Pensamentos com espinhos numa nação emburrecida
Ouriço: senso incomum, de Adriano de Paula Rabelo
São Paulo: Aglaia, 2019. 152 páginas
Aforismo é uma sentença de cunho moral ou prático que, de certa forma, sintetiza um pensamento e eclode no raciocínio do leitor. Por óbvio, essa é apenas uma das formas de se definir um aforismo. Mas ela se encaixa na percepção resultante dos muitos que encontramos na mais recente obra de Adriano de Paula Rabelo, intitulada Ouriço: senso incomum. Segundo o autor, o título da obra tem a ver com o desejo de perturbar e estabelecer uma crítica de comportamento, mas de uma forma pacífica, tal qual o animal ouriço, dócil e ao mesmo tempo repleto de espinhos. Rabelo possui vários livros em seu currículo, mas quem leu seu último trabalho, Desabraçar (se você não leu, leia, pois é muito bom), e agora este, verá que sua última ocupação tem sido desvelar a crueza dos costumes humanos em suas idiotices, hipocrisias, vergonhas, bizarrices, fascismo, vulgaridades etc. E, se esse processo de censura aos costumes (sutil ou mesmo aberta, por vezes dissimulada) permanece, o estilo do autor começa agora a soltar as amarras da norma culta, caminhando com segurança numa plataforma de escrita que se compõe agora de neologismos e uma infinidade de recursos da linguagem, trazendo uma verve refrescante ao domínio de sua escrita. Para que o leitor tenha uma pequena ideia do que isso significa, não há outro caminho para se alcançar a potência de escrita e força narrativa de um Machado de Assis, um Guimarães Rosa ou um Graciliano Ramos.
O livro de divide em quatro seções. Elas compartimentam aforismos que, via de regra (ou seja, não todos eles), singularizam um costume, uma crença, um pensamento marcado pelo senso comum, para tão somente, no mesmo instante, destruí-lo. Esse recurso de singularização e explosão também aparece (embora numa outra variante discursiva) na obra Desabraçar e parece se configurar uma inovadora característica do autor. Essas quatro seções também servem para apontar as maneiras encontradas por ele para desaforar a vida através de seus aforismos. Que os leitores me perdoem o trocadilho, mas ele cabe e é proposital.
Na primeira seção, intitulada Sociocultural, prevalece um riso oblíquo, sarcástico ou até debochado sobre o famoso contrato social, que hoje mais parece um peso a se carregar pela vida, uma espécie de saco de pedras que hedonismo nenhum alivia. A arma mais pesada contra esse tipo de coisa é o riso. É a arma mais poderosa capaz de destruir uma instituição, aniquilando justamente todas suas crendices, insanidades e absurdos, que demais transitam em seu próprio meio, sempre numa corrente cínica, empacotada na mais pura normalidade. Quando, no aforismo Consultas, o autor diz que “O horóscopo é o meretrício da esperança”, não busca com isso desatar a risada, mas cortar o costume pelo sarcasmo, irritando o maneirismo da vida comum pelo quase deboche. E o que dizer de Estirpe: “A Justiça tem classe”? Talvez injusto, não? Afinal todos nós ganhamos 50 mil por mês, não é mesmo? Todos nós recebemos auxílio-moradia, não é verdade? O caminho desse riso é a lembrança de que há entre nós uma constituição social, um tecido feito aparentemente de “contratos” entre seus componentes, em suma, todos os cidadãos. Caia o leitor das nuvens de algodão e saiba que os homens formam um contrato social não por anseios altruístas e colaborativos, mas por instintos de disputa e autopreservação. Isso pode lhe parecer pessimista, caro leitor, mas é o jeito como a coisa é. E seja qual for sua orientação política, Vossa Senhoria há de convir comigo que não vivemos exatamente dias de celebração de pactos sociais, daí o peso em nossas vidas sem que sequer percebamos. Diz o próprio autor: “Civilização é a barbárie enluvada”. Tapa com luva de pelica na nossa esperança de que tudo vai bem.
Recheada de torções de frases feitas, a segunda seção traz aforismos sobre os Sentimentos. Que me perdoem os leitores, mas acabei de ler o livro e talvez ele tenha me contagiado de certo deboche raivoso, afeto resultante de uma desesperança ou vazio trazido pela vida à maneira como vimos nos aforismos dessa seção. Por óbvio, sempre haverá o mais empedernido defensor do Amor como forma de resgate e esperança para a humanidade... Mas, de verdade, será que não passou da hora de sentarmos e discutirmos nossa relação com o Amor? Quem sabe não possamos fazer isso à noite, com uma taça de vinho e... sozinhos! Em resumo, tudo parece uma Brisa em que “O amor é uma ventosidade de esperança”. Esses aforismos “sentimentais” de Ouriço nos ensinam que, no fim, todos estamos sós e que, como nos diz o aforismo Acolá, “O sofrimento vai sempre além de qualquer análise”. No entanto, é importante deixar claro que essa verve antipatética não está a serviço de negar nossos sentimentos ou mesmo o Amor. Tudo sempre é o ser humano. Nesse caso, trata-se de mais uma manifestação do pessimismo do autor para com a nossa espécie, que conflagra ilusões ao mesmo tempo em que parece querer destruir tudo o tempo todo.
Na terceira seção, o livro elenca uma série de aforismos relacionados à linguagem. E é por ela que vazam as desesperanças com nossa existência, como se tudo fosse um fluxo inevitável em que a fluidez da fala revela os conflitos interiores. É verdade que usamos a linguagem para ironizar, debochar ou falar dos nossos sentimentos, como vimos até então. O caso é que agora o autor procura mostrar que a própria linguagem é um instrumento de perturbação. Vou tentar explicar melhor. É como se ele dissesse que a linguagem é uma obrigação algo que burocrática e que está na verdade a serviço de nossa incapacidade de sermos mais colaborativos ou mesmo mais altruístas ou, para usar um termo mais atual, empáticos. Assim tudo o que resta como opção é o silêncio. Quando lemos que “O silêncio é a única sabedoria ao alcance do imbecil”, somos, à primeira vista, levados a pensar nos imbecis, nas pessoas que consideramos imbecis. Mas logo percebemos que, pensando assim, o conceito de imbecil não é algo congelado no tempo em que as pessoas nele se enquadram. Na verdade, ser imbecil é sempre um risco ao qual qualquer um está sujeito, se não perenemente, ao menos ocasionalmente. E o pior é que, se isso for verdade, não seria o silêncio então uma quase imposição a todos nós? Decerto não há como as coisas serem assim. Mas isso prova o quanto aforismos desse tipo podem nos fazer parar e pensar em nosso grande e quotidiano falatório. Se notarmos bem, quase todos os aforismos desta seção propõem uma coisa muito simples nestes tempos de vozerio desenfreado: é melhor que façamos silêncio.
A quarta e última seção traz aforismos que flertam com a filosofia. Não por acaso ela se denomina Especulações. Algumas de suas frases referem-se a pensamentos filosóficos. Parecem querer brincar com a própria metafísica, ao cutucar temas como a verdade (Verdade: “A mentira tem pernas curtas porém asas longas”), a eternidade (Ensejo: “A eternidade tem seus momentos”) e a liberdade (Punilha: “O indivíduo, esse caruncho da liberdade”). Ai de ti, Adriano, quando encontrares Kant ou Aristóteles! A seção se estende em outros temas, tais como vida, homem, livre-arbítrio etc. Tudo para estender o tapete da inconfiabilidade também do pensamento. Mais um desenrolar do convite à desesperança produtiva. Em Ecce hinc: “Além do horizonte há outro horizonte”, por exemplo, além da referência a Nietzsche (Ecce homo), o autor brinca com a expressão esperançosa de se encontrar algo além de onde podemos ver. Para ele, a esperança não leva a lugar algum, pois sempre há algo mais a se esperar. É melhor que nos concentremos no nosso caminho, no agora. Uma seção destinada ao discurso habitual dos aforismos é uma forma de homenagear a filosofia, mas também de apontar a miserável condição humana frente aos desafios de seu próprio pensamento.
O título do livro é autoinstrutivo. A intenção é claramente colocar um ouriço na sala e perguntar quem tem coragem de mexer com ele. O objetivo é garantir que se possa cutucar qualquer um a respeito de qualquer coisa, garantida a preservação do próprio animal. Trata-se de um pequeno manual de desconstrução minimalista, que faz fluir certo pessimismo e desesperança. Por outro lado, essa desconstrução é uma ferramenta que nos possibilita repensar nossos modos de escolha, de vida e de constituição social. Daí, talvez, a escolha por aforismos assemelhados àquilo que damos o nome “pílulas de sabedoria” para uma vida mais empática e equilibrada, quando, de fato, parecem “pílulas de sabedoria” para que repensemos nossa forma de atuar no mundo e transformá-lo. Trata-se de uma excelente contribuição de Adriano Rabelo para uma época de gente parva no comando de uma nação que perdeu a capacidade de pensar.