a terra, representado pelo emaranhado de raízes que deles toma conta. Esses mesmos sonhos, meio aéreos, meio terrestres, voam em um éter vazio, desolado – “sem aves”. Até o momento, esse cortejo de imagens serviu à construção da atmosfera noturna e estéril que envolve o “Poema da desintoxicação”; a partir do verso seguinte, tal atmosfera é justificada. Agora, o eu lírico refere-se ao poema que começa a nascer – timidamente, na noite tinta de medo – com uma metáfora tipicamente romântica: “a flor”. Contudo, esse poema apenas existe em parte, pois metade dele é flor e a outra ainda está apegada, trazendo consigo a forma invisível e opressiva do Nada: “Eu penso o poema/da face sonhada,/metade de flor/metade apagada.” O poema é um monstro híbrido, com o rosto dividido entre a existência e a inexistência, e esse monstro, filho do medo, passará a assombrar a noite, inquietando o papel, onde não desabrocha por completo, e a sala, locus horrendus onde o poeta contempla a noite e suas cismas: “O poema inquieta/o papel e a sala.” Nesse momento, uma terceira face do poema se insinua, “a face sonhada”, talvez, face do poema ideal. No entanto, essa face é silêncio, palavra muda, fria e distante como a lua, dotada de uma presença apenas pressentida, uma sugestão amarga do que o poema, talvez, pudera ser: “Ó face sonhada/de um silêncio de lua,/na noite da lâmpada/pressinto a tua.” O poema de face ideal se insinua e encontra analogia no silêncio da lua distante; é um poema noturno, portanto, filho da noite e dela dependente. No entanto, os últimos versos presenciam o irromper da aurora: “Ó nascidas manhãs/ que uma fada vai rindo,/ sou o vulto longínquo/ de um homem dormindo.” Com a luz, o poema ideal se dissipa; seus letargos e vapores delirantes são “desintoxicados”, resta apenas o poeta, o eu lírico que com a perda do poema perde parte de si, torna-se vulto, fantasma noctâmbulo entre o sono e a vigília, dissociado de si próprio na mesma medida em que o poema possível se distancia do poema ideal. Nesse momento, o poema se realiza no fracasso, afirma sua existência no mesmo momento em que o ideal que o moveu se dissipa; trata-se, portanto de uma poesia criada com silêncio e esterilidade – com a mesma matéria que compõem o Nada. Como no poema de abertura de Pedra do Sono – “Poema” – o “Poema da desintoxicação” realiza-se no fracasso. Trata-se de um poema que se salva do silêncio e do nada justamente por não negar a presença dessas forças – em certa medida, todos os poemas de Pedra do Sono as cantam para nutrirem-se de sua paradoxal potencia criativa. A aceitação do silêncio acaba por ser a única saída para a criação poética de Pedra do Sono. A esterilidade convertida em motivo poético torna-se fértil nesse livro soturno e letárgico, diverso da obra solar (mas igualmente atenta a esterilidade) do João Cabral de Melo Neto, dos poemas produzidos a partir de O engenheiro. O João Cabral de Pedra do Sono, contudo, já é João Cabral; por isso debruça-se com tanto interesse sobre o processo de composição e nessa obra parece empenhar-se em salvá-la das imposições do silêncio. Percorrendo-se os olhos pelos poemas que compõem o livro (tentou-se fornecer exemplos disso com os dois poemas aqui considerados) percebe-se que o poeta foi vitorioso ao captar a música do silêncio e as formas do nada, pois, assim, conseguiu criar utilizando-se justamente da matéria-prima fornecida pelo tema da incomunicabilidade da palavra poética. Ora, como comprova a tradição moderna a qual Pedra do Sono se vincula, muitas vezes o Nada pode revelar-se como o próprio absoluto; portanto, o ato de testemunhar sua presença, pode ser tomado como caminho para a criação poética. A Pedra do Sono parece preludiar o João
Cabral de Melo Neto “construtor do poema”, mas apresenta-o, antes, como um alquimista que manipula quimeras, e não como o engenheiro que submete a matéria conhecida à beleza. Mesmo assim, trata-se da obra de um poeta construtor. Aqui, manipulador do Nada e do silêncio, semeador de imagens que brotam em meio à esterilidade, maculando-a de vida e formas.