Os pesadelos de Ned (Nightmare Ned)
Escrevi num ensaio anterior a respeito dos sonhos, mas o gentil Leitor, sempre interessado em meu trabalho e querendo que continue a produzir (mesmo quando o cansaço me abate e não consigo segurar a caneta para escrever um mísero iota), interroga-me: “Sei que gostas de brincar com noções opostas – de tudo fazes medalhas de duas faces. Pois bem! Escreveste sobre sonhos; o que tens a dizer sobre os pesadelos?”.
Como poderia eu ignorar tal apelo? Assim sendo, escrevo sobre pesadelos.
Gosto deles tanto quanto dos sonhos. Acho fascinante a propensão do homem a atrair-se àquilo que o assusta, e o medo em si é uma emoção interessante. Os pesadelos servem para fortalecer nossos limites, dando-nos forças para lutar contra males reais, e ainda oferecem uma janela a um lado mais obscuro de nossa personalidade que pode inclusive ensinar algo a nosso respeito sobre o qual nem saibamos.
E é baseado nesta opinião que gosto de buscar conteúdos que inquietem-me, influindo em minha criatividade para que permaneça sempre ousada. Pude encontrar muitos produtos impressionantes em minhas pesquisas, como se demonstra pela série de ensaios tão coloridos que lanço ao mundo (e à avidez do Leitor) com grande contentamento; espero, portanto, que compartilhem da enorme afeição que dedico ao tesouro sobre o qual haverei de discorrer hoje.
Esquecido nos anais do Tempo há um jogo, estranhamente produzido pela Disney – coisa que nos dias atuais seria quase que inimaginável. Mesmo que voltado ao público infantil, não poupa imagens chocantes e por muitas vezes repulsivas para inculcar nos pequenos (e talvez até nos grandes que o quiserem analisar) a importância de encarar seus medos de frente, de modo heterodoxo porém educativo; seu nome é “Nightmare Ned”, conhecido em minha terra natal como “Os Pesadelos de Ned”.
Não há muito a explicar-se em termos de enredo: o titular Ned, o carismático garotinho controlado pelo jogador, é assombrado em seus sonhos por cinco criaturas de sombra, e ele deve desbravar cada sonho a fim de enfrentar o que o espanta. A inovação está em como o enredo é executado – cada criatura, à medida que Ned realiza algo de positivo, gradualmente transforma-se em uma pessoa ou objeto de seu cotidiano, oferecendo alguma breve lição de moral. Todas as cinco criaturas comandam seu próprio domínio: um hospital macabro seguido de uma gigantesca e asquerosa boca responsável por algumas das imagens mais viscerais de todo o jogo (representando o medo de médicos/dentistas), um monstruoso banheiro (suspeito eu que represente o medo que toda criança tem de crescer), uma escola que se assemelha a uma prisão (preciso estender-me mais?), um sótão repleto de objetos estranhos e monstros (este também não é muito autoexplicativo; talvez represente o medo de lugares escuros e de como coisas do dia a dia podem parecer monstros sob o efeito das sombras? De qualquer forma, este é meu pesadelo preferido), e um cemitério habitado por fantasmas e zumbis (o mais poético de todos, representa o medo da morte de um ente querido; em verdade, a sombra deste pesadelo transforma-se no avô de Ned).
Explorando cada um dos cinco mundos o pobre Ned é vítima de diversas formas de violência cartunesca: é pisoteado, fatiado, incinerado e tem seus órgãos arrancados, entre outros. Isto, porém, não desmotiva o jogador a jogar – como o personagem não pode morrer, os infortúnios de Ned sendo atacado por monstros e objetos proporcionam uma mórbida diversão. Os cenários são muito bem-feitos, misturando animação em 2D e CGI, e experimentam com outras formas de mídia como colagem e stop-motion, incentivando o jogador a explorar tudo com seus olhos na companhia de Ned.
Somada a esta atmosfera onírica está a gloriosa trilha sonora, embasada em teclado e piano – dividindo espaço com divertidas canções vocais que certamente convidarão o ouvinte a cantar junto, balanceando medo e diversão em doses sadias.
Mais esquecido do que o jogo é o desenho animado no qual ele foi inspirado – como grande parte de tudo aquilo que é mal apreciado, foi cancelado após uma única temporada, e nunca mais reprisado. O desenho, porém, possui uma sensibilidade mais cômica, e sua estética não é tão intrigante quanto a do jogo; mas seus cenários de cores fortes e linhas distorcidas são muito remanescentes das pinturas de Van Gogh. Ambos devem ser apreciados separadamente.
Toda vez que menciono sobre o jogo ou a série animada, confesso que nutro um desejo um tanto quanto idealista de trazê-los de volta aos olhos e aos ouvidos da grande mídia – “Nightmare Ned” não merece ser esquecido. Em verdade, a Disney deveria orgulhar-se de ter trabalhado em um jogo tão criativo e que não insulta a inteligência das crianças – algo que, por alguma razão, desaprenderam a fazer desde aquela década tão radical que foi a de 1990. Não tenha medo, leitor! Como Ned, desbrave corajosamente seus pesadelos, e divirta-se no processo, com esta subestimada obra de arte feita com tanto esmero.
(São Carlos, 29 de agosto de 2021)