HONÓRIO, O LÍRICO COMENDADOR: COMO MIÚCHA O RETRATOU

O livro “Honoris Causa” não é classificável. Se fosse publicado por uma grande editora ela teria grande dificuldade em informar a “estante”  em que ele seria exibido. Biografia? Aventura? Comédia? Romance? Pois bem, ele é ao mesmo tempo tudo isso e nada disso.

A tiragem foi pequena e não consta que esteja disponível para aquisição. Os privilegiados que o têm não emprestam; todos sabem que livro, mulher e dinheiro não se emprestam. Usando o meu direito de amigo fui presenteado com um exemplar, coisa digna de fazer inveja. Depois de o ler digo com todas as letras: livro para ser lido numa sentada só, mesmo com o texto impresso em letras tão miúdas quanto as de bula de remédio e com espaço entre linhas tão apertado quanto as ruas de Ouro Preto.

Mas ninguém vai às Muralhas da China ou ao Caminho de Santiago buscar conforto. O conforto está na recompensa espiritual (no caso da leitura do livro.) Miúcha tem tal e tanta modéstia em estado natural que ela sequer aceita os merecidos elogios. Tem tanto escrúpulo de falar bem das próprias obras que sequer nos dá a chance do contraditório.

Como escritora é uma abelha operária, só que com vida longa e sem ter uma abelha rainha para sustentar. Trabalhou incessantemente o tema difícil de escrever uma obra tendo cartas trocadas como matéria prima. “Cartas Extraordinárias – a correspondência inesquecível entre pessoas notáveis”, “A Intimidade da Correspondência Entre Fritz Müller e Charles Darwin” e “Descendo a rua da Bahia” são exemplos que me ocorrem para lembrar que esta famosa coisa que não mais existe – a carta – pode, sim, ser personagem principal de um livro.

Honório Carneiro é um rio caudaloso. Recebeu na Terra a missão de percorrer um vale fértil e de receber em seu leito, com generosidade, todos os tributários que lhe aportaram na vida. Sou prova viva de seu poder catalisador. E Miúcha foi fundo nas entrelinhas das cartas, naquilo que ninguém mais sabe ler. Honório é dessas pessoas que nascem com destino certo, uma espécie de vida depois da vida, uma roda viva. É preciso ter a paciência de uma Miúcha para descobrir tudo isso em vazios tão pequenos que mal cabem uma agulha.

E o que ela faz? Simplesmente segue o rio com uma tralha carregada de coisas velhas – as cartas – e, com rara humildade, faz quase um trabalho a quatro mãos.  Transcreve, sempre em negrito, os trechos que lê e pinça deles seus comentários, nenhum deles gratuito. Todos têm endereço certo, precisão cirúrgica, para desvendar mistérios de uma pessoa que ela e sua família conheceram tão bem. De fato Honório é patrimônio ubaense.

E assim o livro divaga – eu diria que vagueia devagar – entre risos, bondades, ternuras, confortos e saudades. O fio condutor que nos leva através dos tempos e dos lugares onde ele viveu e vive: no coração das pessoas. Sempre que o negrito de Honório foi substituído pelo texto comum de Miúcha fiquei em dúvida: seriam os textos originais e integrais de Honório ou seria a visão interpretativa da escritora tecendo a teia e preparando o campo para pegar a presa, seus leitores?

Honório é reconhecido galhofeiro. Brinca com o sério e o eterno como quem faz piada em boteco. E Miúcha é o contraponto, a parte que compensa a galhofa – essa a grande vocação de vida de seu homenageado, um homem que levou na brincadeira até os percalços que a vida lhe preparou. 

Ninguém nasce com todos os dons, principalmente os que se antagonizam. Miúcha aceita o brilho nos palcos porque ela própria brilha quando canta. Mas, quando escreve ela parece se esconder das luzes; prefere manipular os cordéis por trás das cortinas de um teatro de marionetes. Tenho receio de que me entendam errado, pois na literatura brilha mais quem se esconde nas sombras. A escuridão é a forja de pensamentos e pensadores ilustres.

Então, quando se pensa que, por ser o rio, Honório não precisa de um barqueiro para conduzi-lo, se engana. Honório é bicho solto na natureza. Sabe como ninguém fazer suas graças, abater suas presas, exercer seu papel de predador na cadeia trófica e cativar as pessoas. Com tudo isso sua sinergia foi capaz de mobilizar o que ele tinha de melhor e mais claro, que é seu grande humanismo.

Transformado em herói solitário de um belo livro, este senhorzinho que Miúcha descreveu como sendo capaz de ter todas as idades, e de fato tem, o material é tão bom que tenho pena de quem não possa desfrutar de páginas tão delicadas.


Honório, o último dos gentis, um Carneiro, um irmão de Ferdy, senhor de mil ofícios, é um homem feliz, estigmatizado com este dever: serás lançado ao mundo para agradar, para distribuir lições de bem viver. O mesmo homem que precisa de amigos quando Tetê o deixa, temporariamente, em favor da maternidade na casa de parentes em Ubá, é também aquele que, moleca e sorrateiramente, subtrai a pinga do Serro de Zé Alencar, um digno Vice-Presidente da República.

Não deixa de rir de si mesmo quando informa que o Zé Durso recusara seu endosso (ou seria endurso?) a um cheque para não sujar o documento. É o rei dos trocadilhos, impiedosa e cirurgicamente cáustico, ao recomendar à Celina Avanci que “avance” seu namoro com o Lincoln César. Não deixa a peteca cair quando chega vestido de Miúcha numa festa de carnaval. Imagine se alguém que não fosse ele gostaria de ser chamada de Maria do Socorro! Só Honório para ter a sensibilidade de percebê-lo e amenizar a tragédia da Mary Help. Não recusa, malandramente, o equívoco de namorar uma Matarazzo. Honório é um homem eterno, ou, no dizer de Zé Daniel, alcançou a eternidade sendo/permanecendo jovem.

Impossível resgatar melhor a imagem deste nosso amigo eterno, de todas as eras, do que Miúcha fez com este Honório que, diante de um espelho mágico, colocou em dúvidas a beleza de seu neto. Ela soube extrair, magistralmente, daquelas “mal traçadas linhas” a fina ironia de alguém capaz de beijar um postal de Lana Turner defronte a uma banca examinadora. E é de chorar de rir saber que, sem querer, derrubou literalmente a casa de Nego Rocha.

Miúcha teve um baita trabalho ao organizar aquelas coisas. Escrever “Honoris Causa” deve ter sido como conduzir uma boiada no meio de uma tempestade e tendo de manter os bois em ordem. Não deve ter sido fácil. A História de Ubá, já tão rica e diversificada, não poderia sobreviver sem o resgate primoroso que Miúcha fez, explorando com sagacidade a trajetória de uma pessoa que pode representar todos os personagens que são a cara da cidade, onde abundam temas tão variados que permeiam ruas, clubes, botecos, casas, famílias centenárias e histórias de amor sem fim.

Como se não bastasse o leitor é ainda premiado com a graça de conhecer Martha. Acho que ali ficou claro que a filha explica a mãe. Ou seria o contrário?
 
NOTA: Honório se retirou de entre nós faz pouco tempo. Como ele é imortal, o tratamento também é atemporal. Pois ele sobrevive a qualquer evento.