Os Mutantes: sim, já se passaram 50 anos

Resolvi escrever esse texto de homenagem aos 50 anos do primeiro álbum de Os Mutantes, um pouco depois do aniversário de fato, como uma forma de demonstrar meu apreço pelo rock nacional e até um valor sentimental que tenho por essa banda, a qual escuto desde criança e que marcou a minha vida, junto a Led Zeppelin e Black Sabbath, Essas três são, para mim, a trindade do rock.
 
Foi em junho de 1968, há 50 anos, que a banda de Rock Nacional, Os Mutantes, lançaram seu primeiro LP (através da gravadora Polydor Records), cuja capa trazia uma sala verde, um tanto distorcida, lembrando os cenários de filmes do Expressionismo Alemão, com os jovens músicos, Arnaldo Baptista, sentado a frente dos outros dois integrantes, olhando com uma expressão enigmática para algo que não podemos ver. Atrás dele, Rita Lee, aos 20 anos, igualmente sentada, de branco, olhando em direção à câmera que os fotografava, assim como o irmão de Arnaldo, Sérgio Dias, só que de pé, utilizando uma longa capa preta, uma gravata preta com bolinhas, e uma cabeleira no melhor estilo The Beatles, todos com uma expressão até um tanto séria, sem sorrisos ou um mínimo ar de gozação, presente em toda a produção musical do grupo. Até hoje, não tive conhecimento sobre o que significaria essa imagem tão simples e tão interessante. Mas o foco desse texto não está na capa do disco, mas sim numa análise embasada das 11 faixas tocadas no mesmo.
 
Curiosidades:
- Boa parte dos instrumentos utilizados pelo grupo foram construídos por um dos irmãos Baptista, Cláudio Cesar, incluindo a famosa guitarra de ouro de Sérgio Dias, que vira um violão mexendo em alguns dispositivos.
- Os Mutantes não ficaram conhecidos por esse disco, mas sim pela sua participação no III Festival da Música Popular Brasileira, exibido pela Rede Record, onde o grupo se juntou a Gilberto Gil para tocar os clássicos Domingo no Parque e Bom Dia. Assim como a participação no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von e em outros programas televisivos voltados a Jovem Guarda, onde eles, inclusive, conheceram Tim Maia.
- Esse disco foi à primeira parceria entre a banda e Rogério Duprat, um dos maiores nomes do tropicalismo, sendo responsável pelos arranjos orquestrais. Ele posteriormente trabalhou com a banda até 1971, no disco Jardim Elétrico.
- Apesar de ser voltado para o Rock N’ Roll, esse disco trazia inúmeros elementos do tropicalismo, na essência de cada faixa.
- Grande parte das letras foram compostas por músicos tropicalistas amigos dos Mutantes, que obviamente, ajudaram no processo de criação dessas letras, mas foram totalmente responsáveis por tirar as músicas do papel. As únicas músicas assinadas exclusivamente por eles foram O Relógio, Senhor F e Ave Gengis Khan.
- A revista Rolling Stones, colocou esse disco em nono lugar na lista dos 100 maiores discos da música brasileira. Além de que, historicamente, esse álbum é considerado revolucionário, devido às técnicas de estúdio desenvolvidas no processo de produção das músicas.
- Nos anos posteriores ao lançamento desse disco, Os Mutantes passaram a participar de shows com outros nomes do tropicalismo, além de se fazerem presentes no clássico disco Tropicália e Panis Et Circenses.
- Por fim, o disco é marcado pelo experimentalismo, utilizando guitarras distorcidas, objetos não convencionais para produzir som, mudança de ritmo, ruídos, além de misturar rock psicodélico com gêneros musicais tipicamente brasileiros, como baião, samba e até candomblé.
 
Faixas:
Lado A:
 
Panis Et Circenses (Composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil):
A música começa com uma introdução de trombetas, cujo som é, exatamente, o mesmo da abertura do programa jornalístico “Reporter Esso”, só que com mais de uma trombeta utilizada. O motivo disso era construir a ideia de que se estava noticiando a alienação ideológica da sociedade brasileira, diante a Ditadura Militar e a instauração do AI-5. Isso remete diretamente ao próprio nome da música: Panis Et Circenses, que significa Pão e Circo em francês, que é o nome dado a prática dos imperadores romanos de darem comida e divertimento ao povo, mas que esquecessem de todas as mazelas trazidas pelo império. A letra então torna-se uma mensagem dos tropicalistas ao povo, de que suas músicas estão ali para denunciar a ditadura. Isso se torna evidente no trecho: “soltei os tigres e os leões nos quintais (evidenciando caos), mas as pessoas da sala de jantar, são ocupadas em nascer e morrer (o comodismo e o individualismo da sociedade perante o caos). O elemento da sala de jantar é utilizado aqui para ilustrar a ideia do “pão e circo”. Na música, Rogério Duprat coloca sons de talheres, pratos e copos, e no fim, pessoas falando a mesa (“me passa a salada”) para reforçar isso. Além de trombetas, a música também leva flauta e chocalhos, tocados por Rita Lee, a bateria de Dirceu (não oficial na banda), a guitarra de Sérgio Dias e o baixo de Arnaldo Baptista.
 
A Minha Menina (Composta por Jorge Ben Jor):
Misturando rock e samba, a letra de A Minha Menina, escrita por Jorge Ben Jor em 15 minutos, e dada por ele de presente a Rita Lee, é cantada pelos irmãos Sérgio Dias (“Ela é minha menina/E eu sou o menino dela/Ela é o meu amor/E eu sou o amor todinho dela”) e Arnaldo Baptista (“A lua prateada se escondeu/E o sol dourado apareceu/Amanheceu um lindo dia), com Rita fazendo os becking vocals. Não há necessariamente um significado filosófico, como no caso de Panis Et Circenses, mas sim uma espécie de serenata moderna (para os padrões da época). Na parte instrumental, Jorge Ben entra com um violão base, tocando uma espécie de samba-rock, seguido por um riff da guitarra de Sérgio Dias, enquanto Rita toca pandeiro, acompanhando a bateria base de Dirceu.
 
O Relógio (composta por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee):
“Meu relógio parou/Desistiu para sempre de ser/Antimagnético, 22 rubis/Eu dei corda e pensei/Que o relógio iria viver/Pra dizer a hora/De você chegar”. Esse é o primeiro trecho da música O Relógio, que foi feita como uma metáfora sobre o tempo, na perspectiva da vida, das nossas angústias e expectativas. Vale citar que, em determinado momento, a música abandona o tom melancólico e até fantasmagórico, reforçado pela cantoria de Rita Lee, trocando para uma sonoridade agitada e até um pouco bagunçada, simbolizando um despertador. E logo depois, volta ao tom melancólico. A primeira e a última parte são, aparentemente, compostas por uma colaboração do baixo e do teclado de Arnaldo Baptista, servindo como fundo instrumental, da letra cantada por Rita Lee, num ritmo lento, a segunda parte, se escuta Sérgio tirando um som nervoso de violão, seguido por Dirceu, tocando sua bateria de forma agitada. Além do uso de tampinhas de garrafa na percussão e de um apito de futebol. (“Que vantagem eu levei/De ter um relógio que era suíço ou inglês/Sem Andar/A que horas você vai chegar?).
 
4. Adeus Maria Fulô (composta por Humberto Teixeira e Sivuca):
Composta originalmente por Humberto Teixeira e Sivuca em 1951, a música foi sugerida por Rita Lee para “abrasileirar” o disco, além de ser uma que ela sabia toda a letra decorada, pelo fato de sua mãe já ter tocado no piano. A música em si é baseada nas ideias do manifesto antropofágico, que defendia a mistura de estilos como numa espécie de digestão. Aqui se mistura elementos do baião e do rock, com uma letra falando sobre a seca no sertão (“Adeus vou embora meu bem/Chorar não ajuda ninguém/Enxugue o seu pranto de dor/Que a seca mal começou/Adeus vou embora Maria Fulô do meu coração/Eu voltarei qualquer dia/É só chover no sertão/Os dias da minha volta, eu conto nas minhas mãos). Curioso que, nessa mistura, não se escuta o principal instrumento do baião, no caso a sanfona, e nem o principal do rock, a guitarra, mas sim batidas de xilofone, e batidas de vidro, metal e tambores, acompanhados pelos arranjos. Além disso, se escuta sons de ventos e de pio de passarinhos, para criar um ambiente de sertão nordestino.
 
5. Baby (composta por Caetano Veloso):
Seguindo a linha de Adeus Maria Fulô e A Minha Menina, Baby, que era originalmente uma bossa nova composta por Caetano Veloso, que falava sobre uma lista de necessidades do jovem dos anos 1960, para seu próprio entretenimento, recebe aqui um tratamento rock n’ roll, com o teclado cuja sonoridade lembra órgão de igreja, e um baixo repetitivo, ambos tocados por Arnaldo Baptista, que faz o vocal principal, além de uma guitarra sorrateira de Sérgio Dias.
 
6. Senhor F (composta por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee)
Inspirada em elementos sonoros da música All You Need Is Love dos Bealtes, Senhor F trás uma crítica aos meios de comunicação de massa, que disseminam uma ideologia que mantém a classe trabalhadora desmobilizada, além de evidenciar uma reação diante a mudança do dia a dia dessa mesma classe com o advento da tecnologia, no pós terceira revolução industrial. O refrão “DÊ um chute no patrão!”, aparece como um incentivo a classe operária a derrubar o sistema. Tudo isso, com uma mistura de rock e jazz, além de uma “bagunça controlada” de sons um tanto aleatórios, misturados ao piano tocado por Clarissa Leite, mãe dos irmãos Baptista.
 
Lado B:
 
7. Bat Macumba (composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil):
Trata-se de uma mistura muito interessante de elementos musicais do candomblé com rock, cuja letra contém versos que aumentam e diminuem, criando forma a própria métrica da letra. A ideia é genial, pois mistura algo da cultura africana, com o tal imperialismo, representado pelo rock, o que seria uma gozação com os setores da esquerda que acusavam Os Mutantes de imperialistas, e pelo super herói Batman, cujo nome aparece nos versos onde eles cantam “bat ma...” (“ma” de “macumba”). O som trás os tambores da música presente nos rituais de candomblé e a guitarra distorcida de Sérgio Dias, fazendo alguns solos poderosos.
 
8. Le Premier Bonheur du Jour (composta por Frank Gérald e Jean Renard):
Cantada originalmente por François Hardy, e posteriormente por Rita Lee em sua antiga banda de coro de meninas, The Teenege Singers, que era uma espécie de folk rock, recebe um tratamento de psicodélico, inclusive lembrando a faixa O Relógio, pelo tom um tanto melancólico e fantasmagórico. Numa tradução livre, do francês para o português, significa A Primeira Felicidade do Dia, mas a letra em si não é o foco da música, mas sim sua sonoridade, que trás flautas doces, em duas notas, tocadas por Rita e Arnaldo, em harmonia com umas batidas de tambor, um solo de guitarra bem minimalista, seguidas de um balanço de chocalho, seguido do som do espirro de uma bomba de flit, jogando inseticida no microfone, construindo uma sonoridade poética muito forte, compatível com o ritmo da canção.
 
9. Trem Fantasma (composta por Caetano Veloso e os Mutantes):
Trem Fantasma é, definitivamente, a música mais psicodélica deste disco. A princípio, trata-se de uma simples referencia ao clássico brinquedo de parques de diversão, o tal trem fantasma. A letra, que se divide entre trechos cantados por cada integrante e depois por todos eles em coro, busca contar uma pequena história sobre um jovem casal que vai andar num trem fantasma. A história tem um começo (Quatrocentos cruzeiros/Velhos compram com medo/Das mãos do bilheteiro/As entradas do trem fantasma/Ele e a namorada/Ele não pensa em nada/Ela fica assustada) e o fim (Terminou a sessão/Quatrocentos cruzeiros/Velhos compram com medo/Ele e a namorada/Ele não pensa em nada/Ela pensa em segredo), cantados por Rita Lee, mas no processo, entramos numa viagem fantasiosa, como se os personagens entrassem numa espécie de sonho, em trechos cantados primeiro por Arnaldo Baptista (Quatrocentos cruzeiros/De força arrastam/O rapaz e a moça para/ O lugar em cinemascope brilhante/ A montanha gigante de generais verdejantes/...) e Sérgio Dias (Quatrocentos cruzeiros/Quatrocentos morcegos de força/O beijo, o rapaz e a moça/O tem dentro d’água/A piscina parada). Na parte instrumental, se escutam metais (instrumentos de sopro), tocando algo que lembra trilhas sonoras de filmes de terror dos anos 1950 e 1960, que se misturam a guitarra de Sérgio, com o teclado base de Arnaldo. A música também começa com sons de trem e com Dirceu tocando agitadamente sua bateria. Nas palavras do próprio Arnaldo, a música quer dizer que “o amor poderia surgir dentro de um trem fantasma” (fica em aberto).
 
10. O Tempo no Tempo (composta originalmente me inglês pela banda The Mamas and the Papas):
Trata-se de uma regravação em português da música "Once Was a Time I Thought" da banda The Mamas and the Papas. Sendo também a segunda música mais psicodélica do disco, além de ser a mais simples. Começa com um coro agudo, cantando um verso típico de música de igreja católica, seguida por solos de corneta e tuba, instrumentos normalmente usados em trilha sonora de filmes de comédia da época, servindo de fundo para uma letra que mistura apodrecimento do corpo humano, fantasmas, bruxos, a relação entre o tempo e o homo sapiens, cantados em coro, num ritmo acelerado, até um pouco difícil de acompanhar. Enquanto a percussão da música é simplesmente o estalar dedos dos três integrantes. A música fecha com um sino de catedral. O tom sombrio da música então funciona para preparar quem está escutando para última música. Além da aleatoriedade da letra, ser algo repetido na música Dia 36, do segundo álbum.
 
11. Ave Gengis Khan (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee):
A última faixa do disco é basicamente instrumental, com uma mistura dinâmica entre todos os instrumentos clássicos do rock. Primeiro começando com o teclado tocando determinadas notas, num ritmo específico, seguido pelos outros instrumentos, guitarra, baixo e bateria, tocando exatamente o mesmo som do teclado do teclado, a ponto de que tudo se mistura, novamente, num caos controlado e harmonioso. Ao fundo o grupo cantando em coro “Ave Gengis Khan”. Em determinado momento, o pai dos irmãos Baptista, o dr. Cesar, entra na música com uma voz estrondosa, cantando alguns versos, que foram invertidos durante a pós-produção. A música inteira parece um ritual satânico eletrônico, fechando, então, o disco.
 
A conclusão que podemos chegar é que, de fato, o primeiro disco dos Mutantes reflete a essência do tropicalismo, a partir do Movimento Antropofágico. Uma verdadeira mistura de estilos e gêneros musicais, de instrumentos com objetos aleatórios, técnicas inovadoras, etc. É um tipo de som que consegue impressionar até os dias de hoje, é um tipo de música atemporal. Em minha opinião pessoal, de mero fã de rock n’roll, é o melhor álbum da banda, depois de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, mas não deixa de ser o mais importante do grupo.
 
Enfim... Deixo aqui minha humilde recomendação do disco Os Mutantes, de 1968, que completou 50 anos no mês passado, e deixou uma marca em nossa música que jamais será apagada.

Viva Os Mutantes!

Fontes:
Rita Lee - Uma Autobiografia (livro)
A Divina Comédia dos Mutantes (livro)
Loki – Arnaldo Baptista (documentário)
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 07/07/2018
Reeditado em 15/12/2018
Código do texto: T6383525
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