Embora tardiamente, a Companhia das Letras nos fez o favor de reunir vários escritos de Lygia Fagundes Telles. Lygia tem 95 anos e está toda serelepe, cheia de energia e graça. Embora justo, merecido e tardio, que acontecimento mais que louvável. Bastaria me pronunciar dessa forma, mas, em se tratando de Lygia Fagundes Telles sou confessadamente derramado.
     Eu estava pronto para dizer que fui admirador de Lygia desde sempre quando me dei conta de que seria um exagero. Na verdade, o antigo preconceito de que mulher bonita escrevia mal foi derrubado na década de 70 quando li As Meninas. Desde então me tornei Lygia-dependente e passei a ler o que escrevia; pouco, é verdade, mas com o esmero de uma escultora de palavras. O Brasil, que só recentemente incrementou as escolas de formação de escritores – não é um embuste como querem os que entendem que “escritor nasce feito” – deveria adotar Lygia como modelo de escritora, se não pela sua fantástica escolha de temas, mas, principalmente, pelo magistral domínio da leveza e do desembaraço na condução do texto.
     Incontroversa, mesmo desdenhando o status de primeira dama da literatura brasileira que lhe impuseram, o mais interessante em Lygia é a unanimidade que alcançou junto aos seus leitores de todos os matizes, aí incluindo a crítica e seus colegas acadêmicos. A menina paulista se nutriu de suas experiências, primeiro na contemplação de cenas e personagens do interior e depois as mesclou com vivências urbanas cosmopolitas, para compor um universo literário onde o real se mistura com o drama.
     Se a produção não é grande – talvez influenciada pelos papéis de esposa, mãe e funcionária pública – a premiação e o reconhecimento são vastos e diversificados, o que, infelizmente, não inclui o Nobel de Literatura. Teve a grandeza de renegar publicamente a qualidade de seus primeiros escritos; ela sabia que era um exercício de aprendizado. Esforçada e vanguardista, Lygia só não pode se queixar das oportunidades que encontrou pelo caminho enquanto caminhava com desbravadora coragem.
     Já se disse dela que é uma contadora de histórias, com ou sem conotação de menosprezo. Mesmo quando fantásticas ou inverossímeis, se trata de julgamento raso porque escrever é contar histórias.
     O que sempre gostei no estilo de Lygia é a sua inexistente afetação literária. É como se fosse a projetista de uma estrada que liga dois pontos com estudada simplicidade, sem muitas pontes, sem excesso de curvas. Não é rebuscada e nem pretensiosa. Parece ter atravessado a vida e absorvido de cada momento as observações mais críticas possíveis. É uma mestra em desvendar camadas, como um restaurador de pintura em templos barrocos.
     É inevitável que, em se tratando de uma escritora que, durante boa parte de sua vida exerceu um ofício que tinha mais representantes masculinos, se façam comparações entre ela e outras brasileiras, igualmente grandes. Não sou ensaísta ou crítico, mas como “achista” penso ser isso uma grossa bobagem. Restrição talvez se faça quanto a Adélia Prado, mineira, também abençoada por Carlos Drummond de Andrade. Uma razão para isso? Não se trata de uma justificativa técnica, mas no modo de “sentir” alguma similaridade entre as duas: ambas são originais e ousadas em suas propostas temáticas; parecem escrever sem medo de desagradar ou incomodar. E, sobretudo, há nelas uma incrível força criativa.
     Lygia recebe em vida o que construiu durante a vida. Escreveu em jornais e revistas, participou de filmes e telenovelas, publicou livros nas melhores editoras, foi traduzida em vários idiomas, deu entrevistas e fez incontáveis palestras. Mas, dentre as homenagens, duvido que ele goste mais do que o reconhecimento de seus leitores.