12 regras para a vida
Como grande parte de meus colegas escritores, posso dizer que vivi uma vida deveras interessante. Camufladas sob o véu da ficção, transmutei várias de minhas experiências em forma de poemas ou contos, guiando-me pelo princípio de Tasso – tal qual uma enfermeira suaviza o gosto amargo do remédio que dará a seu paciente colocando açúcar nas bordas do copo, também gosto eu de exceder-me à Musa e adornar a realidade com doses de irrealidade. Afinal, não é trabalho do escritor alterar aquilo que é real de acordo com sua percepção?
Apetece-me valer-me de alegorias para enfeitar minhas histórias, e com base nas opiniões do sempre tão obsequioso leitor obtenho êxito ao fazê-lo; de outra forma, onze anos depois de tê-la redigido, e cinco após sua publicação, não receberia miríades de moças e rapazes impressionados com minha noveleta “Camila”, que possui de verdadeiro em suas páginas apenas meu amor pela epônima personagem – talvez se houvesse escrito como nosso relacionamento deu-se na vida real, não teria qualquer material com o que trabalhar. Quem gostaria de ler sobre as lamúrias de um estudante do primeiro ano do Ensino Médio, que mal conseguia ter contato com a garota que lhe interessava? Por isto, ao escrever qualquer uma de minhas obras, minha principal tática é basear meus personagens de acordo com a ideia que faço das figuras de meu dia a dia, e narrar os acontecimentos da forma que queria que tivessem sido, e não como aconteceram de verdade.
Outra figura bem conhecida de meus leitores é Nelly – seu nome verdadeiro está espalhado por aqui e acolá em meus trabalhos, mas prefiro ocultá-lo sob seu pseudônimo (inventado por mim e sancionado por ela) neste ensaio como um sinal de respeito; depois de tantos anos de inimizade, quero passar a todos aqueles que me leem um retrato positivo de sua pessoa, complementando as ficções de meu relato “Viagem por São Paulo”, no qual pinto pelo menos em partes as coisas tão horríveis que dissemos e fizemos um ao outro. Só eu e ela haveremos de guardar este segredo em sua totalidade dentro de nossos corações: a dor que compartilhamos não pode e tampouco deve ser profanada pelos olhos irritantemente inquisitivos do público.
Escrevi minha história a Nelly como um memorial daquilo que um dia fomos, ao mesmo tempo em que confesso meus pecados com o mesmo fervor e sinceridade de Santo Agostinho – como esclareci a meus leitores na história (e em vários outros escritos), tornei-me tão ateu quanto Percy Shelley, mas não é necessário crer numa divindade para difundir o perdão; pois, em minha acepção ao menos, reconhecer um equívoco e desculpar-se por ele com honestidade (e também saber conceder o perdão quando é-lhe pedido) deveria ser um traço básico do perfil da raça humana. Dedico muito respeito a Agostinho, e desejo não só a mim, como a todos os homens, que lhes seja concedida a bênção de atingir o supremo estado de paz consigo mesmo conquistado por este douto santo, independente de sua fé.
Em troca de minha confissão, recebi das pálidas e pequeninas mãos de boneca de porcelana de Nelly a absolvição pela qual tanto esperei por anos, e alguns conselhos, sempre proferidos com seus modos elegantes e delicados de lady britânica – dentre eles, “leia Jordan Peterson!”. Uma das várias coisas que omiti de minha história foi o sofrimento ao qual esta garota foi exposta durante sua adolescência; sobre ele calo-me pois não é meu papel, nem o de ninguém, julgá-la. Conheci Nelly há uma década, e até que viéssemos a romper nossas relações acompanhei seu desenvolvimento – depois de anos sem ter notícias suas, foi para a minha mais agradável surpresa que a vi bem, e feliz, e tão radiante quanto nasceu para ser. Tendo em vista tal quadro tão contente, jurei que haveria de seguir sua sugestão: a depressão que Galaktion Eshmakishvili expõe em seus textos é sempre verdadeira, e quis tragar as águas da mesma salutar fonte onde Nelly bebera.
Muitas de minhas influências são arcaicas; admito que nunca li autores do presente século o bastante. “Tudo quanto ameace de mudar-me, para melhor que seja, eu odeio e fujo”, nas palavras de Pessoa. O livro de Peterson, “12 Regras para a Vida”, é o mais “moderno” a entrar para a minha biblioteca em anos. Nada sabia eu sobre o autor e seu trabalho, fora o fato deste livro em particular ser deveras conhecido e ser mais acessível ao público geral do que seu predecessor “Mapas do Sentido”, que não li ainda. É um título autoexplicativo: 12 regras para tornar a vida do leitor mais plena. À primeira vista pensei que não me diria muita coisa que já não soubesse – sempre achei que livros de autoajuda eram fabricados numa espécie de linha de montagem, pois todos me parecem mecânicos, meras cópias um do outro. Algumas regras expostas por Peterson são de fato simplistas, mas nunca banais: constantemente explica seus aforismos de um modo erudito, mas de fácil compreensão, valendo-se de vastas referências literárias ou embasadas na cultura popular e de um humor gracioso. Senti-me a todo momento ouvindo os conselhos bem-intencionados de um pai, experiência esta que nunca mais vim a ter desde a morte de meu mestre há um ano.
As ilustrações no início de cada capítulo embelezam ainda mais as páginas deste livro, que por si só já é repleto de ternura.
Peterson conclui perguntando a seus leitores “o que haverão de escrever com sua caneta de luz recém-adquirida” – e eu próprio encerro o presente texto respondendo que utilizo-a para registrar nestas linhas toda a gratidão e o orgulho que tenho por Nelly. Sou grato por sua passagem em minha vida, por nossas brincadeiras infantis, por nossas desavenças até – afinal foram elas que levaram-nos a aprender a importância do perdão. A “Viagem por São Paulo” pode ter sido um texto em grande parte ficcional – os leitores tampouco se importariam com os pormenores de um relacionamento a distância que de jure durou menos de um ano, mas de facto arrastou-se por dez – e alegórico, porém a admiração que dedico a esta garota tão estimada é e sempre haverá de ser real.
“O amor é tiro e queda; tira toda a tristeza do coração”. Pode não ser um bom final, mas se a ela bastar, coroada está a obra.
(São Carlos, 5 de agosto de 2021)