"Pedro Páramo" de Juan Rulfo: de estrutura narrativa peculiar e criativa, obra é um mosaico do interior do México, que encanta pela beleza e influenciou a história da literatura hispano-americana
"Pedro Páramo" do escritor mexicano Juan Rulfo. Trata-se do mais aclamado romance da história da literatura mexicana, tendo influenciado toda uma geração de escritores latino-americanos que vieram depois como Vargas Llosa, Cortázar, Carlos Fuentes e García Márquez, por exemplo. Conta-se que o grande Garbo, inclusive, atribui à leitura dessa obra o fim do bloqueio criativo que vinha sofrendo na década de 50 e, o resultado dessa leitura, teria sido a escrita de "Cem anos de solidão", sua obra-prima.
"Pedro Páramo" é o único romance escrito por Rulfo. Além dele, o escritor deixou apenas uma coletânea de contos chamada de "Chão em chamas" e que, ao que tudo indica. Ao longo das décadas, Rulfo foi podando, literalmente, em várias revisões, a história narrada em "Pedro Páramo". O motivo para essa lapidação está na narrativa pouco usual desenvolvida. A obra é narrada como um grande mosaico, onde cada pedaço traz um elemento importante da leitura, cabendo ao leitor a tarefa de juntar esses pedaços e ter acesso ao panorama geral.
Rulfo conta a história de Juan Preciado que resolve ir até o povoado de Comala, no interior, para conhecer seu pai, Pedro Páramo. Ele faz essa viagem atendendo o pedido de sua mãe, no leito de morte, que pede para que ele conheça a cidade onde viveu e foi feliz e que tente conseguir de seu pai aquilo que lhe é de direito. Chegando à região, descendo pelos vales que o rodeiam, Preciado interage com os moradores locais e descobre que Pedro Páramo morreu, já há muitos anos, e que Comala tornou-se uma cidade abandonada. Preciado, mesmo assim, resolve investigar a cidade e conhecer seus moradores.
A partir daqui darei alguns spoilers, importantes para compreensão do livro. Se não leu a obra, pule os próximos parágrafos e sugiro a leitura da presente resenha apenas após o término do livro.
***** INÍCIO DOS SPOILERS! *****
Com o passar das páginas, o espaço de narrador de Preciado cede espaço para que outras vozes ocupem a narrativa, das mais variadas formas. Há interação de vivos com mortos, de passado com o presente, em vários locais diferentes. Os personagens, por vezes, interagem entre eles próprios, deixando Preciado e o próprio leitor perdidos na leitura. Há diálogos, mas também há sussurros. Por meio destes diálogos cortados, vamos montando o quebra-cabeça. Ao dar voz a tantos personagens, Rulfo elimina a figura do narrador, o que torna esse livro tão peculiar e interessante. Na natureza inusitada disso tudo se deve à própria natureza dos personagens que povoam Comala: eles estão mortos, com suas almas vagando pela cidade.
Pedro Páramo, personagem que dá nome à obra, é o fio condutor da narrativa, tanto como protagonista quanto como antagonista. Todas as demais personagens tem seu destino influenciado diretamente por ele, por suas ações. Ele é a figura clara do caudilho, que manda e desmanda em Comala pois sua fazenda, a Media Luna, é quem movimenta a economia local. O próprio destino final de Comala está diretamente relacionado com o de Media Luna.
Pedro Páramo comete todo o tipo de abusos: rouba terras, executa assassinatos, estupra mulheres... Para tal, ele conta com a conivência do Padre Rentería, representante da Igreja corrupta. Os atos do sacerdote fazem com que, no decorrer da história, ele perca a permissão de absorver os pecados da população, o que explica a existência de fantasmas em Comala, que vagam sofrendo em culpas. O calor da temperatura de Comala pode ser vista como uma analogia para o inferno ou purgatório, inclusive.
Pedro Páramos, também, é oportunista, ficando do lado de quem tem mais condições de vencer, quando interage com revolucionários que surgem na história.
***** TÉRMINO DOS SPOILERS! *****
"Pedro Páramo", mais do que um mosaico narrativo, trata-se de um olhar claro ao interior do México. Comala, com sua gente humilde e religiosa, e com seu caudilhismo/coronelismo local na figura do protagonista/antagonista, serve como uma representação de qualquer cidade do interior da América Latina, que sofre com a seca e falta de recursos.
Rulfo conhecia esse ambiente interiorano e suas mazelas. Seu romance serve como um convite ao olhar empático para essa realidade.
Embora tenha sido tratada superficialmente na obra, por meio do surgimento de alguns revolucionários na história, vale uma pequena nota sobre isso. Os revolucionários, na narrativa, não parecem tão preocupados com a melhoria das condições do povo, estando mais preocupados com o próprio umbigo. Talvez isso soe como uma crítica aos resultados da Revolução Mexicana de 1910. A população mais pobre do México sofria com a ditadura de Porfírio Díaz. As camadas menos favorecidas viam na revolução a chance de melhoraram suas condições. Figuras como Emiliano Zapata, Pancho Villa e Ricardo Flores Magón representavam um pouco de esperança. Contudo, a situação da população menos favorita não melhorou nas décadas posteriores ao término da revolução.
O olhar atento para a vida interiorana, bem como o acréscimo do elemento mágico/místico fizeram com que o livro de Juan Rulfo se torna-se um dos pilares do gênero realismo fantástico, que influenciou vários escritores da América Latina nos anos seguintes, conforme dito no início desta resenha. O legado literário de Rulfo, ainda que apenas com dois livros, é imensurável, principalmente quando acrescentamos a beleza e a poesia presente em seus parágrafos.
Rulfo, como dito, escreveu pouco. Sua postura, nesse sentido, lembra muito o caso de Raduan Nassar que, após escrever duas obras, também abandonou a literatura como atividade principal. Fica a dúvida do que Rulfo ainda poderia ter nos legado se tivesse persistido. Contudo, "Pedro Páramo", como livro único, com suas pouco mais de 100 páginas, consegue valer por toda uma vida como escritor. Escrevendo pouco, acabou escrevendo tudo o que podia, tornando-se imortal.
(RULFO, Juan: prefácio e tradução de Eric Nepomuceno. Pedro Páramo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008, 140 páginas)
P.S.: Resenha escrita em fevereiro de 2019.