Escrever sobre o trabalho de estreia de um amigo pode soar como crítica chapa-branca, mas é impróprio omitir-se caso o risco de injustiça seja maior do que qualquer suposta parcialidade. Falarei sobre “Entre cão e lobo”, de Edmilson Borret.
 
Edmilson tem com a palavra e com a língua portuguesa uma relação tão intima que, no desenrolar da poesia, parece que o autor e os versos se dão as mãos e convidam quem lê para uma ciranda de emoções confessionais. A poesia de Edmilson é um despertar constante que não dispensa o aconchego irresistível que nos faz procurar abrigo na leitura.
 
Em poemas como “A náusea” (pág. 17), constrói estrofes que evocam metáforas extremas, sentimentos que se negam ao meio-termo. São nesses extremos que o autor concede alma à poesia, inspirando-se nas medidas que concebem a nossa própria substância volátil, sempre aquecida pela caldeira efervescente do existir.
 
“O intragável irritante do sentimento
é a ausência de meio-termo:
ou é caldo ralo
ou é um angu de caroço.”
 
Em seu livro “A clareza e o mistério da crítica”, Antonio Casais Monteiro pondera que “tudo o que na arte é extremo manifesta que não está mais disposta a colaborar na comédia do melhor dos mundos possíveis”.
 
Talvez, não por acaso, esta poesia carregada do mesmo vigor da essência humana não se prive de se materializar em elementos que vitalizam o corpo. Sangue, estômago, tripas, coração, braço, dor, paladar. O sentido abstrato do verso se torna quase palpável à medida em que avançamos os olhos. A densidade das imagens e a perfeição rítmica do poema “Resiliência” (pág. 33), um dos que mais me impressionou, exibe com absoluta nitidez a claustrofobia espiritual da vida, a ponto de terminarmos a leitura como quem emerge de um longo mergulho no mar, depois de ter se privado do ar, da respiração.
 
A gente se acostuma a tudo.
Se acostuma ao café frio,
à comida requentada,
ao chuveiro queimado,
à falência dos órgãos
e ao balão de oxigênio.”

O amor, que também emerge da poesia de Edmilson, não é o amor dos desiludidos, é o amor da esperança, o amor pela vida, que nasce dos gestos simples de ver e ouvir. Quando lança o olhar sobre o mundo, o poeta de “Entre cão e lobo”, nos reflete paisagens que se fundem com a voz que traçou um mapa de continentes ocultos sob a neblina do cotidiano. Cada página do livro é um novo cartão-postal de tudo que denota a composição da nossa arquitetura mais íntima.
 
Muito da literatura visível de hoje é um produto ditado pelo mercado, desde o momento em que editoras passaram a se administrar como se fossem bancos apostando em papeis que dão lucro. Ao mesmo tempo, a partir do advento da Internet, ficou impossível acompanhar a quantidade infinita do que se produz em blogs, e-books e livros físicos. Tudo é agulha no palheiro, onde a palha predomina numa desproporção inimaginável. Não é à toa que vemos mais fogo de palha do que uma agulha com utilidade para durar além do tempo de um flash fotográfico conduzido por alguma suspeitosíssima lista dos mais vendidos. Como sempre, cabe ao crítico a tentativa apontar o que irá sobreviver além da farsa imposta pelo marketing de uma mídia contratada para criar vaporosas ilusões. Dito isso, se me pedissem para definir a obra de Edmilson Borret em pouquíssimas palavras, eu me remeteria a uma estrofe do seu poema “A palavra exata” (pág. 56):
 
A palavra exata
quando dita, já foi
fica do leite a nata”.
 
Entre cão e lobo” é a nata.
 

__________________________
 
Entre cão e lobo
Editora Penalux
Ano 2018
 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 13/07/2019
Reeditado em 13/07/2019
Código do texto: T6695137
Classificação de conteúdo: seguro